Fernando Collor, hoje aliado do PT, na Casa da Dinda no final de 1992, após seu impedimento: os repórteres que expuseram seu governo passaram a defender o poder, os jornais se encheram de colunistas, os conglomerados de imprensa padronizaram a cobertura e a tecnologia facilitou a espetacularização da política. Aprendemos com o passado? FOTO: ORLANDO BRITTO_OBRITONEWS
Escândalos da República 1.2
Treze anos depois do lançamento do livro Notícias do Planalto, os jornalistas que cobriram a destitução de Collor mudaram de lado
Mario Sergio Conti | Edição 70, Julho 2012
Os jovens repórteres que expuseram o governo de Fernando Collor não apuram mais notícias do Planalto. Cada qual teve razões particulares para isso. Vontade de fazer algo diferente, ambição de ganhar mais, o avanço da idade, pressões familiares, a competição e as chatices do metiê, o bloqueio da carreira, desilusões e também ilusões, convicções políticas ou a ausência delas, as mudanças no poder e no país. Tudo isso contou e conta. Mas o denominador comum dos que abandonaram a imprensa foi terem ido trabalhar em empresas, suas ou de outros, que se dedicam a atender políticos profissionais, homens de negócio e instituições.
Agora eles são assessores de comunicação, relações-públicas e publicitários. Ministram media training. Redigem discursos. Burilam a imagem pública de sua clientela e alardeiam os seus feitos. Gerem gabinetes de crise, contratados por gente de bens denunciada nos órgãos de imprensa nos quais antes trabalhavam. Quem ontem apontava as dissonâncias entre o marketing e a realidade é hoje marqueteiro.
O pano de fundo da migração de repórteres do caso Collor para atividades de divulgação foi a abertura de um novo ciclo na disputa por notícias. Criaram-se e cresceram dezenas de companhias, algumas delas minúsculas e outras com mais jornalistas que redações da grande imprensa, as quais vendem serviços a quem quer aparecer direito em jornais e revistas, no rádio e na televisão. Continua a existir a pressão sobre profissionais e patrões, exercida por protagonistas de notícias e anunciantes da imprensa. Eles se esfalfam para que certas reportagens sejam publicadas de determinada maneira, no mais das vezes sem destaque e com a predominância da versão daquele que pressiona. Mas agora, adicionalmente, se disseminaram agências que visam controlar fatos jornalísticos já no nascedouro, ou então reagem a eles para moldá-los.
Com o novo ciclo, abriu-se um mercado para repórteres que investigaram Collor. Eles eram experientes em falar com o poder e se comunicar com o público. Detinham conhecimento prático sobre a feitura de reportagens políticas de impacto. Sabiam dos mecanismos internos da grande imprensa. E mantinham laços com aqueles que continuaram no jornalismo – repórteres, colunistas, editores e diretores de redação –, a quem poderiam recorrer para convencê-los da correção de seus contratantes.
Graças a esse currículo eles passaram a trabalhar lado a lado com pesquisadores de opinião pública, advogados, sociólogos, analistas de mercado, fonoaudiólogos, figurinistas, cabeleireiros, maquiadores e afins. Poderoso e rico, o mercado não para de crescer. Governos, ministérios, secretarias, empresas e partidos de todo porte e ideário têm verbas para assalariar quem os ajude a lidar com notícias. E gravita ao seu redor uma nebulosa de companhias e consultores que lhes presta serviços, disputando concorrências e contas carnudas.
Luís Costa Pinto, que fizera a entrevista na qual Pedro Collor acusava Paulo César Farias de ser testa de ferro de seu irmão, tornou-se consultor. Prestou serviços ao deputado João Paulo Cunha, réu no mensalão, e a Agnelo Queiroz, governador de Brasília cuja administração foi acusada de relacionamento espúrio com o contraventor Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Cachoeira. Mino Pedrosa descobrira o motorista Eriberto França, que comprovou o elo econômico entre Paulo César Farias e o presidente. E posteriormente ele trabalhou na primeira campanha de Fernando Henrique Cardoso, e foi assessor de Roseana Sarney e Joaquim Roriz, o ex-ministro de Collor que renunciou ao Senado ao ser apontado como corrupto. A sua agência de comunicação prestou serviços a Carlos Cachoeira. Mário Rosa, que revelara as desgraças da Legião Brasileira de Assistência presidida por Rosane Collor, virou gerente de crises. Ele participou de campanhas eleitorais e foi consultor de Ricardo Teixeira, quando este era presidente da Confederação Brasileira de Futebol, e de Daniel Dantas, dono do banco Opportunity. Assim como Costa Pinto, Rosa foi contratado por Fernando Cavendish, ex-proprietário da empreiteira Delta, implicada nas traficâncias de Cachoeira. Expedito Filho relatara o exibicionismo da corte collorida e registrara as acusações de Renan Calheiros ao presidente, e passou a atuar em relações públicas. Gustavo Krieger, que levantara os gastos do porta-voz Cláudio Humberto Rosa e Silva num cartão de crédito, foi chamado a dirigir a campanha publicitária de Gabriel Chalita, do PMDB, à prefeitura paulistana.
Primeiro candidato a usar o marketing de maneira sistemática, Fernando Collor foi precursor da nova constelação. Ele posou para fotógrafos e câmeras de televisão em jatinhos, carros esportivos importados, fazendo exercício e com livros debaixo do braço. Vestiu fardas marciais e camisetas estampadas com mensagens de autoajuda. Ostentou adereços do luxo cosmopolita e adotou uma estudada postura de galã. Collor foi mais um atualizador de técnicas de exploração de imagens praticadas nos países centrais e menos um reprodutor do atraso dos sertões alagoanos. Na sua derrocada, os recursos de ilusionista contaram pouco, e de quase nada valeu a proximidade com patrões e o apoio de publicações e emissoras. O que acabou por se impor foram as manifestações populares contra o presidente, que se alimentaram de reportagens mostrando que a realidade do Planalto e da Casa da Dinda divergia da efígie higienizada que Collor projetava.
Um dos ensinamentos que políticos, empresários e jornalistas tiraram da eleição e da queda do presidente, portanto, foi a necessidade de reforçar a influência sobre aquilo que reverbera na imprensa e na opinião pública. Afinal, apesar de pioneiro, Collor fora um amador que catara aqui e acolá procedimentos de marketing dispersos no ar contemporâneo. Daí o fortalecimento daquilo que ele jamais teve: profissionais em tempo integral e sólidas empresas de comunicação política, nas quais a ideologia se subordina à técnica. Mais perceptível nas campanhas eleitorais, o fenômeno é internacional, e o Brasil dele participa. Volta e meia publicitários americanos desembarcam aqui, chamados a intervir na propaganda de partidos. Da mesma forma, marqueteiros brasileiros trabalham para candidatos da América Latina e da África.
Exemplar tanto do abandono do jornalismo quanto da nova configuração político-publicitária é a trajetória de João Santana Filho. Na juventude, ele esteve ligado à música de vanguarda e ao pop, chegando a ser compositor na Bahia, onde nasceu. Formou-se em jornalismo, trabalhou em revistas e jornais, estudou política e relações internacionais nos Estados Unidos e chefiava a sucursal da IstoÉ em Brasília no governo Collor. Ali, teve papel fundamental na reportagem sobre o motorista Eriberto França. Além de um dos autores do furo que definiu o destino do presidente, ele é afável, organizado, criativo e bom redator. Tinha atributos para se tornar um quadro da imprensa. Mas a trocou pela propaganda política.
João Santana se associou a Duda Mendonça – que chefiou a primeira campanha publicitária vitoriosa de Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto – e depois se afastou dele. Mendonça admitiu algum tempo depois, numa Comissão Parlamentar de Inquérito, que recebera no exterior cerca de 10 milhões de reais de pagamento e não os declarara ao fisco. Lula o substituiu por Santana na campanha de sua reeleição. A equipe de comunicação com a qual o ex-jornalista trabalhou tinha 150 pessoas. Ele dispunha de levantamentos de opinião pública diários, alicerçados em entrevistas de 700 pessoas em todo o Brasil e complementados por pesquisas qualitativas com oito grupos de doze integrantes, também elas realizadas todos os dias. Em dois meses e meio, o instituto Vox Populi, que sondara os humores da população para Collor, fez mais de 60 mil entrevistas para que Santana modulasse a propaganda de Lula, e criasse os slogans “Lula de novo, com a força do povo” e “Não troco o certo pelo duvidoso”. Ele contou a Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, que recebeu 13,750 milhões de reais pela reeleição de Lula.
Na mesma entrevista, Santana fez uma distinção: o marketing “adapta o produto ao gosto do consumidor. A publicidade é o instrumento que vende o produto propriamente”. E rebateu seus críticos:
A percepção de que esta foi uma campanha eleitoral vazia, sem debate e inócua é um equívoco. Daqui a dez ou vinte anos, ao se comparar esta campanha com outras anteriores, vão concluir que foi uma das mais politizadas que o país já teve. Não houve rendição ao marketing. O eixo central foi crescimento com distribuição de renda, diminuição das desigualdades entre as regiões e as pessoas, inserção soberana do Brasil no mundo e outros. Há discussão essencialmente com mais oportunidade política do que essa? Dizer que é uma pobreza porque foi reduzido a slogan é novamente o baixo entendimento que existe entre o que é propaganda e marketing político.
João Santana virou consultor de imagem de Lula. Criou para o Planalto as marcas PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, e Minha Casa Minha Vida. Dirigiu a propaganda na campanha de Dilma Rousseff, que contou com 200 pessoas na área de comunicação e custou, oficialmente, 44 milhões de reais. Técnicos da campanha de Barack Obama trabalharam na sua equipe, transferindo tecnologia de ferramentas da internet. Russos se ofereceram para ensinar como Vladimir Putin carreou votos para o seu sucessor, e foram rechaçados. Santana escreveu discursos e dirigiu os principais pronunciamentos em cadeia televisiva de Lula no Planalto, e fez o mesmo para Dilma. Levou a sua consultoria a candidatos de plataformas distintas na Argentina, Angola, República Dominicana, Peru, Venezuela e em El Salvador, onde ajudou a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional a eleger Mauricio Funes presidente, também ele um ex-jornalista.
Collor foi desbravador bem-sucedido numa outra frente, a das campanhas eleitorais criminalizadas. No pleito anterior para presidente, quase trinta anos antes, a televisão era rudimentar e operava regionalmente como o rádio, não havia horário eleitoral gratuito, as pesquisas de opinião pública tinham dimensão reduzida e jatinhos ainda não cruzavam os céus levando os candidatos e suas entourages país afora. As campanhas se davam por meio de jingles de rádio e comícios, acompanhados por repórteres cujas matérias demoravam dias para chegar a jornais sem distribuição nacional. Empregando lances de marketing grosseiros e intuitivos – a vassoura que varreria a corrupção, a caspa no ombro, o linguajar abstruso –, Jânio Quadros pôde vencer o marechal Henrique Teixeira Lott, em 1960, sem que fosse necessária uma grande estrutura de comunicação.
Como a propaganda era modesta, foi menor o peso do poder econômico na definição dos votos. Com os programas eleitorais de televisão e rádio, comícios com músicos pagos, carreatas e viagens incessantes, os custos tornaram-se siderais. Cresceu na mesma medida o papel da grande financiadora de campanhas: a burguesia que faz negócios com o Estado. E se alastraram métodos delituosos de arrecadação de fundos. O caixa dois adquiriu aceleração própria, perpassando o conjunto dos partidos. Serviu e serve tanto para cacifar os postulantes num pleito como para mantê-los no poder e preparar futuras disputas nas urnas. Foi isso que Collor disse, recorde-se, quando Paulo César Farias lhe perguntou o que deveria fazer com os 60 milhões de dólares que sobraram dos 160 milhões arrecadados na campanha:
Vai administrando o dinheiro. Use o que for necessário nesse período de transição até a posse. Pague os salários, as viagens e as hospedagens da nossa equipe. O resto você guarda para a gente gastar na campanha eleitoral do ano que vem.
Num jantar no Rio, em 1992, Paulo César Farias riu à beça quando, a propósito de empreitadas eleitorais, repeti-lhe a observação de Trotsky acerca da casta stalinista, que nasceu nos primeiros anos do regime soviético, num quadro de penúria no qual os bolcheviques foram obrigados a repartir magros recursos: quem tem algo a dividir nunca se esquece de si mesmo.
Assim como os 60 milhões de dólares de Collor e PC Farias serviram, inadvertidamente, de carburante para a futura derrubada do presidente e para a prisão do seu caixa, outras arrecadações, sobras de campanha e dívidas eleitorais estiveram no início de muitos dos escândalos políticos que pipocam desde então. Há maneiras, vigentes em outros países, de restringir o poder econômico e baixar gastos nas campanhas. Seja no Executivo seja no Congresso, não houve interesse – ou força dominante – para que fossem adotadas no Brasil. Quem se beneficia de um sistema não tem por que reformá-lo.
Ficou para trás a campanha de Lula no ano em que o povo alemão derrubou o Muro de Berlim. Ela usou criativamente a linguagem agitprop e brechtiana da esquerda e foi conduzida pelos seus militantes e simpatizantes. Pôs no horário eleitoral a Rede Povo e subverteu o padrão de qualidade da Rede Globo. Atraiu de graça atrizes e atores da emissora, custou menos de 1 milhão de dólares e levou o candidato ao segundo turno. O modelo de propaganda que vingou foi o de Collor: dispendioso e profissional, bancado em boa parte ilegalmente, dispondo de apetrechos tecnológicos de última geração, sondagens de opinião pública a rodo, e com a forma da publicidade de mercadorias.
Junto com a forma, que tornou as campanhas de Lula e Dilma parecidas com as de seus adversários, mudou o conteúdo da política do Partido dos Trabalhadores. Ele foi alterado por fatores externos – desencadeados pelo desmoronamento do mundo nascido com a Revolução Russa – e internos, e também pelo desígnio dos seus formuladores. “Havia uma grande dúvida se o PT era um partido de esquerda, e o governo Lula acabou sendo um governo extremamente conservador”, declarou o banqueiro Olavo Setúbal em 2006, poucos meses antes da reeleição presidencial. “Não tem diferença do ponto de vista do modelo econômico. Eu acho que a eleição do Lula ou do Alckmin é igual. Os dois são conservadores. Cada presidente tem suas prioridades, mas dentro do mesmo leque de premissas econômicas.”
O empresário Emílio Odebrecht, que organizara um jantar em sua casa para PC Farias e esposa, e cuja empreiteira fizera doações a Collor, retomou o tema no início de 2008:
Nós quebramos um tabu enorme, que era a chegada de um presidente de esquerda e, mais ainda, um líder dos trabalhadores, e esse tabu não existe mais. O investidor estrangeiro sempre perguntava como se comportaria o Brasil com um presidente com esse perfil de esquerda, com essa ideologia, e veja o que aconteceu. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para o nosso país, sem dúvida nenhuma. O investidor estrangeiro viu que os contratos foram preservados, que a linha ideológica é até mais rígida, em determinados aspectos, do que a dos anteriores. O Brasil tem mais consistência e inspira outro nível de confiança ao investidor. Essa quebra de tabu tranquilizou os investimentos, e o que se viu é que esse governo não tem nada de esquerda. O presidente Lula não tem nada de esquerda, nunca foi de esquerda.
Na época da campanha contra Collor havia menos colunas, o que levou os editoriais do Estadão e da Folha defendendo a saída do presidente a sobressaírem, reforçando a identidade dos jornais e a sua posição institucional. E a opinião dos comentaristas não pesava tanto quanto as reportagens – se bem que um deles, Ricardo Noblat, do Jornal do Brasil, tenha sido demitido por criticar Collor na campanha eleitoral.
O colunismo se disseminou desde então. Numa contagem recente, a Folha dispunha de 113 colunistas. Mesmo que enfraqueça a voz própria de uma publicação, e eventualmente prevaleça sobre a reportagem, o colunismo é uma tradição brasileira que propicia maior diversidade aos órgãos de imprensa. Mas convém não esquecer que ele custa menos que a reportagem. Para fazer esta última é preciso procurar fontes, entrevistar, viajar, pesquisar, checar e editar o que tiver sido apurado. Para escrever colunas basta um computador. E o recurso a dezenas de comentaristas não é prática dominante na boa imprensa internacional. The New York Times tem doze colunistas; Le Monde, nenhum. São jornais que também enfrentam apertos. Numa maré montante de dificuldades, o diário americano tomou emprestados 250 milhões de dólares do bilionário mexicano Carlos Slim, que se tornou um dos seus maiores acionistas. O francês cortou repórteres, páginas e circulação, e os jornalistas perderam poder na empresa que o adquiriu quando uma onda de crise quase o punha a pique.
Muitos articulistas brasileiros publicam suas colunas em diversos jornais, que as reproduzem em seus sites, onde são copiados e se espalham pela internet. A ausência de exclusividade enfraquece a identidade dos diários. E não só ela. Conglomerados da imprensa buscam padronizar enfoques das suas publicações. As Organizações Globo, por exemplo, promovem reuniões semanais dos seus diretores de redação para definir a abordagem de certas notícias e iniciativas da empresa, o que de maneira alguma é feito ao arrepio do pensamento dos seus proprietários. Até se traduziu um termo para batizar a prática: sinergia.
O grupo capitaneado pelo Le Monde, no entanto, preserva a identidade dos órgãos sob o seu guarda-chuva, como La Vie, revista semanal cristã que circula há décadas, e Le Monde Diplomatique, que propugna uma globalização à esquerda. Nos Estados Unidos, a editora Condé Nast resguarda a distância entre The New Yorker e Vanity Fair. O que ajuda a entender que o diretor de redação da primeira tenha dado na revista o seu apoio à invasão do Iraque, enquanto em Vanity Fair isso não ocorreu, e o seu diretor se tornou um afiado crítico da guerra.
Fernando Collor refez a vida particular. Separou-se de Rosane e casou-se com a arquiteta alagoana Caroline Medeiros. Tatuou o nome dela no pulso esquerdo e tiveram gêmeas, Celine e Cecile. Ele é pai de outros três filhos, Arnon Affonso e Joaquim Pedro, com Lilibeth Monteiro de Carvalho, e Fernando James, que teve fora do casamento, com Jucineide Braz da Silva, e reconheceu legalmente ao deixar a Presidência.
Collor não dispõe mais dos préstimos de uma figura façanhuda como Paulo César Farias. Todas as investigações posteriores sobre o assassinato do gerente do seu caixa dois levaram à mesma conclusão: foi um crime passional, cometido pela namorada que ele pretendia abandonar na noite em que morreu. Em nenhum levantamento jornalístico ou policial surgiram testemunhas nem provas de que PC Farias tenha sido vítima de um complô.
Condenado pelo Congresso por crime de responsabilidade, Collor foi impedido de exercer função pública durante oito anos, mas o Supremo Tribunal Federal o absolveu da acusação de corrupção passiva. Ainda tem uns poucos processos pendentes e retomou a carreira política. Disputou duas vezes o governo de Alagoas e foi derrotado. Em 2007, elegeu-se senador pelo obscuro Partido Renovador Trabalhista Brasileiro, agremiação que apresenta a legenda a candidatos nanicos. Já no primeiro dia de mandato, Collor trocou-o pelo Partido Trabalhista Brasileiro, da base do governo. O caminho de Swann encontrou-se com o de Guermantes: Lula e seu adversário de 1989 passaram a apoiar um ao outro, e a Dilma Rousseff. Terminaram no mesmo palanque e, sorridentes, trocaram afagos em público.
Senador discreto e aplicado, Collor prefere a atividade dos comitês a pronunciamentos em plenário. Fala pouco sobre o passado e quase nunca à imprensa. Mas falou de Veja. Membro da Comissão Parlamentar de Inquérito criada para investigar Carlos Cachoeira, ele defendeu a convocação do jornalista Policarpo Junior, para que o redator-chefe da revista explicasse o seu relacionamento “de quase uma década” com o contraventor. E lançou no Parlamento um repto ao dono de Veja, a quem se referiu com um termo da máfia italiana, “capo de um bando de dez”:
Em nome da verdade, desafio o chefe maior desse grupelho, o senhor Roberto Civita, a comparecer também à Comissão para falar da coabitação que, a seu mando, a revista de sua propriedade e alguns de seus jornalistas mantêm com o crime organizado. Se a razão do senhor Civita é tão patente e lúcida, se sua defesa da liberdade é tão consistente, não terá este capodecina qualquer receio de se manifestar pessoalmente.
Collor lembrou o que a imprensa fez quando da sua destituição do Planalto, e encerrou a arenga com um tico de estrídulo:
Tenho sistematicamente me manifestado contrário a qualquer controle dos meios de comunicação. Sempre defendi a liberdade de imprensa, o contraditório, a divergência, o debate e a transparência dos fatos. Mesmo na Comissão Parlamentar de Inquérito em que me alvejaram, sempre abri todas as informações, jamais cerceei o trabalho dos meios de comunicação, e, assim mesmo, eles se valeram de atitudes criminosas, desonestas, fraudulentas. Por isso, ninguém tem autoridade para dizer que eu não defendo a liberdade de imprensa. Ninguém!
Como senador, Collor não foi alvo de denúncias. Salvo uma, na qual o acusaram de uso indevido de um carro do Senado durante o recesso parlamentar. Ele explicou que o veículo servia a seu gabinete e o caso não teve consequência. Foi um episódio de pouca monta se comparado às negociatas que se repetem continuamente: anões do orçamento, privatização das teles, compra do sistema de monitoramento aéreo da Amazônia, obtenção de votos para a emenda da reeleição, informações privilegiadas na desvalorização do real, mensalão, demissão de seis ministros suspeitos de corrupção no primeiro ano do governo Dilma, o conluio do senador Demóstenes Torres com Cachoeira e asseclas etc.
Paulatinamente, as mutretas adquiriram som e imagem, viraram Escândalos da República 1.2. As inovações tecnológicas deixaram marcas na paisagem. Minicâmeras, microfones direcionais, sistemas que grampeiam simultaneamente dezenas de telefones, circuitos de vigilância e celulares que captam cenas mal iluminadas deram concretude às malversações. O governador flagrado no seu gabinete botando na mala maços de notas ou outro tomando champanhe aos berros com um empreiteiro que usa guardanapo na cabeça são mais eloquentes que a cópia borrada de um fac-símile comprovando falcatruas em Canapi. O sujeito entra num prédio para pegar propina e dias depois o que fez pode ser visto na internet e na televisão. A espetacularização ficou mais fácil.
E mais perigosa. O uso de gravações pela imprensa aproxima repórteres de policiais e criminosos. Uns gravam sob a proteção da lei (agentes de operações espalhafatosas da Polícia Federal) e outros ilegalmente (gangues que vivem de achaques e do comércio do que roubam). E ambos têm interesses próprios ao passar grampos e vídeos a jornalistas. Cria-se um laço no qual a promiscuidade e a manipulação são as pontas da corda: dou a fita, mas quero uma reportagem; dê-me a gravação e eu te protejo. É grande o risco de alguém se enforcar.
Num poema dos anos 40, W. H. Auden escreveu:
Aprendemos com o passado? A polícia,
Os estilistas de moda, todos os que
Manejam os espelhos dizem: Não.
Pois Notícias do Planalto é uma tentativa de dar resposta positiva à pergunta do poeta. O livro foi pesquisado e escrito em quase dois anos de dedicação integral, num período sabático, e se beneficiou do quanto aprendi na cobertura da campanha, da Presidência e do impedimento de Collor. A vontade era descobrir novas notícias e sistematizar numa narrativa o que fizeram jornalistas e governantes naquela quadra. Para evitar que a experiência se perdesse, e para que se pudesse aprender algo com ela.
Como a imprensa não tinha nada digitalizado, o trabalho começou pelo estudo da bibliografia e de 50 quilos de recortes de jornais e revistas, bem como de gravações de programas eleitorais e de telejornais. Constatei que, para entender o jornalismo de então, seria preciso recuar algumas décadas e examinar a formação dos órgãos de imprensa, e assim sendo investigar quem foram os homens que os construíram. Fiz uma lista dos casos, problemas e histórias que abordaria, e das pessoas que deveria procurar. Levei por escrito as questões a cada um dos 141 entrevistados e anotei as respostas. Fiz 43 perguntas a Boris Casoy. A Collor, 150. Algumas entrevistas se estenderam e tiveram de ser desdobradas em dois ou três encontros. Elas foram feitas em São Paulo, no Rio, em Brasília e Maceió. Questões e respostas foram transcritas em seguida num computador. Todas as transcrições estão guardadas, mas não serão franqueadas porque prometi aos entrevistados não revelar quem me contou o quê.
A pesquisa e as entrevistas resultaram num material bruto enormemente rico. Mas considerações quanto ao tamanho e à complexidade do livro não explicam a narração adotada. Achei mais produtivo expor o máximo do material sem emitir opiniões. Acredito que uma visão acerca do que levantei preside e permeia a narrativa. Poderia ter feito uma análise do processo, ou ao menos das questões mais espinhosas apresentadas no livro. Mas a intenção – e ninguém deve acreditar apenas nas intenções de um autor: o que vale é o escrito – foi que o próprio leitor analisasse e chegasse a conclusões. A começar pelo leitor que acompanha a imprensa e pelo jornalista que a faz.
Ficaram de fora considerações sobre a relação entre empresários da imprensa e jornalistas, tema bastante abordado quando do lançamento do livro, em 1999. Houve quem dissesse que Notícias do Planalto foi condescendente com os patrões, e mesmo os protegeu, sobretudo por descrever as suas características pessoais e por mostrar o que os levou a tomar tal ou qual atitude. E outros acharam o contrário, que os resguardados foram os jornalistas, ou parte deles.
As avaliações conflitantes e mesmo o livro têm raízes no chão em que se assenta a grande imprensa. Uns são proprietários e outros empregados, mas cada edição de um noticioso é o fruto intelectual da ação comum de ambos, e depende de um acordo estabelecido previamente entre eles. A ação comum flui célere em dias de calmaria política e tende a se crispar quando ocorrem crises. As posições políticas se polarizam e divergências se espalham entre empresários e dentro das redações. A eleição de Collor e as revelações que culminaram na sua saída do Planalto foram crises que provocaram tomadas de posição de ambos os lados, e no interior deles, rearranjando acordos estabelecidos.
De todo modo, ninguém perdeu o emprego por ter escrito isso ou aquilo de Notícias do Planalto. Exceto o autor do livro. Trabalhei quinze anos em Veja, e nos quase sete em que fui o seu diretor de redação a tiragem dela passou de 900 mil para 1.250 milhão de exemplares semanais. Preparava na Editora Abril uma revista mensal de reportagens e artigos, para um público menor, quando o livro saiu, o que fez com que eu fosse demitido de pronto e o projeto cancelado. A vida seguiu adiante, trabalhei na Folha, fui correspondente em Paris da Rádio Bandeirantes, apresentador na Band News FM, fiz frilas para o Estadão e Bravo!, hoje estou no Roda Viva e sou repórter de piauí.
Aprendemos com o passado? Quiçá. Como disse outro poeta, T. S. Eliot:
O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos presentes talvez no
tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo
passado.
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