Passado e futuro: os eventos fortes de Torto Arado, aqueles que nos fazem apertar as páginas do livro, ao contrário do que se poderia esperar, não empurram a história para a frente CREDITO: LINOCA SOUZA_2021
Entre a tradição e a ruptura
A esperança cautelosa de Torto Arado
Rodrigo Soares de Cerqueira | Edição 180, Setembro 2021
Desde que as olhou de frente, a literatura brasileira nunca mais deixou de retratar as mazelas dos mais pobres e marginalizados, em especial as populações rurais, que encarnavam, como nenhuma outra, o nosso atraso. Contudo, de uns tempos para cá, umas boas décadas na verdade, foram os grupos marginalizados nas periferias das grandes cidades que vieram para o primeiro plano. Nada mais natural. No último meio século, o Brasil se tornou um país eminentemente urbano, e o fracasso das aspirações desse processo, que prometia a superação do nosso subdesenvolvimento, salta aos olhos e se torna a matéria principal da representação das nossas misérias. Um dos mais evidentes achados do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, é deslocar o olhar dos grandes centros para o interior do país, resgatando e filiando-se, de maneira própria, à tradição dos chamados romances regionalistas, que durante muitos anos deram forma às reflexões sobre os caminhos e descaminhos do país.
A história gira ao redor das irmãs Belonísia e Bibiana, as narradoras das duas primeiras partes do romance, nascidas e criadas numa fazenda, Água Negra, situada na região rural da Bahia, a Chapada Diamantina. A cena inicial, marcada por uma tragédia, dá o tom desse universo de precariedade. As meninas, remexendo nas coisas da avó, Donana, encontram uma faca, que colocam na boca por brincadeira, e uma delas perde a língua. A tragédia, contudo – e aqui o livro começa a mostrar a que veio –, não se torna o ponto obsessivo ao redor do qual gira a história. Ela é incontornável, por certo. A irmã que perde a língua perde também a capacidade de falar, o que não implica seu silenciamento. Num primeiro momento, cria-se uma sintonia fina entre elas a ponto de que uma pode se expressar pela outra de tal maneira que, ao longo de toda a primeira parte do romance, sequer sabemos quem foi a vítima. O rendimento literário é imenso e escapa às armadilhas de certo regionalismo que distancia (e hierarquiza) a fala do narrador, contrastando-a com as variações dialetais estereotipadas dos personagens. Muitas vezes é como se Torto Arado fosse narrado numa primeira pessoa do plural, um “nós” que, especialmente quando conjugado no passado, cria construções inusitadas, elegantes, nada orais nem para os grupos mais escolarizados. Essa fusão entre a vida precária da roça – com seu mundo e vocabulário próprios – e uma sintaxe finamente elaborada produz um encontro paulofreiriano.
A individualização das irmãs, elemento fundamental para o desenvolvimento da narrativa, começa a ganhar corpo com a chegada de Severo, primo das meninas. Ele se apaixona por Bibiana e a encoraja a fugir de casa com ele. As motivações – no caso dele, deixar para trás a precariedade da vida e conseguir dinheiro para ser dono de seu próprio pedaço de terra; no caso dela, ir para a escola para poder se tornar professora – são das mais legítimas, mas com implicações que retomam a dualidade entre o atraso do mundo rural em oposição às possibilidades abertas pela cidade, o que, tendo em vista as promessas não cumpridas pela modernização, a essa altura, seria apostar no fracasso já constatado.
O norte do livro, contudo, é inteiramente outro. A fuga, que encerra a primeira parte, não nos lança para fora de Água Negra como parece prometer; nos embrenha ainda mais na fazenda. Quem assume a palavra agora é a irmã que fica, Belonísia. Ao contrário de Bibiana, que via na educação futuro, para Belonísia esta é perda de tempo, o que não significa que o romance enverede por um anti-intelectualismo tão na moda. E aqui o melhor da pedagogia do oprimido dá as caras: reconhece-se o fracasso de uma educação que privilegia os medalhões da história nacional, descolada da realidade concreta dos moradores da zona rural. A saída de Belonísia, ao contrário da irmã, é o aprofundamento na realidade local, a qual precisa aprender a ler com a mesma atenção que outros dedicam aos livros.
As irmãs, aproximadas pelo evento trágico da infância, configuram duas possibilidades de conhecimento. A dualidade usual entre campo e cidade está desmontada, e aquela que foge para expandir os horizontes é tão legítima quanto a que fica e absorve um conhecimento que é, antes de tudo, telúrico, ancestral. No fundo, o que o romance busca é nivelar esses dois destinos, dando-lhes o mesmo foro. Torto Arado é um lugar em que o conhecimento da terra e o conhecimento do mundo se fraternizam.
Contudo, independente do que pretenda, até mesmo pela maneira como está organizado o romance, a terra prevalece sobre o mundo (que tampouco é tão vasto assim). O capítulo narrado por Belonísia – o segundo, não por menos homônimo ao livro – acaba se impondo sobre o primeiro, cujo ponto de vista é ainda o de uma mulher em formação. A pequena e precária casa de Água Negra, feita de barro, como todas as demais da fazenda, é o espaço ao redor do qual todos giram, do qual ninguém escapa, até porque não se deseja sair. Bibiana e Severo, depois de um tempo na cidade, onde ele se aproxima de movimentos políticos organizados e ela se torna professora, retornam para a fazenda. É um evento que, visto por meio da reação de Belonísia, com seus próprios problemas e um tanto magoada ainda com a fuga da irmã, acaba ganhando pouco destaque a despeito da importância que terá para a trama. Não é que o romance negue os elementos modernos que Severo e Bibiana incorporam (a militância e a educação mais formal, ainda que já despida de oficialidades), mas eles são antes um pano de fundo para a grande preocupação de Torto Arado, a recuperação e a valorização de uma ancestralidade ligada à terra.
O capítulo de Belonísia também é o capítulo sobre seu pai, Zeca Chapéu Grande, figura respeitada na comunidade, curador de jarê, uma religião de matriz africana própria da região onde se passa a história. Quando ela abandona a escola, cujo ensinamento, alienado da sua vida concreta, julga insuficiente, é do pai que se aproxima; é dele que passa a colher os conhecimentos efetivos, úteis, todos eles ligados às necessidades que não são apenas suas, mas também da terra, que Zeca Chapéu Grande conhece como ninguém. Embora seja um romance bastante feminino – narrado por mulheres conectadas por uma ancestralidade que enreda Donana, a avó, e Salustiana Nicolau, a mãe, retrocedendo ainda mais no tempo ao longo do livro –, é Zeca Chapéu Grande que é o centro da narrativa. Ele é a própria encarnação da terra, à qual, por sinal, esteve ligado para além da racionalidade. Emigrado de outras bandas, encontrou pouso e trabalho em Água Negra, onde passou o resto de sua vida. Sua história pregressa, seus ensinamentos, seu lugar na comunidade, tudo se torna matéria de Belonísia, que as preserva e narra.
Um dos pontos altos de Torto Arado é a ambiguidade concentrada no personagem de Zeca Chapéu Grande. Se era real o desejo de acompanhar Severo, que queria outra vida para além de Água Negra e de quem estava grávida, Bibiana só se decide mesmo pela fuga quando percebe que seu pai, um homem respeitado por todos na comunidade, é incapaz de fazer frente à exploração que sofrem – isso quando não age em função dela, usando do seu prestígio para manter as relações de favor intactas. Reconhecendo o débito para com aqueles que lhe deram pouso e trabalho num momento de necessidade, Zeca sempre se mostrou o trabalhador incansável que disse que seria, labutando de domingo a domingo, mesmo depois de velho. Ele não apenas dava a cota do que produzia (nos momentos de maior escassez inclusive), como nunca desejou aquilo que acreditava não poder ter: a propriedade da terra em que vivia e labutava. Se há muitos anos havia aceitado, por inocência ou necessidade, que não poderia construir uma casa de alvenaria porque aquele pedaço de chão não era seu, ele manteve a sua palavra e agiu para que todos os que estavam de alguma forma sob seu comando também respeitassem a tradição. É desse mundo que Bibiana e Severo fogem (para em seguida voltar, modificados); e é nesse mundo que Belonísia se embrenha, sem, contudo, reproduzi-lo.
Ao mesmo tempo, o romance é ciente de que o confronto aberto nem sempre é a única ou a melhor forma de resistência – um ponto que fica claro com a cena do empenho para a construção de uma escola local. Mesmo homem do campo, Zeca sempre quis que os filhos e as filhas aprendessem a ler. O prefeito da cidade, cujo filho padecera de males que as ervas e as rezas de Zeca curara, participava das cerimônias de jarê na sua casa. Numa oportunidade, abrigando Santa Bárbara, Zeca fez o prefeito empenhar a palavra a respeito da escola. Como tudo se passara diante da santa, a promessa ganhava peso e não poderia ser ignorada sem mais. O alcance da passagem é grande, pois mostra como, mesmo sem uma postura nomeadamente política, podia-se buscar pequenas brechas de atuação. A escola, que será construída um pouco de qualquer jeito, se torna a princípio um espaço de manutenção de relações desiguais: leva o nome do pai dos proprietários da fazenda, o que é engenho do prefeito para vencer a barreira dos donos, e passa a ser o lugar de um ensino conservador, com o qual Belonísia rompe. Mas é também o espaço que será posteriormente ocupado por Bibiana, já professora e empenhada num processo de conscientização de uma identidade até então desconhecida para a velha geração, a de quilombola.
Severo, nesse sentido, é um passo à frente em termos políticos, pois encarna uma militância direta, que busca romper com a sociabilidade do favor defendida por Zeca. Literariamente, porém, Severo é um personagem mais fraco. E não apenas porque ele é mais unidimensional do que o patriarca da família.
Sob o ponto de vista do enredo, Severo, apesar de sua militância, respeita a autoridade de Zeca, mesmo quando se mostra mais conservadora. Só depois da morte de Zeca é que o marido de Bibiana se torna um tanto mais vocal na defesa do direito de propriedade dos sitiantes de Água Negra. Já sob o ponto de vista da narração, Belonísia, que ainda tem a palavra, nunca dará a Severo a mesma importância do pai. Ela reconhece a força do discurso de seu cunhado, a impressão que causa nos mais jovens, o desconforto nos mais velhos, mas tudo isso opera num segundo plano, antes menção do que ação. E nada disso muda substancialmente depois da morte de Zeca. Belonísia se volta ainda mais para o passado, recuperando suas raízes familiares, a história de seu pai e da avó, que são elas próprias parte de uma história de exploração mais ampla, cujos pontos a narradora começa a ligar. Severo nunca chega sequer perto de protagonizar o livro. Se, por um lado, isso não deixa de ser um avanço, porque não desloca a importância das mulheres; por outro, embaça aqui o que Severo representa, uma radicalização política.
Analogamente ao que acontecera com Bibiana e Belonísia, cujos destinos configuram uma tentativa de conciliação entre perspectivas a princípio antagônicas (um conhecimento que se adquire e um conhecimento que se preserva), Zeca e Severo também formam um par. Ainda que representem vivências distintas diante da questão da exploração agrária, mesmo assim nunca se confrontam – são dois momentos de uma mesma cadeia de resistência, cada um operando à sua maneira, sem que nenhum seja menos legítimo do que o outro. Não é que o livro recuse conflitos: é o caso de Donana e um de seus maridos, Belonísia e Tobias, Maria e Aparecido, seu marido que a espancava, Severo e Salomão, o novo dono de Águas Negras. O conflito, contudo, se dá para fora, em relação às opressões patriarcais e de propriedade, mas nunca internamente. O núcleo que configura uma resistência subalterna pode ser – e é – contraditório entre si (centrípeta e centrífuga, ancestral, religioso, militante etc.), mas é uma contradição que se fortalece por dentro, como se guardasse as energias para as relações de opressão.
Uma contradição dessa natureza não se resolve com facilidade, num passe de mágica de boas intenções, como a estrutura do livro faz ver. Torto Arado tem uma característica curiosa. Os eventos fortes da narrativa, aqueles que nos fazem apertar as páginas do livro, ao contrário do que se poderia esperar, não empurram a história para a frente. A tragédia que abre o romance afeta a vida das meninas, mas não modifica a da família, que continua vivendo a mesma precariedade; a fuga de Bibiana não nos leva para fora da fazenda; a morte de Zeca não abre espaço para a representação das novas relações de dominação, sempre mencionadas mas nunca trazidas a primeiro plano. Muito pelo contrário até: é no capítulo seguinte ao falecimento de Zeca Chapéu Grande, um dos mais bonitos do romance, que tomamos conhecimento do seu nome e da sua história, o que também quer dizer um recuo no tempo. Mas é com o assassinato de Severo, que andava mobilizando os moradores contra o novo proprietário da fazenda, Salomão, que essa dinâmica atinge seu ponto mais alto. A execução, uma denúncia contundente do arbítrio que rege as relações agrárias no Brasil, encerra o segundo capítulo, narrado por Belonísia, e nos lança para fora da História: quem assume a palavra agora, na terceira parte, é um ser sobrenatural, uma encantada.
Esse conjunto de regressões tem propósito progressista e está na ordem do dia. A recuperação das ancestralidades é uma recusa ao apagamento das raízes dos povos escravizados, forçados a mudar de nome e a se converter ao catolicismo, apagamento que, se tivesse acontecido com os próprios colonizadores, tiraria o sono daqueles que andam em busca de um passaporte da União Europeia. Contudo, a despeito desse recuo ao passado, necessário, a História, com H maiúsculo, continua sua marcha que, mesmo lenta e gradual, é progressiva. Em algum momento um dos moradores ganha de um dos filhos que trabalha na cidade uma televisão; depois vem a parabólica, uma geladeira e assim por diante. Com a aposentadoria a quem têm direito, embora sem carteira assinada, surge uma renda suplementar que vai permitindo melhorias:
Fazia algum tempo que os moradores decidiram levantar suas casas com materiais duráveis. Aconteceu antes da morte de Salomão. Era um desejo antigo, sufocado pelos interditos. Queriam ter casas de alvenaria. Queriam moradas que não se desfizessem com o tempo e que demarcassem de forma duradoura a relação deles com Água Negra. Os filhos que trabalhavam fora passaram a enviar um pouco de dinheiro para as construções. Os mais velhos, que puderam se aposentar, começaram a comprar material à prestação na cidade. Chegavam na calada da noite com carregamentos em carrinhos de mão e carroças, para não chamar a atenção. O primeiro a assentar um tijolo foi o velho Saturnino, com a ajuda dos filhos e netos. Alguém passou pela frente da casa que estava sendo erguida e disse que faria o mesmo. Os gerentes passaram a reclamar, por ordem de Salomão, mas não adiantou. Aos poucos, a paisagem da fazenda foi se modificando como nunca antes havia ocorrido. Salu apenas disse para Zezé e Belonísia que queria levantar sua casa.
A transformação na vida dessas pessoas é imensa. Pela primeira vez elas se dão a um direito que é seu, o de ter uma moradia decente na terra em que tanto trabalharam. Mas o ritmo do parágrafo captura outra temporalidade: ele é lento, cuidadoso. Conflitos e tensões há, mas eles nunca são explicitados; são antes cuidadosamente contornados. Talvez reverbere, por trás da aparente serenidade de Saturnino e de quem o viu erguendo a casa, a militância incansável de Severo e mesmo os ensinamentos de Bibiana. É possível que eles fossem se tornando consensuais, o que não deixa de ser o objetivo do trabalho de conscientização, fazer com que o interdito possa ser dito, tornando senso comum o que parecia uma reinvindicação inalcançável, a ponto inclusive de não precisar – nesse momento tão crucial da história, a realização de uma conquista de gerações – ser trazido à baila. A construção de casas mais sólidas é uma vitória da comunidade, sem dúvida, dessas que torna o presente qualitativamente melhor do que o passado e abre expectativas a respeito do futuro. Mas quando pensamos no conjunto de escolhas narrativas, algo parece um tanto estranho, porque essa conquista se faz sem que se traga a primeiro plano as ações dos protagonistas, como se estas corressem em paralelo àquela. O resultado literário não deixa de ter um sentido despolitizado, pois, ainda que por um lado aponte para a agência humana na resolução dos problemas (em oposição à espera da graça divina), acaba, por outro, rasurando os esforços individuais e coletivos sem os quais o feito não seria possível.
Talvez ninguém esteja tão imersa nessa encruzilhada quanto a narradora da terceira e última parte, a encantada. Morta Maria Miúda que fora por muitos anos seu cavalo, esse ser está sem pouso e paira por sobre a terra e por sobre a história das irmãs, agora já com seus cabelos brancos, vivendo todas elas esse mundo em transformação. O recurso é engenhoso porque, por um lado, a narrativa ganha uma posição mais alta, atemporal e onisciente. Os vários fios do enredo, que a consciência de Belonísia e Bibiana não alcançavam, vão sendo amarrados. A história da família se liga de vez à história dos diversos grupos de negros chegados ou levados para aquelas regiões, de que a encantada tem sido uma testemunha privilegiada. Por outro lado, acompanhamos em primeira pessoa o vagar de um espírito que, diante das transformações, parece que vai perdendo seu lugar.
O desaparecimento do mundo onde se encarnava a encantada tem um duplo ritmo, que amarra a contradição do resgate ancestral com que Itamar Vieira Junior resolve fechar seu romance: O diamante trouxe a ilusão, porque, quando instalaram as dragas, os rios foram se enchendo da areia que jorrava das grutas. Os rios foram ficando sujos e rasos. Sem abastança de água para pescar já não tinham por que pedir nada a Santa Rita Pescadeira. Ah, chegou a luz elétrica, e quem pôde comprou sua geladeira. Numa pista corre o progresso capitalista e sua dinâmica predatória, destrutiva, que vai eliminando a dimensão telúrica à qual está ligada a crença das pessoas dessas comunidades. Noutra, uma lembrança de última hora, as melhorias modernas que trazem um pouco de conforto a vidas sofridas. São ritmos distintos, claro, mas o simples fato de que tenham sido postos a correr lado a lado dá o que pensar. Algo semelhante acontece quando a encantada olha para a velha casa de Zeca, em ruínas, um lugar onde havia sido recebida por um homem que sempre soube respeitar e dar corpo ao legado de resistência ancestral. As ruínas da casa, antes de serem uma metáfora do descaso diante da tradição, são a indicação de um primeiro salto para fora de uma vida marcada por necessidades e exploração. Elas representam uma mudança de postura, o abandono dos interditos que não davam solidez às habitações dos moradores, porque eles não tinham o direito de solidificar as raízes que cultivaram naquelas terras.
A pergunta com que o livro se debate no final é qual o lugar da encantada num mundo que não mais a reconhece. A nova geração, sabemos, já não quer a mesma vida dos pais, o que não é de se criticar, trilhando sem volta o caminho de Bibiana. Não é apenas o avanço de uma exploração capitalista desmedida que desconecta a encantada dos seus; é também a consequência de uma transformação em muitos sentidos bem-vinda, que implica uma outra relação com a terra, marcada por menos incertezas e precariedades, cujo grande signo é a nova casa, agora de alvenaria. Não é o melhor dos mundos, longe disso, mas tampouco é aquele em que viveu Zeca. O enigma é se a própria encantada tem consciência de que seu desaparecimento decorre também da redução da função protetora que o elemento religioso tinha para os desamparados, que encontravam nele, seja fora do aqui e agora, seja nas suas brechas, conforto e resistência.
Quem sempre teve algum grau de consciência de que as obrigações religiosas cobram caro era Donana, recusando ela própria as demandas impostas pelo chamado. Para ela, a tradição tem um quê utilitarista – palavra que não uso como crítica, quando pelo contrário, é um meio emancipatório: Queria ensinar [às netas] os mistérios dos feitiços e dos encantados para os problemas diversos. Queria ensinar para que se desenvolvessem sozinhas no mundo, para que ajudassem aos que precisassem, e, mais ainda, para que procurassem pela liberdade que lhes foi negada desde os ancestrais. Noutras palavras, queria ensinar-lhes o segredo da encantada por muitos motivos, exceto pela sua simples preservação, que, por sinal, pode ser castradora.
A chave dessa contradição – entre um passado que se busca preservar, por ser parte constitutiva da resistência possível dessa comunidade, e um futuro que se abre lenta e positivamente a despeito das suas consequências – está na frase de abertura da terceira parte do romance, que é narrada pela encantada: Meu cavalo morreu e não tenho mais montaria para caminhar como devo […]. Desde então, passei a vagar sem rumo arrodeando aqui, arrodeando acolá, procurando um corpo que pudesse me acolher. Meu cavalo era uma mulher chamada Miúda, mas quando me apossava de sua carne seu nome era Santa Rita Pescadeira. A metáfora religiosa usada aqui é complexa, e vale a pena ser explorada. Do ponto de vista da encantada, não ter mais cavalo a priva do seu contato com o mundo, roubando sua razão de ser. Do ponto de vista de uma Miúda, daqueles e daquelas que são vilipendiados pela vida, ser cavalo de santo, a despeito da perda de autonomia, que já era mesmo uma ficção, empodera. Já do ponto de vista do futuro, cujo horizonte de expectativa não é mais tão reduzido assim, o custo das obrigações, que limitam a vida em função das necessidades do santo e do povo, parece alto demais.
A situação não é fácil de se resolver, como o gesto final do romance faz ver. Contudo, a quadratura do círculo que Itamar Vieira Junior tenta calcular é das mais urgentes. Torto Arado é um romance que não só retoma a questão agrária brasileira, um tanto negligenciada em tempos de hipervalorização do agronegócio como locomotiva do desenvolvimento nacional, como o faz a partir do ponto de vista de três mulheres, todas elas negras e camponesas. Internamente ao núcleo central do romance, a família de Bibiana e Belonísia, o jogo de conciliações é grande e abarca a totalidade das aspirações progressistas: o conhecimento da terra com o conhecimento do mundo, a resistência ancestral com o engajamento militante. O livro permite um respiro, porque alarga o horizonte de expectativas, ainda que não encontre objetivamente solo sobre o qual se assentar. Não é que a consciência quilombola, o resultado final do processo de conciliação das aspirações, não tenha fundamento – tem, e muito. Mas esse ganho corre em paralelo de um outro conjunto de mudanças, igualmente lento, mas menos seguro, que é o tempo das esperanças da nova república, essa mesma que anda sob ataque cerrado. Essa é a inocência de Torto Arado que acalanta, a de manter de pé a crença de que, mesmo diante de todas as evidências, o hoje é melhor do que o ontem e está aberto para o amanhã.
Uma das cenas finais do romance é a despedida de Inácio, filho de Bibiana e Severo, que deixa a fazenda para fazer faculdade, um passo a mais do que havia dado a mãe. A passagem ressoa as expectativas de Que Horas Ela Volta?, filme de Anna Muylaert, lançado em 2015, o apagar das luzes da expressão cultural lulista no imaginário nacional. Por um lado, redobrar a aposta na esperança incrustada na metáfora do acesso ao ensino superior dos filhos e das filhas dos setores mais pobres pode soar inocente num livro publicado já sob o signo do bolsonarismo. Por outro, os arcos narrativos das obras são diferentes. No romance de Itamar Vieira Junior, a linhagem geracional não é rompida, como acontece no filme de Muylaert. Pelo contrário: é a continuidade entre formas distintas e intergeracionais de resistência que dá ao romance boa parte de sua força. Ao recuperar a tradição literária e social de que faz parte, Torto Arado aprendeu que, entre a catástrofe e a ausência de saída, vai um mundo.
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