Helena Monteiro da Costa em sua casa na Rua da Liberdade: apesar das dificuldades, ela estudou até o ensino médio e toca órgão. Como gosta de ler, ganhou há pouco o livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Também ajuda no trabalho social de uma igreja do Exército de Salvação CREDITO: LUIZ FERNANDO MENEZES_2021
Espelho do passado
A história de Helena Monteiro da Costa e da luta abolicionista em Santos
Lilia Moritz Schwarcz | Edição 179, Agosto 2021
Com colaboração e imagem de Luiz Fernando Menezes
No Brasil pessoas negras morrem duas vezes: fisicamente e na memória. Feita na base do lembrar pouco e esconder muito, a nossa história oficial tornou-se por demais colonial, europeia, branca e masculina. Sobre as populações negras, espalhou-se um imenso silêncio, quando não a invisibilidade e o apagamento.
É certo que uma importante historiografia, realizada em boa parte por pesquisadores negros e negras, recuperou o protagonismo das pessoas escravizadas, assim como das libertas ou forras, em sua luta pela liberdade. No entanto, ainda há muito que contar sobre a vida dessas pessoas que batalharam para manter suas famílias unidas apesar das adversidades, que organizaram insurreições, aderiram a quilombos, viajaram pelo circuito afro-atlântico contando a história das revoltas ocorridas no Brasil, no Caribe e em outras regiões das Américas, que foram líderes religiosos, profissionais liberais ou negociaram suas horas de lazer e de autonomia.
Helena Monteiro da Costa, hoje com 97 anos, é uma protagonista dessa história. Ela mora em Santos (SP), na Rua da Liberdade, via cujo nome é bem apropriado para abrigar a sua casa azul de janelas verdes, a mesma onde nasceu e vive até hoje, sozinha.
Dona Helena, como todos a chamam, orgulha-se de ser filha temporã do ex-escravizado Anizio José da Costa, que tinha mais de 90 anos quando ela nasceu. Até os 108 anos, ele trabalhou como carregador e ensacador de café, como mostram registros bem guardados no sindicato dos ensacadores de Santos. Seu Maninho, como era conhecido, é descrito como um homem de cerca de 2 metros de altura, capaz de carregar dois sacos de café nas costas. Depois de um casamento que durou duas décadas e lhe deu três filhos, ele enviuvou. Tinha 90 anos, mas a idade não foi obstáculo para que se casasse de novo, agora com uma moça de 25 anos, com a qual teve mais sete filhos. A sua família de dez filhos era tão simples que, em Santos, virou marcador de classe e da falta de dinheiro. “Nossa, ele é tão pobre como Maninho”, diziam. Com sua rica e rara memória do tempo da escravidão, o pai de dona Helena morreu em 22 de abril de 1940, aos 110 anos.
Dois dias depois, o jornal santista A Tribuna publicou uma reportagem a respeito de seu falecimento. Em uma foto, lá está ele, com seu semblante bonito, olhar confiante, cabelo branqueado e a barba cobrindo-lhe o queixo. Outra foto mostra sua viúva, Basília Monteiro da Costa, no dia do enterro, ladeada pelos filhos, todos bem apresentados. A menina mais alta é dona Helena, de blusa branca e saia até o joelho. Basília tinha cerca de 45 anos quando ficou viúva. Viveu até os 100.
A casa onde dona Helena mora, no bairro Embaré, foi construída num terreno doado à sua mãe pela viúva Ana Rocha Ribeiro dos Santos, de nacionalidade portuguesa. Ribeiro dos Santos e seu marido, ao que tudo indica, tornaram-se abolicionistas quando a questão virou suprapartidária, a partir dos anos 1880. O pedaço de terra doado era uma pequena fração de um terreno bem maior do casal de portugueses. Ali, a família de dona Helena plantou milho, arroz, feijão e verduras, tudo para consumo próprio. Também criou porcos, galinhas, cabras e até macacos. Com a expansão da cidade de Santos, a propriedade foi em parte ocupada por outras pessoas. Restou para dona Helena a casa em que vive, decorada com muitas plantas no quintal, e um terreno onde se instalaram seus parentes próximos.
Seu pai foi possivelmente o mais longevo ex-escravizado a viver em Santos. Ainda criança, teria sido roubado em Angola, onde ficava o maior porto de navios negreiros na costa africana. Calcula-se que em torno de 51% dos 10,5 milhões de africanos que chegaram vivos às Américas entre 1501 e 1850, quando termina o tráfico, eram provenientes da África Central, área que hoje recobre desde o Sul de Camarões até a atual fronteira de Angola e Namíbia, estendendo-se a Leste um pouco além da fronteira angolana.
Vale lembrar que o primeiro país com o qual o Brasil estabeleceu relações diplomáticas após a Independência, em 1822, foi Angola, por causa, justamente, do “rico negócio”. O Sudeste brasileiro, pouco habitado até final do século XVIII, recebeu um afluxo maior de cativos centro-africanos em razão da revolução escrava que estourou em São Domingos (depois Haiti), na década de 1790, e da abolição do tráfico para o Caribe britânico, em 1808. Sobravam “fornecedores” e faltavam “postos de compra”, sendo os portos brasileiros os mais almejados pelos traficantes.
Essa “segunda escravidão”, como tem sido chamada, forneceu escravizados para as plantações de café da segunda metade do século XIX e levou à grande presença da mão de obra compulsória vinda da África Central. Estimativas mencionam que vieram de Angola 72% dos escravizados no Brasil entre 1826 e 1866, último ano da chegada de africanos cativos ao país. Entre 1811 e 1815, quatro quintos dos homens e dois terços das mulheres acima de 15 anos eram provenientes daquela região geográfica e cultural.
Quase todos eles falavam línguas do ramo bantu, a maioria pertencente ao grupo linguístico que incluía o kikongo, kimbundu e umbundu. Com a decadência do sistema escravocrata, o trabalho ficou ainda mais extenuante para os cativos, a vigilância foi redobrada e diminuíram bastante as alforrias, ainda mais para africanos. Os senhores que possuíam escravizados trabalhando nas fazendas, com a impossibilidade de reposição, não concebiam a ideia de libertá-los.
A África bantu cultuava seus ancestrais, que para eles zelavam pelo bem-estar dos vivos. Por isso, a memória dos antepassados acompanhava de muitas maneiras – com a religiosidade, as cosmologias, os ritos e costumes – esses imigrantes forçados, em suas viagens no interior dos tumbeiros, os navios que traziam os cativos. Até hoje, essa memória ainda está presente em muitos cultos afro-brasileiros, especialmente os associados à influência “congo-angolana” – como a umbanda –, aos espíritos dos “caboclos” e aos “índios bravos da floresta”, na denominação dos mais velhos. Os rituais também estabeleciam que grandes chefes, feiticeiros e sacerdotes tinham o poder de fazer a travessia para outros mundos, distantes do inferno da escravidão. No Brasil, desembarcaram realezas, lideranças e cultos, que foram aqui relidos. Na tentativa de criar novas solidariedades e alianças, essas populações centro-africanas mostraram maleabilidade e adaptaram-se aos trópicos americanos e às pessoas de outras nações do seu continente de origem com as quais travaram conhecimento no Brasil.
Anizio José da Costa teria desembarcado ainda menino no Porto de Santos, na primeira metade do século XIX, em meio às últimas levas de escravizados angolanos entradas no Brasil. De lá teria sido levado para Pindamonhangaba, no interior paulista, para trabalhar nas fazendas de café, e vendido mais tarde para alguém em São Paulo, de cuja casa fugiu. Refugiou-se, como conta sua filha, “num grande quilombo em Santos”, onde viveu até que a Lei Áurea mudasse a sorte dos últimos cativos e cativas. Essas são histórias orais bastante frequentes, que trazem dados da realidade por vezes misturados com fabulações próprias dos que releem o passado, “o tempo dos antigos”, na expressão de dona Helena.
A Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888, foi profundamente conservadora, limitando-se a dois artigos: “Art. 1º – É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2º – Revogam-se as disposições em contrário.” Na mesma época, circularam projetos muito mais abrangentes em prol da inclusão social da população negra recém-liberta. Pouco foi feito, e assim a abolição teve data para começar, mas não para acabar. O racismo se entocou nas estruturas da vida brasileira, sendo até hoje um dos maiores entraves à democracia neste país versado nas relações sociais perversas produzidas durante a escravidão, implementadas no período da pós-abolição e ainda presentes no nosso cotidiano.
O pai de dona Helena trabalhou como ensacador no Porto de Santos como pessoa livre. Ele costumava dizer que a princesa Isabel fora “uma santa”, vocalizando um projeto de dependência social inaugurado pelo Segundo Reinado, que pretendia difundir a ideia de que a filha regente havia “dado a liberdade” aos escravizados. Ora, ninguém pode dar algo que é um direito inalienável. A intenção era deixar nas mãos da filha de dom Pedro II – e herdeira do seu trono – o ato mais popular do Império, mas que, mal sabia ela, seria também o último.
Anizio sabia tocar violão e reunia os filhos para contar causos de sua vida como escravizado e como homem livre. Não professava qualquer religião, mas dizia acreditar em Deus e, segundo a filha, pronunciava umas palavras estranhas, talvez provenientes das filosofias e cosmologias do seu passado na África Central e do seu presente. Dona Helena se lembra do pai usando um pentagrama, que muitos negros e descendentes de africanos carregavam numa corrente de pescoço, ou exibiam como tatuagem. O significado mais comum da estrela de cinco pontas é o de esperança, mas, quando duas pontas estão voltadas para baixo, ela também indica harmonia com a natureza. Pode representar ainda o desejo de mudanças significativas ou novas metas na vida. Muitas pessoas negras usaram esse tipo de adorno motivadas pelo desejo de que o sistema escravocrata terminasse e outro tempo viesse trazendo a elas mais autonomia. De toda maneira, um frade encomendou o corpo de Anizio, que foi enterrado de acordo com o rito católico, conforme seu pedido expresso.
Dona Helena conta que o pai se aposentou dois anos antes de morrer. Tinha então 108 anos, as costas marcadas por chibatadas e não se lembrava de haver vivido um dia sem labutar. No dia de sua morte, a pequena casa no bairro Embaré amanheceu lotada, todo mundo queria ver o homem centenário que até pouco tempo tinha a energia de um jovem, a despeito de ter sido escravizado.
Santos viveu na década de 1870 uma ampla agitação abolicionista, com a participação decisiva de negros e negras livres, forros e escravizados, além de brancos. A cidade aboliu a escravidão antes da Lei Áurea. Já no começo de 1887, o presidente da Província de São Paulo enviou um telegrama ao governo imperial dizendo ser “impossível conter a evasão dos escravos porque os soldados tinham feito causa comum com os abolicionistas, favorecendo a passagem dos fugitivos para a cidade de Santos”. Muitos dos escravizados haviam fugido de fazendas no Oeste paulista. A presença desses ex-cativos contaminou a pequena urbe da cidade portuária com o pensamento revolucionário, que também chegava com os marinheiros e as tripulações, portadores de notícias de insurreições escravas que vinham estourando em todo o eixo afro-atlântico.
O município tinha quilombos por toda parte. Um dos mais famosos era o Quilombo do Pai Felipe, localizado no sopé do Monte Serrat e cercado por um bambuzal denso que o protegia de ataques. Era liderado por escravizados fugidos do Engenho Nossa Senhora das Neves, na vizinhança de Santos, e por Pai Felipe, que comandava os batuques e os sambas que evoluíam noite adentro, assustando os proprietários brancos que temiam que o “haitianismo” – em referência à grande rebelião escrava em São Domingos – desembarcasse ali.
Outros acampamentos guerreiros foram criados a partir da segunda metade do século XIX numa região que levava o indicativo nome de Vale do Quilombo, também na área continental de Santos. Somente em 1974, as ruínas do engenho do Vale do Quilombo foram tombadas pelo patrimônio histórico.
O Quilombo Jabaquara (ou do Jabaquara), também muito afamado, chegou a contar, na década de 1880, com 10 mil pessoas, todas evadidas das fazendas de café de São Paulo. Foi fundado em 1882 pelo major e vereador abolicionista Joaquim Xavier Pinheiro, entre outros, nas terras administradas por Quintino de Lacerda (1839-98), um negro alforriado.
Lacerda nasceu em Sergipe, mas passou boa parte da vida como escravizado, trabalhando como cozinheiro para o senador e fazendeiro Antônio de Lacerda Franco (1853-1936). Logo que recebeu a alforria, converteu-se em líder abolicionista. Em 1895, tornou-se o primeiro vereador negro de Santos. Costumava receber suas visitas numa sala modesta, mobiliada com um espelho grande, alguns quadros, um lampião de centro, um tapete, um par de escarradeiras de louça, um sofá, algumas cadeiras com encosto e assento de palhinha, uma cadeira de balanço, uma grande caixa de música, uma mesinha com um álbum de retratos e um binóculo. Quem descreveu a casa do liberto foi seu amigo Antônio da Silva Jardim (1860-91), advogado, jornalista republicano e abolicionista, que definiu Lacerda como “um preto inteligente e honrado, de corpo enorme, fisionomia grande, olhar seguro e barba no rosto”.
O Quilombo Jabaquara ocupava uma área extensa de mata virgem, cortada por riachos, perto do Morro do Bufo. Era formado por uma série de casinhas de madeira próximas umas das outras e contava com um armazém para abastecer seus habitantes. Durou sete anos – foi extinto pouco após a abolição da escravidão. Os cativos acorriam ao acampamento seja por iniciativa própria, buscando proteção, seja por incentivo de abolicionistas, que os ajudavam a fugir, encaminhando-os de trem até o quilombo.
Estradas de ferro sempre tiveram um forte significado e uma importância real para as populações escravizadas que lutavam pela liberdade. Nos Estados Unidos, os trens faziam parte do sonho de escapar do Sul escravista e alcançar o Norte, onde predominava o trabalho livre. Uma das rotas de fuga mais antigas, existente desde pelo menos 1790, levava os escravizados à Flórida, quando este território ainda pertencia à Espanha (foi comprado pelos norte-americanos em 1819). Outras tinham como destino o México, onde a escravidão era ilegal, e a países em situação similar.
O mais famoso dos caminhos foi a Underground Railroad, instalada no fim do século XVIII como uma rede secreta de rotas e esconderijos que conduzia os cativos aos estados norte-americanos livres da escravidão ou até o Canadá, que a aboliu em 1833, vigorando a partir do ano seguinte. A passagem de trem para a liberdade, na fuga apoiada por abolicionistas brancos e negros, não era garantida, pois patrulhas vigiavam as fronteiras e caçadores de escravizados fugitivos espreitavam as principais rotas e cidades. Apesar disso, estima-se que até 1850 cerca de 100 mil pessoas conseguiram evadir-se das fazendas por meio da Underground Railroad, que se tornou um emblema da libertação, com seu simbolismo escorregando para os países americanos, como o Brasil.
Outras personalidades tiveram seus nomes vinculados aos quilombos santistas. O Quilombo do Garrafão levava o apelido de seu fundador, José Theodoro Santos Pereira, conhecido como Santos Garrafão por causa da destilaria que possuía. Ele vivia com uma ex-escravizada de nome Brandina – que vem de “branda”, o que revela a política empreendida pelas elites nacionais de, por meio da nomeação, mitigar a violência da escravidão no Brasil. Dona de uma pensão em Santos, na Rua Setentrional, e cozinheira conhecida na região, Brandina Fiúsa era quem tratava de suprir as necessidades dos fugitivos. O quilombo se localizava na Ponta da Praia, mais próximo do núcleo urbano, e estabeleceu relações habituais com negociantes da cidade.
A história dos quilombos santistas mostra que eram locais protegidos, mas, diferentemente do que muitos imaginam, não se mantiveram isolados. Durante toda a história da escravidão no Brasil, estabeleceram relações comerciais com fazendas, com negros assenzalados e com as vizinhanças. Em Santos, por sinal, esses quilombos passaram a contar a partir de 1870 com a proteção de toda a cidade e da sociedade civil.
Santos foi também a terra de Antônio Bento de Souza e Castro (1843-98), mais conhecido como Antônio Bento, apenas, um dos protagonistas brancos do abolicionismo radical, que não se apegava aos termos da lei. Filho de uma família abastada, ele cursou a tradicional Faculdade de Direito de São Paulo, tendo sido promotor público em Botucatu, Rio Claro e em Limeira, no interior paulista. Com 29 anos, tornou-se juiz em Atibaia, onde foi líder do Partido Conservador e era conhecido por seu comportamento controverso. Com o tempo passou a se opor à escravização, alegando que era ilegal manter nessa condição pessoas que chegaram ao Brasil depois da promulgação das leis de 1831 e 1850, que proibiram o tráfico. Além disso, costumava denunciar os senhores violentos nos jornais.
Por essas e outras ganhou vários inimigos. Acabou demitido do cargo de juiz e chegou a ser alvo de tentativas de homicídio. Em 1877, transferiu-se para São Paulo e, a partir de 1880, trabalhou no movimento abolicionista liderado por Luiz Gama (1830-82). Depois da morte de Gama, Antônio Bento tornou-se o principal nome da causa na Província de São Paulo. Organizou, então, a Ordem dos Caifazes, contando com a proteção da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, da qual era provedor e que ao longo do século XIX deu muita guarida a escravizados fugidos.
A Ordem dos Caifazes reunia profissionais liberais – como tipógrafos, artesãos, pequenos comerciantes etc. –, escritores e estudantes de direito abolicionistas. O grupo não se limitava a atuar no âmbito parlamentar: agia diretamente para acabar com a escravidão, promovendo a fuga e a proteção aos evadidos, pelo que foi considerado subversivo. O termo “caifazes” vem de um personagem do Novo Testamento, Caifás, um sumo sacerdote judeu que “profetizou que Jesus iria morrer pela nação. E não somente pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos”, nas palavras do Evangelho Segundo São João 11, 51-52.
O principal refúgio dos negros ajudados pelos caifazes era o Quilombo Jabaquara, em aliança com o Quilombo em Cubatão, criado pelo próprio Antônio Bento. De ambos os locais, os cativos eram enviados para o Ceará, que abolira a escravidão em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea.
Em 1882, junto com o escritor e ativista Raul Pompéia, Antônio Bento fundou em São Paulo o Jornal do Comércio. Cinco anos depois, criou seu próprio periódico, A Redempção, que pregava a “libertação imediata [dos escravizados] e sem indenização” aos proprietários de escravos. O jornal se concentrava nos fatos relacionados à luta abolicionista, denunciando, às vezes com humor, os donos de cativos. Todo o projeto era muito avançado para um país que retardara a abolição, ficando atrás dos Estados Unidos, Porto Rico e Cuba, onde a escravidão foi extinta em 1865, 1873 e 1886, respectivamente. O santista Antônio Bento também fazia campanha para que os senhores contratassem escravizados fugidos como assalariados e trabalhadores livres. Graças a esses movimentos e sobretudo à pressão dos próprios escravizados, forros e livres, na época da Lei Áurea apenas 6% da população de São Paulo era composta por cativos.
Foi dessa história em prol da liberdade que o pai de dona Helena participou. Mas, se a vida de Anizio José da Costa não foi fácil, tampouco foi a da filha, que trabalha até hoje. Agora, ela ganha a vida “passando roupas para fora”, como disse.
Em uma foto, dona Helena aparece postada numa janela de sua casa no Embaré. Ao seu lado está Inês Costa de Oliveira, uma de suas irmãs, já falecida. As duas trajam vestidos com estampas florais e miram o fotógrafo com a paciência de quem já viu muita coisa nesse mundo. A mão esquerda de dona Helena, forte e calejada, se apoia no parapeito da janela, pela qual se pode entrever uma cortina de renda, que junto do lenço de crochê que lhe cobre os cabelos são provas do apreço que ela tem pela decoração de seu recanto e pelo trabalho manual.
Na época da foto, elas eram provavelmente as únicas filhas vivas de Anizio, e ambas nasceram livres. O primeiro nome escolhido para Helena foi Serena, e para Inês, Idê. Mas ambos foram modificados por um padre, que reclamou serem nomes pagãos. O sacerdote recorreu à prática dos antigos proprietários de escravos de rebatizar os africanos recém-chegados ou os recém-nascidos, dando-lhes nomes que denotavam alegria e controle, num evidente processo de autoengano.
Inês teve seu primeiro emprego aos 7 anos e nunca mais parou de trabalhar. O período pós-abolição preservou a linguagem da desigualdade da escravidão, e é provável que ela tenha atuado como “moleca”, uma daquelas meninas que acompanhavam as famílias, faziam de tudo na casa dos patrões e não tinham direito a nada. Inês se casou três vezes e teve dez filhos.
A história de dona Helena é um pouco diferente. Ela disse que nunca lhe sobrou tempo para “cuidar dos seus” e por isso não se casou nem teve filhos. Trabalhou a vida inteira como empregada doméstica e babá. Fotografá-la em sua casa, próxima de seu jardim, e estampar o seu nome perto da imagem têm um significado especial. Fotografias feitas pouco antes e mesmo depois da Lei Áurea mostram amas de leite e babás ao lado de seus pequenos senhores. Os nomes das crianças estão sempre anotados; os das babás, raramente. Desde os tempos da escravidão, mulheres negras cuidaram dos “filhos dos outros” e penaram para ter algum tempo para dedicar aos seus – dividiam o leite, as horas, mas nunca a igualdade. As imagens dessas babás e amas de leite permanecem nas fotos do passado, mas seus nomes se perderam. Também aqui, a história de dona Helena é outra.
Ela mesma construiu a casa onde mora. A sala é também seu quarto, e a cozinha está agregada ao banheiro. Em outra foto, ela aparece sentada na sua cama, sobre a qual se vê uma almofada com estampa de palmeiras e papagaios. A mesa de cabeceira é da mesma cor que o armário e a cômoda. Em cima da mesinha, há uma toalha de crochê e um abajur cor-de-rosa do qual só resta a base. Nas paredes caiadas de azul se destacam alguns quadros, já um pouco marcados pelo tempo e pelo bolor – o de uma dupla de querubins foi afixado logo acima da cabeceira da cama; no alto, à direita, está uma tela com flores; à esquerda, uma paisagem ao crepúsculo.
A casa foi construída com materiais simples, sem forro ou laje, permitindo ver o teto que mal veda o ambiente. Em outra imagem, ela veste uma blusa de crochê muito bonita e um avental amarelo que denota seu mundo de trabalho. Suas mãos, em primeiro plano, e o rosto enrugado e marcante mostram a realidade de uma vida à qual sobrou pouco tempo para o lazer e o descanso.
Agora, é dona Helena quem cuida dos pobres, em uma igreja do Exército de Salvação que frequenta aos fins de semana. Apesar das dificuldades, ela conseguiu se alfabetizar e estudar: fez até o ensino médio e toca órgão. Gosta de ler e ganhou do amigo Luiz Fernando Menezes o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, livro que certamente a fará recordar das histórias de seu pai e de sua mãe, que criou os filhos quase sozinha.
Como o terreno de sua casa é grande, dona Helena o dividiu com parentes. Na casa construída ao lado vive uma sobrinha, e na dos fundos, um sobrinho-neto. A sua residência na Rua da Liberdade se converteu em uma espécie de quilombo urbano, um lugar onde as famílias compartilham experiências, conhecimentos e redes de sociabilidade.
Neste tempo de disputa das narrativas sobre a história do país, quando o presidente da Fundação Palmares quer censurar a memória de protagonistas negros, é urgente contar a história de dona Helena e sua família, que atravessou os tempos da escravidão, as lutas pela libertação e as agruras do período pós-abolicionista. Por intermédio dela, é a própria história do Brasil que vem à tona: são os tempos de outrora espelhados nos dias de hoje. O passado do presente.[1]
[1] Por causa da pandemia, minhas conversas com Helena Monteiro da Costa foram por meio do Facetime, mas já combinamos um café caprichado para quando esse “tempo passar”. Agradeço a ela pela simpatia e pelas informações que generosamente partilhou comigo e com Luiz Fernando Menezes, que ouviu de seu pai de 90 anos, pela primeira vez, a história de Anizio José da Costa e de sua filha.