CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Escombros e promessas
O Iphan volta a se engajar na reconstrução do Museu Nacional, destruído pelo fogo em 2018, no Rio de Janeiro
Bernardo Esteves | Edição 198, Março 2023
Os funcionários do Museu Nacional estavam alvoroçados naquela sexta-feira, dia 3 de fevereiro, com a iminente chegada de um visitante muito aguardado: o sociólogo e gestor cultural Leandro Grass. Três dias antes, ele tinha tomado posse como presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a autarquia do governo federal responsável por zelar pelos bens culturais do país. Os funcionários queriam causar boa impressão ao visitante, que tem o poder de facilitar – ou complicar – o trabalho de reconstrução do museu. Em setembro de 2018, um incêndio destruiu parte do prédio principal, o Palácio de São Cristóvão, e 85% do acervo da instituição.
Para receber Grass, um pequeno auditório foi improvisado em meio aos escombros, numa área que no passado abrigava gabinetes dos professores de antropologia. Quando os visitantes se acomodaram, o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do museu, foi o primeiro a falar. “Vocês não têm ideia de como a gente buscou por esse Iphan”, disse ele, olhando na direção de Grass.
Kellner renovou o convite para que o Iphan fizesse parte do comitê institucional do Projeto Museu Nacional Vive, um conselho consultivo que acompanha o processo de reconstrução. O mesmo chamado foi feito várias vezes à gestão anterior do Iphan, mas a autarquia não se deu ao trabalho de responder. Grass não esperou o diretor concluir sua fala para aceitar o convite. “Onde é que eu assino?”, disse. Kellner abriu um sorriso que não cabia em seu rosto: “É um prazer enorme ter vocês com a gente.”
Antes da apresentação, Grass visitou as ruínas do Palácio de São Cristóvão, que serviu de moradia para a família real antes de virar a sede do mais antigo museu do Brasil, fundado em 1818 por dom João vi. As cicatrizes do incêndio continuam muito visíveis: as paredes guardam manchas pretas, há pilhas de entulho em alguns ambientes e só parte das lajes que cederam foram refeitas. Na sala onde o fogo começou, depois de um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado, vigas metálicas retorcidas estão à mostra. A intenção é que continuem assim após a reinauguração, como um testemunho da violência do incêndio.
Em fevereiro de 2019, cinco meses após o fogo, a piauí foi o primeiro veículo jornalístico brasileiro a visitar os escombros do Museu Nacional. De volta ao palácio, quatro anos depois, a impressão é que a reconstrução do interior do prédio progrediu pouco. Mas houve avanços na recuperação da cobertura, no reforço da estrutura e na restauração das esquadrias, como assinala a arquiteta Lucia Basto, gerente do Projeto Museu Nacional Vive. Também a fachada do palácio foi restaurada para a celebração do bicentenário da Independência, em setembro de 2022. “Foi uma trabalheira louca”, diz Basto.
Em 2018, Jair Bolsonaro, então candidato a presidente, reagiu ao incêndio do Museu Nacional dois dias depois do desastre. “Já pegou fogo. Quer que faça o quê?”, declarou. “O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre.” Durante seu governo, uma das atividades do Iphan foi criar um grupo de trabalho para discutir o valor cultural de armas de fogo. O conselho consultivo da autarquia passou quase dois anos sem se reunir – a maior paralisia em 65 anos, como mostrou a Folha de S.Paulo.
Em 2019, Bolsonaro criou caso porque o Iphan interrompeu a construção de uma filial da loja Havan em um local onde ocorreu uma descoberta arqueológica. “O Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô!”, esbravejou o presidente em uma reunião ministerial de 2020 cujo conteúdo foi divulgado por determinação do STF. Tempos depois, o ex-presidente afirmou, em discurso na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que havia demitido diretores do órgão por causa do episódio. “O Iphan não dá mais dor de cabeça para a gente”, disse.
Para a superintendência do órgão no estado do Rio de Janeiro, que teria a responsabilidade de lidar com a restauração do Museu Nacional – protegido pelo patrimônio nacional desde 1938 –, Bolsonaro nomeou o empresário Olav Antonio Schrader, ligado ao movimento monarquista e à Associação de Moradores e Amigos de São Cristóvão. Schrader encampou a ideia de transformar o Palácio de São Cristóvão num centro turístico dedicado à memória da família imperial. A iniciativa não foi adiante.
A gestão de Schrader “não foi muito proativa para a reconstrução do Museu Nacional”, diz Kellner. O diretor relata que o ex-superintendente do Iphan não visitou as obras e não atendeu às solicitações para discutir o projeto de restauração. “Ele não defendeu os interesses do patrimônio e quis colocar seus interesses pessoais acima do cargo.” Schrader não respondeu às tentativas de contato da reportagem.
O estudo preliminar de arquitetura para a reforma do palácio foi submetido à superintendência do Iphan em 2021 e indeferido mais de um ano depois – o prazo estipulado por lei para que a autarquia se manifestasse era de 45 dias (as obras que vêm sendo executadas já tinham sido aprovadas pelo instituto). “Sentaram em cima do projeto”, diz Ronaldo Fernandes, diretor-adjunto técnico-científico do museu. Também houve lentidão na aprovação dos projetos de captação de recursos na iniciativa privada por meio da Lei Rouanet.
Além dos entraves institucionais, o Museu Nacional foi enredado na trama de notícias falsas – e às vezes absurdas – veiculadas pelas redes bolsonaristas. Circulou em Brasília o rumor de que a Universidade Federal do Rio de Janeiro, à qual o museu está vinculado, teria planos de transformar o Palácio de São Cristóvão num shopping center em homenagem a Marielle Franco. A história cresceu a ponto de a direção do museu achar prudente convocar uma reunião com representantes da Secretaria Especial da Cultura para desmentir o disparate.
Leandro Grass, o novo presidente do Iphan, é filiado ao PV, foi deputado distrital e ficou em segundo lugar na disputa pelo governo do Distrito Federal nas eleições de 2022. Após a visita ao Palácio de São Cristóvão, ele disse à piauí que a autarquia estava enfim se reintegrando aos esforços de reconstrução do museu. “Vamos entrar no circuito como uma instituição importante na atração de forças e energias positivas para que o processo todo ande mais rápido.” Grass pretende criar um comitê para dar apoio à reconstrução e acredita que o Iphan pode ajudar o museu a captar recursos pela Lei Rouanet.
O apoio de empresas vai ser importante para viabilizar a reconstrução do museu. De acordo com os números que foram apresentados a Grass naquela tarde de fevereiro, ainda falta levantar 168 milhões dos 433,3 milhões de reais previstos no orçamento das obras. O cronograma prevê a reabertura do museu em 2027 – dois anos a mais do que o indicado nas estimativas iniciais, e já no início do próximo mandato presidencial.
Kellner gostaria de concluir o projeto antes disso. Durante a apresentação ao presidente do Iphan, ele afirmou que é possível terminar as obras até 2026. Lucia Basto, que está gerenciando a restauração, protestou: “Não me comprometa! Não vendo o que não posso entregar.” Dias depois, em entrevista à piauí, ela justificou a cautela alegando os imprevistos que podem surgir numa reforma complexa como essa. “Podemos tentar antecipar etapas, mas jamais falar em inauguração antes de 2027.”