ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Escrito nas estrelas
Uma ucraniana procura emprego
Alejandro Chacoff | Edição 104, Maio 2015
Rivne é uma cidade de aproximadamente 250 mil habitantes, no oeste da Ucrânia. A sua volta gravitam cidadezinhas menores, ao redor das quais orbitam vilarejos minúsculos, que integram uma zona militar. Anya Prosiuk cresceu num desses minúsculos vilarejos, com 500 habitantes e sem nome próprio – identificado apenas por um código de letras e algarismos. “Em teoria é para ser um lugar secreto, mas não sei quão secreto ele é”, disse Anya, quando nos encontramos num café de São Paulo, certa manhã de abril.
Ao longo do século XX, por sua posição estratégica no mapa, Rivne passou de mão em mão: poloneses, alemães, revolucionários bolcheviques, todos tiraram sua casquinha. Durante a ocupação nazista, entre 1941 e 1944, a cidade ficou conhecida como a capital da Ucrânia alemã, a Reichskommissariat Ukraine. Foi também dos arredores de Rivne que, no final do ano passado, saíram os tanques e armamentos que rumaram para a outra ponta do país, onde forças ucranianas e russas disputaram o controle da Crimeia, outro brinquedo geopolítico de potências. O vilarejo de Anya tem apenas duas ruas, e os tanques sempre passam por lá. “À noite o barulho é ensurdecedor”, ela lembrou. “É terrível.”
“Chegar ao Brasil foi uma questão de destino”, Anya disse, em inglês, empregando a linguagem esotérica que lhe é peculiar. A loira de 25 anos, olhos azuis, maçãs do rosto salientes e nariz um tantinho adunco é irrefutavelmente eslava. Formada em direito pela Universidade Nacional de Ostroh, em março passado ela começou um estágio na Sidera Consult, uma consultoria de comércio internacional de São Paulo. Na manhã em que conversamos, Anya contou, entre gargalhadas esparsas, como tenta viver longe de seu país.
“Nos últimos anos a economia da Ucrânia está horrível. Salários baixíssimos, câmbio totalmente desvalorizado.” Não há bons empregos, muito menos em comércio internacional, uma área congenitamente dependente de relações cordiais entre vizinhos. O conflito da Crimeia é em parte responsável pela situação, mas a instabilidade política já vinha de antes. Em 2000, por exemplo, uma reaproximação política entre o governo e a Rússia acarretou cortes bruscos no orçamento do Exército. O pai de Anya era militar e teve de deixar o emprego. Não saiu sozinho. Em seu vilarejo, alguns mais desesperados começaram a roubar equipamentos militares para vender no mercado negro. Armas, perguntei? “Não, não, as armas são sempre catalogadas e bem guardadas. Petróleo, coisas do tipo.”
Em 2012, já formada, Anya conseguiu uma vaga de mestrado na International Economic Law and Policy, a Ielpo, em Barcelona. “Vi o anúncio e tive uma sensação muito forte, uma intuição: soube que iria para lá.” E foi. Feito o mestrado, voltou para seu vilarejo.
Por ocasião da Guerra da Crimeia, um ex-professor seu da Ielpo, Gary N. Horlick, lembrou-se da aluna ucraniana. Preocupado, o americano perguntou a uma ex-aluna da instituição, Carolina Saldanha-Ures, se havia alguma vaga no Brasil. Como Carolina era sócia-fundadora de uma consultoria que andava bem das pernas, expandia-se com novos clientes internacionais, alguns no Leste europeu, Horlick pensou que talvez precisassem de alguém da região. Precisavam.
O estágio termina no fim de maio. A consultoria paga as passagens, a acomodação, e oferece uma ajuda de custo diária. Anya quer ficar no Brasil. “Não quero voltar. Às vezes nem sinto que aquele é meu país.”
Com frequência Anya emprega termos como “destino” e “intuição”, palavras que parecem afinadas ao glossário do ThetaHealing, um sistema de crenças e método de cura que ela descobriu em Barcelona. A ucraniana define o ThetaHealing como uma “técnica energética”. O site oficial diz que a técnica “ensina a identificar e mudar crenças, sentimentos e padrões bloqueadores, criando imediatamente uma nova realidade para sua vida”. Por Skype, Anya tem promovido sessões de cura. “Nosso corpo é composto de células, que por sua vez são feitas de átomos, que por sua vez são feitos de prótons. Tudo consiste em energia.”
Embora Carolina tenha oferecido o estágio a Anya sensibilizada pelo conflito na Ucrânia, ela também simpatizou com a nova funcionária. “A primeira vez que a vi me pareceu uma pessoa etérea, angelical.” Certo dia, a filha de Carolina, Chloë, de 3 anos, estava com estomatite. Mesmo medicada, chorava muito à noite, sofrendo com as aftas. Carolina ligou para Anya. Ao chegar à casa da chefe, um amplo apartamento no bairro do Paraíso, Anya foi direto para o quarto de Chloë. Ajoelhou-se ao lado da cama, juntou as mãos em forma de concha e, sem encostar, colocou-as perto da testa da menina. Ficou um tempo assim, de olhos fechados. “Acho que ela estava passando energia, não sei”, Carolina me contou depois. “Parecia um anjinho, ali aos pés da cama.”
Numa outra ocasião, Carolina, Anya e uma funcionária da consultoria foram passear num shopping. A conversa enveredou para o tópico de bebês, e a certa altura Anya disse que enxergava dois vultos pequeninos flutuando ali perto. “Alguns dias depois descobri que eu estava grávida do meu segundo filho”, disse Carolina.
Depois da nossa conversa, Anya me enviou fotos que tirou na última vez que visitou os pais: imagens de tanques estacionados entre pinheiros verdes; armamentos entrecobertos por pedaços de lona; criancinhas curiosas caminhando em volta das armas de destruição. Idílio campestre e violência latente justapostos. Anya pediu que as imagens não fossem publicadas: “Isso é mais para você entender a situação lá em casa.”
Perguntei a Anya se achava que ficaria no Brasil, se tinha alguma intuição nesse sentido. Confrontada com minha dúvida, ela não riu como das outras vezes. Quando respondeu, seca, que a questão de ficar ou não era pragmática, lembrava mais um soldado eslavo que uma praticante do ThetaHealing.
“Para ficar”, disse, “vou precisar de um emprego.”