ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Escola de elfos
O poder dos duendes na Islândia
Fernanda Ezabella | Edição 129, Junho 2017
Magnús H. Skarphéᵭinsson nunca viu um elfo, nunca cruzou com um gnomo e nunca avistou uma fadinha. “Mas que eles existem, existem”, garante o antropólogo islandês de 62 anos, numa pequena sala abarrotada de livros antigos, bibelôs coloridos e delicadas luminárias.
Skarphéᵭinsson faz lembrar vagamente o Papai Noel: é um sujeito gordinho, de barba branca, óculos minimalistas sem aro e sandália de couro com meia grossa. Está sentado de costas para a janela, no 2º andar de um prédio a 3 quilômetros do centro turístico de Reykjavík, a capital da Islândia. Lá fora, os ventos gelados de janeiro varrem a ilha. Os corredores do apartamento estão entulhados de caixas de papelão, arquivos de quase quarenta anos de pesquisas sobre seres feéricos.
À frente do antropólogo, treze turistas norte-americanos olham curiosos para a bagunça, sentados em cadeiras espremidas num espaço exíguo. Cada um deles tem em mãos uma apostila de 65 páginas que deverá orientar os seus estudos intensivos naquele dia. “Em uma hora vamos fazer uma pausa para panquecas e café”, anuncia o professor, mal começa a falar – mas o alerta é renovado com frequência, embaralhando o tempo, sempre que ele parece se sentir inseguro quanto à atenção da classe.
Faz décadas que Skarphéᵭinsson coleciona histórias de duendes, elfos e fadas. Há 29 anos, ele criou a Elfschool para compartilhar contos do folclore islandês e manter vivas as histórias de amizade entre humanos e “espíritos da natureza”. Garante já ter entrevistado mais de 900 compatriotas com o objetivo de coletar experiências de contato com esses seres fantásticos – e costuma telefonar de volta, a cada três anos, para rechecar os fatos. “Nunca encontrei um mentiroso”, afirma. “Peço para me contarem tudo de novo, pergunto coisas bem específicas. Se os detalhes continuam os mesmos, a história é real.”
Muito antes da crença nos poderes milagrosos do crédito bancário – uma narrativa que levou a Islândia à bancarrota em 2008 –, esse povo nórdico já tinha fama de possuir forte conexão com entidades espirituais, aqui chamadas de huldufólk, literalmente “pessoas escondidas”. O nome abrange tipos diferentes de elfos, gnomos, fadas e duendes, além do próprio gênero “pessoas escondidas” – gente como a gente, mas sempre vestida em roupas antiquadas, típicas dos camponeses, e que não aparece para todo mundo.
Os huldufólks povoam os contos medievais da Islândia desde a época dos vikings, os primeiros a colonizar o arquipélago, no século IX, em narrativas que passam de geração a geração. Na maior parte de sua história, os islandeses viveram de atividades ligadas à terra e ao mar. As crenças ajudavam a explicar os humores da natureza, num pedaço do mundo exposto à atividade de vulcões, gêiseres e terremotos. Ainda hoje mais da metade da população local acredita em “pessoas escondidas”. É comum ouvir relatos de obras de engenharia que foram interrompidas ou alteradas para não atrapalhar certas rochas, consideradas casas de duendes pelos vizinhos.
Skarphéᵭinsson explica que os elfos já salvaram centenas de vidas de islandeses ao longo dos séculos. Era esse o tema de sua primeira história, naquela tarde. Os personagens eram os moradores de uma pequena vila, que viviam da pesca. Alguns anos atrás, um deles observava com curiosidade o fato de que, todos os dias, duendes saíam para o mar no mesmo horário que os pescadores. Houve uma manhã, contudo, em que os duendes não apareceram. Isso apesar de ser um dia de sol e com condições ideais para o trabalho. O pescador achou estranho e alertou os companheiros, que fizeram troça do colega, mas resolveram tomar precauções mesmo assim. Em vez de ir para o alto-mar, jogaram as redes num lugar mais seguro, perto das rochas. Antes do almoço, uma tempestade violenta alcançou o vilarejo, deixando casas e ruas debaixo d’água. Os pescadores voltaram sem peixes, mas a tempo de ajudar familiares e vizinhos. Desde então, só se entra no mar se os duendes também o fizerem.
O antropólogo conta outras histórias do mesmo tipo, uma atrás da outra. Após um pouco mais do que uma hora de palestra chega afinal o momento do intervalo, e Skarphéᵭinsson vai buscar as prometidas panquecas. Volta com generosas porções da iguaria, recheadas com creme. Traz também bules de café, pães quentinhos e bastante manteiga.
O grand finale do curso vem em seguida, quando Skarphéᵭinsson apresenta à turma um de seus “informantes”. Olafur Thorarensen, um homem de 50 e poucos anos, chega depois que os alunos já limparam as travessas de comida. Veste-se com calça de couro, tem as unhas pintadas de preto, rabo de cavalo e dedos cobertos de anéis. É magro, tido mesmo entre os islandeses como meio maluquinho, não chegou a completar o ensino formal. É também um bom amigo, há muitos anos, do antropólogo. Diz viver cercado de entidades em sua casa. “Elas só não entram no banheiro e no meu quarto”, explica Thorarensen.
Ansiosa, a classe cobre o visitante de perguntas. Ele não fala inglês e espera a tradução, feita por Skarphéᵭinsson. Um dos alunos quer saber se temos companhia na sala, de um desses seres que só Thorarensen vê. “Ele disse que aqui não tem ninguém. Ficaram na porta, do lado de fora”, responde o professor. Alguém então levanta uma pergunta importante: Houve por acaso algum elfo ou duende que chegasse a prever a crise de 2008? O antropólogo responde pelo amigo: “Ele me avisou da falência dos bancos sete anos antes, mas eu não acreditei”, diz, com um sorriso amarelo no rosto.
Mas será que pelo menos Olafur Thorarensen pôde salvar algum dinheiro antes que os bancos quebrassem? Mais uma vez o antropólogo se abstém de consultar o visitante e responde com segurança: “Olafur nunca teve dinheiro.” Parece constatar uma obviedade, como a existência de pessoas escondidas.
Já do lado de fora da casa, na tarde gelada de Reykjavík, os estudantes encontram alguns duendes. Mas são do tipo que todo mundo pode ver, anões de jardim, que enfeitam a entrada do prédio – e pelo menos se prestam a tirar uma selfie.
Fernanda Ezabella, jornalista, é correspondente da Folha de S.Paulo em Los Angeles