Quando o fogo chega e a vida se transforma no seu avesso: “Desço do carro, pego meu violão e penso no que eu poderia carregar na outra mão. Vou ter que deixar meu carro para trás e caminhar. Então fico pensando no que eu devo pegar e, ah, meu Deus, eu não sei o que escolher” - CREDITO: WENJIA TANG_2019
A estética do fogo
Uma visita a Paradise, cidadezinha da Califórnia destruída por um incêndio florestal
Carol Bensimon | Edição 169, Outubro 2020
De Mendocino
Estou vendo o filme Nostalgia, de 2018, e de repente a personagem da atriz Ellen Burstyn diz: “Quando o vento trouxe o fogo até os O’Brian, eu sabia que tinha que finalmente responder àquela pergunta que a gente se faz durante toda a vida: O que levar de uma casa em chamas?” Eu nunca tinha pensado sobre isso até me mudar para a Califórnia, diferentemente de outras pessoas, em qualquer lugar do mundo, que brincam com essa hipótese muito remota do mesmo jeito que discutem sobre o que levariam para uma ilha deserta. Aqui, no estado mais populoso dos Estados Unidos, não se trata apenas de um exercício de imaginação. O céu está vermelho, você entra no carro e deixa tudo para trás.
Brutalmente desenhada pela Falha de San Andreas, a Califórnia é um mosaico de paisagens muito distintas entre si. O Pacífico que bate nas rochas mesozoicas está a algumas centenas de quilômetros do vale onde cresce boa parte dos legumes consumidos no país, que se encontra a uma dezena de quilômetros da gigante Sierra Nevada que, por sua vez, separa o vale irrigado de um cenário desértico lunar. Quase a metade dos biomas do estado depende do fogo. Nesses lugares, por mais paradoxal que pareça, algumas espécies de árvores precisam do calor das chamas para que suas sementes já dispersadas germinem. No entanto, nas últimas décadas, os incêndios florestais ganharam uma proporção avassaladora, estimulados pelo aquecimento global, pelas fronteiras permeáveis entre o mundo urbano e a natureza selvagem e por uma política que visa a suprimir completamente o fogo.
A Califórnia costuma queimar todos os anos após o acúmulo de meses sem chuva e a chegada dos ventos fortes que começam a soprar no fim do verão. Existe uma “estação do fogo”, como se esse nome substituísse o que o resto do mundo denomina outono, durante a qual vemos repórteres usando máscaras e pessoas tentando salvar seus cavalos. Bombeiros se servem de pás, ancinhos, retroescavadeiras e aviões-cisternas com retardadores de chamas que formam nuvens vermelhas no céu. Mansões queimam em Malibu, e são as imagens dessas propriedades tragadas pelo fogo que se espalham por todo o planeta, imagens que talvez não nos comovam tanto, pois parecem uma espécie de vingança pacientemente arquitetada pela natureza, um revés que sofrem os ricos extravagantes, com suas piscinas aquecidas de frente para o mar.
Mas essa é apenas uma narrativa.
Em novembro de 2018, durante o incêndio florestal batizado de Camp Fire, uma cidade praticamente inteira foi destruída, derrubando a ideia de que fogos que arrasam áreas urbanas são coisas do passado. Paradise era um lugar tranquilo ao pé da Sierra Nevada, com uma população de 27 mil habitantes, muitos deles idosos, outros tantos dependentes de auxílios do governo.
O ano de 2020 já trouxe o primeiro, o terceiro e o quarto maiores incêndios florestais da história da Califórnia, em meio a uma pandemia que nunca tem fim. Em janeiro, quando o novo coronavírus ainda não parecia tão ameaçador, entrei no meu velho Corolla e dirigi para o Leste, na direção de Paradise, catorze meses depois do fogaréu que dizimou a cidadezinha. Moro em um lugar chamado Mendocino, na Costa Norte do estado, a 250 km de São Francisco. A neblina típica dessa região, que mantém o ar úmido, faz com que eu cultive certa segurança – provavelmente ilusória – de que nunca vou precisar sair correndo no meio da noite ao sentir cheiro de fumaça ou ao receber um alerta no meu celular.
Quando decidi visitar Paradise, tinha na cabeça imagens aéreas de devastação em tons terrosos e acinzentados. Aquele abandono me parecia magnético como a foto de um parque de diversões deteriorado em Chernobil, ou dois esqueletos unidos por um abraço nas ruínas de Pompeia: cenas que diziam algo triste sobre nossa civilização, mas que eram suficientemente vagas e distantes, pintadas com as tintas dos acontecimentos extraordinários. Quarenta e oito horas mais tarde, eu estaria chorando sozinha em um quarto de motel.
No dia 8 de novembro de 2018, quando Paradise desapareceu – esse é o verbo mais adequado para descrever a situação –, eu tinha me mudado para os Estados Unidos com minha namorada havia apenas dois meses. Estávamos recebendo um casal de amigos em nossa casa provisória. Ao nos despedirmos deles, vi que o céu estava vermelho e que o sol se transformara em uma bola assustadoramente delimitada, como uma lua cheia. Só quando entrei de novo em casa foi que li as notícias. O fogo queimava a uma distância de mais de 300 km.
No ano anterior, eu havia publicado O Clube dos Jardineiros de Fumaça, romance que se passa justamente na Califórnia e cujo pano de fundo é o cultivo ilegal de maconha, muito comum na região que, mais tarde, eu adotaria como lar. Em certo momento da trama, há fumaça de incêndio florestal no céu e alguma reverberação disso na vida dos personagens, coisas esperadas em uma história realista que contempla os meses de setembro, outubro e novembro nesse específico lugar do mundo. O incêndio em questão se chamava Valley Fire, um dos 23 que receberam um nome naquele ano de 2015 porque ultrapassaram 400 hectares (em 2018, os fogos batizados seriam 58).
Tudo começou na fiação de uma banheira de hidromassagem no pátio de alguém e terminou destruindo 1 955 edificações em diversas comunidades rurais. A banalidade dessas faíscas iniciais sempre me assustou – a fagulha gerada pelo impacto entre duas ferramentas, uma bituca de cigarro descartada –, como se essa paisagem não pudesse resistir ao menor erro humano, ou como se qualquer pessoa desequilibrada precisasse de muito pouco, um único fósforo, para causar um estrago monstruoso, o que, no fim das contas, parecia sinalizar que nossa convivência com o mundo natural era impossível.
Muitos incêndios na Sierra Nevada se iniciam por causa de raios, mas o Camp Fire, que chegou a Paradise e outras comunidades rurais, foi causado por uma falha em uma linha de transmissão da PG&E, a companhia elétrica que serve o Norte da Califórnia. Talvez você se lembre de Erin Brockovich, filme baseado em uma história real e protagonizado por Julia Roberts. Como mostra a trama, a PG&E é a mesma empresa que contaminou a água de um povoado no Deserto de Mojave, causando graves problemas de saúde em centenas de pessoas. O ponto de origem do Camp Fire ficava em um lugar remoto no meio da Floresta Nacional de Plumas, entre cânions e despenhadeiros. Devido à dificuldade de acesso por terra ou pelo ar, as chamas não puderam ser contidas rapidamente, de maneira que acabaram se espalhando pela floresta com a ajuda de ventos de mais de 90 km/h. No pico do incêndio, a devastação crescia à velocidade de um campo de futebol por segundo.
Localizada no topo de uma montanha, entre dois cânions altamente inflamáveis, Paradise perdeu 95% de suas edificações em praticamente quatro horas. O saldo final do Camp Fire foi de 85 mortos, 16,5 bilhões de dólares em prejuízos, 18 804 estruturas destruídas e 62 053 hectares queimados – o equivalente a quase quatro vezes a área urbana de Porto Alegre e cerca de duas vezes a de Belo Horizonte.
É janeiro de 2020, mais de um ano depois da tragédia, e eu nunca havia imaginado o que encontro para além da placa na estrada que diz que estou entrando em uma zona perigosa. Agora vejo tudo de perto e do chão. A primeira coisa que chama a minha atenção são as caixas de correio, algumas novas, outras que resistiram ao fogo. Não é que elas não devessem estar ali; o problema é todo o resto que não está. Elas destacam acintosamente essa falta, a falta das árvores que viraram apenas esqueletos enegrecidos ou tristes cepos, a falta das casas que eu gostaria de saber como eram, a falta mesmo dos destroços dessas casas, levados embora por caminhões contratados pelo Gabinete de Serviços de Emergência da Califórnia.
Penso em uma personagem do romance Run, River (Corra, rio), de Joan Didion, dizendo para um cara da Costa Leste: “A gente não joga cigarros pela janela aqui. Eles provocam incêndios.” Penso nas palmeiras queimando em segundo plano enquanto uma jovem Courtney Love se sacode e olha para a câmera no videoclipe de Malibu, e também me lembro da voz açucarada de James Taylor cantando “eu vi fogo, eu vi chuva” no hit de 1970, Fire and Rain (Fogo e chuva). No entanto, a representação pop desses desastres humanos e ambientais me parece, agora, algo despropositado e de extremo mau gosto. São quarteirões e quarteirões vazios, pontilhados por trailers de tamanhos variados. Ninguém está andando nas ruas. O ruído das motosserras que levam ao chão as árvores mortas é constante.
Na Skyway Drive, a principal via comercial da cidade, há certo movimento de carros, mas as coisas que faltam são muito mais numerosas do que as que estão no lugar. O motel Paradise Inn é apenas uma placa e uma piscina. Burger King: placa e asfalto. Condomínios para a terceira idade: placas e portões de ferro. Uma igreja luterana que foi consumida pelo fogo teve seu letreiro de ferro e acrílico poupado, um retângulo sobre uma estrutura de pedra que estampa a mensagem “Somos guiados pela fé, não pela visão”. Parece adequada. Seria muito perturbador descobrir mais tarde que todos esses lugares ainda estavam intactos nas imagens do Google Street View.
Há outdoors de advogados oferecendo seus serviços. Lugares que voltaram a funcionar têm faixas coloridas que dizem “Aberto”. É o caso da Starbucks, reinaugurada no dia anterior. A loja serve apenas café e comida produzidos em outros locais, uma vez que a água de Paradise está contaminada com benzeno desde o incêndio. Acredita-se que a temperatura extrema do Camp Fire gerou, no interior das edificações, um coquetel de gases tóxicos que acabou absorvido pelo encanamento. Os poucos restaurantes e lanchonetes que atendem as cerca de 4 mil pessoas que voltaram à cidade precisam comprar cotidianamente tanques de água potável. Paro em um centro comercial onde há um supermercado, um salão de beleza e uma pizzaria. A maioria dos automóveis estacionados são caminhonetes com logotipos de empresas de construção e serviços de derrubada de árvores. Uma picape passa por mim e, na lateral dela, leio uma frase escrita à mão: “Eu escapei do fogo na minha Harley.” Percebo, de repente, que sou a única mulher por ali.
Lorraine Dechter tem uma nova caixa de correio, preta e de aço inoxidável, com uma fechadura tubular antibisbilhoteiros. É maior do que as que encontrei em meu primeiro dia em Paradise, com espaço suficiente para receber pacotes. Quando Dechter vê a caixa pela primeira vez na entrada da sua propriedade, no número 5.721 da Scottwood Road, nós estamos juntas no meu carro. Apontando para o objeto instalado pelo filho alguns dias antes, ela sorri: “Minha nova caixa de correio! É linda!”
Descemos e caminhamos até lá. Dechter exibe os típicos cabelos longos grisalhos das mulheres californianas. Está usando uma calça jeans e uma blusa tricotada por sua falecida irmã. No pescoço, traz um colar com um pingente feito a partir do anel de casamento derretido de sua avó. Essas são algumas das coisas que salvou do fogo. Agora testa a portinha da caixa de correio e continua olhando para ela com uma empolgação genuína. Começo a entender que aquilo é mais do que um passo na lenta reconstrução de uma vida aos 62 anos; é, sobretudo, a única materialidade que a ideia de casa tem naquele momento.
Desde 21 de julho de 2019, dia em que os detritos daquele lote terminaram de ser recolhidos pelo poder público, o lugar onde Dechter viveu por quatro décadas tem uma aparência ambígua de destruição e recomeço. Algumas bandeirinhas estão fincadas no solo vermelho, marcando os lugares de onde amostras de terra foram retiradas para análise, e eu inevitavelmente penso em todo o plástico, todo o metal e todos os produtos químicos que se misturaram àquele solo quando as casas queimaram. Em um canto do terreno, há uma dúzia de toras carbonizadas, restos de um carvalho de mais de duzentos anos que Dechter adorava e que mencionará muitas vezes durante nosso encontro (“a maior coisa que sobrou foi a minha árvore”). Por temor de que o carvalho morto caísse sobre os fios de luz, a PG&E resolveu derrubá-lo. Seu cepo agora é ostensivamente visível no centro do terreno, ao lado do trailer nivelado por tijolos em que o filho de Dechter e a namorada estão vivendo, sem água corrente e com um gerador de energia movido a gasolina.
Na manhã em que o fogo surgiu no horizonte de Paradise, Dechter estava em seu escritório, no segundo andar de um imóvel alugado, a dez minutos de carro de sua casa. Jornalista há mais de quarenta anos, ela cobria as eleições de meio de mandato durante a madrugada e acabou dormindo no local de trabalho. Às oito e meia, foi acordada por uma ligação do chefe: “Tem um incêndio em algum lugar por aí. Você quer fazer umas imagens e ganhar um dinheiro extra?”
Dechter foi até a janela e viu as montanhas em chamas. Percebeu que precisava sair de Paradise o mais rápido possível. “Das coisas que estavam no escritório e exigiriam algum esforço para que eu as alcançasse, decidi que só pegaria um único objeto: o violão que eu tocava com meu marido quando ele era vivo. Nós nos apresentávamos juntos. Queria algo do meu passado que me desse paz” (seu marido morreu em 1982). Ela deixou para trás vários equipamentos eletrônicos – o escritório era também um estúdio de gravação –, além da coleção de 7 mil vinis, registros antigos de suas próprias composições e um extenso arquivo da história do Norte da Califórnia, que incluía recortes de jornais e registros audiovisuais.
Já dentro do carro, com as casas e a vegetação queimando nos dois lados da rua, Dechter levou duas horas para percorrer um trecho que normalmente lhe tomaria apenas dois minutos. As vias estavam lotadas, os automóveis mal conseguiam avançar alguns centímetros, mas ninguém buzinava. O som que se lembra de ouvir era o dos tanques domésticos de gás explodindo. Ela abriu espaço para um caminhão de bombeiros, mas o veículo não conseguiu avançar mais depois disso. Pingos da água jogada por um avião-cisterna caíram no seu para-brisa. Dechter estava calma, é uma pessoa calma, que só chorou durante o tempo que passamos juntas quando colocou para tocar uma canção folk celta do Yellow Autumn, grupo que criou com o marido e um amigo nos anos 1970. Na Skyway Drive, a partir de certo momento, pessoas atrás dela abandonaram os carros no acostamento e, desesperadas, deram as mãos para as crianças e agarraram as malas. Começaram, então, a correr pela estrada. Uma policial bateu na janela de Dechter e disse: “Vai ser mais rápido se você for andando.”
“Desço do carro, pego meu violão e penso no que eu poderia carregar na outra mão. Vou ter que deixar meu carro para trás e caminhar. Então fico pensando no que eu devo pegar e, ah, meu Deus, eu não sei o que escolher.” Finalmente, Dechter olhou para os automóveis diante dela e percebeu que eles avançaram um pouco. Voltou para o carro. Depois de quatro horas de congestionamento, conseguiu sair de Paradise.
Agora, Dechter e eu olhamos ao redor, para além de seu terreno. Todas as propriedades se parecem: terra vermelha exposta, nenhuma vegetação, cercas de metal demarcando os limites. Um vizinho ainda tem a carcaça de um carro. O silêncio só é quebrado por uma motosserra trabalhando ao longe. Quando entrarmos no trailer que seu filho ocupa – Dechter vive em outro trailer em Chico, uma cidade vizinha –, ela vai ficar contente ao descobrir que já recebeu um pacote em sua nova caixa de correio: dois exemplares de romances de fantasia que havia perdido no fogo. Foram enviados por um amigo que, após ver uma postagem de Dechter no Facebook, decidiu ajudar na lenta reconstrução de sua biblioteca. Mas faltam alguns minutos para entrarmos no trailer bagunçado, folhearmos os novos livros e conversarmos com sua nora, que parecerá ter dormido o dia inteiro e ainda estar com um sonho ruim na cabeça. Dechter olha para o outro lado da rua e encara uma casa perfeitamente intacta. É a única que podemos ver dali. Por um instante, sua resiliência parece balançar. “Por que aquela casa sobreviveu? Eu não sei.”
Para entendermos por que Paradise foi consumida pelo fogo, precisamos voltar à Sierra Nevada de dois séculos atrás. A história do homem branco na região começou de fato em 1848, quando um sujeito chamado James Marshall encontrou ouro perto do vilarejo de Coloma e os rumores da descoberta se espalharam pelos Estados Unidos, gerando uma massiva onda de migração para o Oeste. Os indígenas dali foram massacrados pelos novos habitantes ou consumidos por doenças trazidas de outros territórios. Para ficar em apenas um exemplo, o povo Maidu, um dos que habitavam a serra, tinha uma população estimada de 20 mil habitantes em 1800. O número caiu para 2 mil em 1850 e para 204 em 1900.
A mineração na Califórnia moveu oito vezes mais terra do que a construção do Canal do Panamá – terra que foi espalhada pelo Vale de Sacramento e pela Baía de São Francisco. Embora possa ser considerado o berço da luta conservacionista no país, o estado interferiu no mundo natural como um deus obstinado e ambicioso ao longo de sua curta história (o território foi anexado aos Estados Unidos somente em 1848). Há o caso, crítico, da água. Para irrigar o árido Sul da Califórnia com a água mais abundante do Norte, rios foram redesenhados e represas foram erguidas. Hoje os recursos hídricos do estado dependem da Sierra Nevada: 75% da água de superfície se origina ali, no terço Norte do território, enquanto 80% da demanda está nos dois terços do Sul. A neve que cai na serra, portanto, logo encherá as piscinas de Malibu.
As florestas também sofreram significativas alterações na breve história da Califórnia. Localizada na parte Norte da Sierra Nevada, Plumas, onde o Camp Fire nasceu, foi extensivamente desmatada pela indústria madeireira. Sob responsabilidade do Serviço Florestal dos Estados Unidos desde 1906, essa floresta respondeu à alta demanda por madeira no país ao longo de quase todo o século XX, a ponto de figurar entre as mais produtivas de toda a nação durante os anos 1980.
A partir da década de 1970, no entanto, uma mudança cultural começou a se desenhar. Gary Snyder, poeta beat e ecologista que habita os pés da serra desde 1971, descreve essa transformação em seu livro de ensaios Back on the Fire (De volta ao fogo): se o manejo do Serviço Florestal agradava tanto a indústria madeireira quanto o movimento conservacionista durante a primeira metade do século XX, a política da agência federal começou a ser severamente questionada nos anos 1970, e a preocupação com o meio ambiente tomou o centro do debate. Um dos atores involuntários dessa guerra à indústria extrativista veio a ser a simpática coruja-pintada. A ave dependia das grandes coníferas que, àquela altura, estavam desaparecendo. O animal se tornou, assim, o símbolo de uma luta que foi vencida pelos ambientalistas: entre 1991 e 1995, a extração de madeira na Floresta de Plumas diminuiu 66%, e a última serraria da região fechou suas portas em maio de 2009.
Mas a floresta já estava transformada. Em seu livro Hope and Hard Times: Communities, Collaboration and Sustainability (Esperança e tempos difíceis: comunidades, colaboração e sustentabilidade), Ted Bernard, professor emérito de geografia da Universidade de Ohio, enxerga uma relação entre essa mudança e os grandes incêndios florestais que têm ocorrido no século XXI. “Na pressa de se apropriarem das grandes árvores”, explica o autor, “as madeireiras e o Serviço Florestal ignoraram a expansão dos abetos-brancos e de outras coníferas de menor porte que lotavam o sub-bosque e competiam de forma agressiva por nutrientes e pela umidade do solo, além de oferecerem uma escada de combustível para o fogo atingir o dossel da mata.” Em outras palavras, um sub–bosque – o “primeiro andar” da floresta – muito denso facilita a disseminação das chamas, que vão passando de um vegetal a outro e logo alcançam o “segundo andar”, as copas das árvores mais altas, que compõem o dossel. Os ventos, intensos na região justamente nos meses mais secos do ano, fazem o fogo se espalhar com extrema rapidez. A política de suprimir os incêndios por completo, que perdura na Califórnia há pelo menos um século, não parece ser a melhor solução. Hoje, é quase consenso na comunidade científica que, para evitar o acúmulo de biomassa inflamável no sub-bosque, seriam necessárias queimadas ocasionais. Era isso, precisamente, que os indígenas faziam antes da chegada dos colonizadores brancos.
No livro California: a Fire Survey (Califórnia: um estudo sobre o fogo), Stephen Pyne, professor emérito da Universidade Estadual do Arizona, escreve: “O ambiente do fogo não é algo separado das pessoas. Ele é o resultado da interação entre os humanos e a geografia.” Tal como o poeta Gary Snyder, Lorraine Dechter se mudou para o Norte do estado nos anos 1970, trocando a agitada Los Angeles por uma pequena comunidade cercada de pinheiros. Naquela década, a região, cuja economia anteriormente se baseara nos minérios e na madeira, começou a atrair um novo tipo de habitante: pessoas que haviam crescido em cidades grandes e que agora ansiavam por uma vida mais tranquila e próxima à natureza.
O crescimento populacional das outrora pequenas comunidades rurais acabou por borrar os limites entre o urbano e o selvagem. Esse espraiamento ocorreu em todo os Estados Unidos, mas foi muito mais expressivo na Califórnia, e levou ao que Pyne chama de “fase pós-moderna do fogo”, na qual os incêndios voltam a ser uma ameaça para as cidades, “como uma praga considerada extinta e agora revivida em uma mutação mais virulenta”.
Quando o fogo transformou sua casa em uma pilha de destroços e cinzas, mas poupou as peças de cerâmica, que resistem ao calor, Dechter não tinha um seguro residencial. “Acho que seria mais prudente reconstruir tudo com cerâmica mexicana”, me diz, brincando. O imóvel estava dilapidado demais e, por isso, desde 2015, nenhuma companhia aceitava renovar a apólice sem que a dona fizesse certas melhorias, o que, por falta de recursos, jamais ocorreu. Logo após o cancelamento do seguro, uma árvore caiu na propriedade e danificou a rede elétrica. Dechter passou a viver com um gerador, situação comum em lugares ermos do Norte da Califórnia. Nos dois meses anteriores ao incêndio, seu filho estava trabalhando todos os dias no reparo do sistema elétrico; havia cavado uma trincheira para enterrar a nova fiação. Agora, os fios queimados parecem vermes-robôs tentando escapar da terra. Será preciso começar tudo de novo.
Começar de novo, no entanto, envolve tempo e dinheiro. “Falei com um amigo ontem”, ela me conta, “ele está no Arizona e me disse: ‘Eu tenho 72 anos, não posso ficar esperando para reconstruir minha casa.’ Eu respondi: ‘É, quero reconstruir também. Não tenho dinheiro, estou tentando manter uma atitude positiva, vamos ver o que acontece.’” Dechter gostaria de transformar a madeira do seu carvalho em uma tiny house (uma “minicasa”), mas as regras do município estabelecem certos padrões de construção que ela não conseguiria cumprir se fizesse isso, inclusive no que diz respeito ao tamanho do imóvel. Até mesmo o trailer que está em sua propriedade tem um prazo de validade como moradia: aqueles que não solicitarem um alvará de construção até dezembro de 2020 não poderão continuar vivendo em trailers dentro de seus próprios terrenos.
Ainda que a PG&E tenha sido condenada a pagar bilhões de dólares em indenizações – por esse motivo, a companhia declarou falência em janeiro de 2019 –, foram pouquíssimas as vítimas do Camp Fire que tiveram compensações financeiras até o momento. Semanas ou meses após o desastre, algumas pessoas receberam ajuda financeira da Fema, a Agência Federal de Gestão de Emergências, mas Dechter me relatou que não teve acesso a esses recursos, pois a agência argumentara que, sem uma conta de luz, não havia como provar que ela residia naquele endereço (mesmo com cartas de vizinhos atestando que residia, sim).
Paradise nunca foi um lugar rico. A renda média familiar na cidade era consideravelmente mais baixa que a da Califórnia (49 270 dólares e 71 228 dólares por ano, respectivamente). Antes do incêndio, o valor médio de um imóvel em Paradise era de 218 mil dólares, enquanto a média estadual era de 476 mil dólares.
“Dois tipos de californianos vão continuar vivendo com o fogo”, escreve o historiador Mike Davis no ensaio The Case for Letting Malibu Burn (As razões para deixar Malibu queimar), “aqueles que têm dinheiro para reconstruir (com subsídios públicos indiretos) e aqueles que não têm dinheiro para viver em outro lugar.”
Veio a temporada de incêndios de 2019. Eu estava em Mendocino, na costa, me sentindo protegida pelas gotículas do Pacífico, que nunca deixavam a umidade baixar a níveis potencialmente perigosos. A novidade daquele ano foram os blecautes programados da PG&E toda vez que a meteorologia indicava fortes rajadas de vento, uma tentativa de evitar que possíveis faíscas em linhas de transmissão provocassem novas catástrofes. Milhões de pessoas do Norte do estado ficaram no escuro. Aconteceu também onde moro. Antes de ter a luz cortada, o supermercado anunciava pelos alto-falantes descontos de 30% em todas as carnes. Caminhões frigoríficos estavam a caminho para salvar os congelados. Na fila do caixa, uma mulher falava ao telefone com alguém que estava sendo evacuado por causa do Kincade Fire, mais um incêndio a atingir a região vinícola de Sonoma. Os hotéis de Mendocino ficaram vazios e os restaurantes fecharam. Havia gasolina em um único posto.
O pior de tudo é que, quando falta luz aqui, falta também água, uma vez que a maioria das residências depende de poços artesianos bombeados por motores elétricos. Houve muita gritaria contra a PG&E. Nos jornais, questionava-se a eficácia da medida. Agora, além dos costumeiros mapas interativos dos fogos – com nome e localização dos incêndios, taxa de contenção, número de casas destruídas e quantidade de mortos –, havia o mapa das regiões afetadas pelos blecautes. Logo teríamos também os da qualidade do ar, uma vez que os incêndios florestais transformavam temporariamente algumas localidades em algo parecido com uma cidade industrial do século XIX. Em suma, um apocalipse bem monitorado. Temos o caos e temos ferramentas para medir o caos.
Depois de enchermos o tanque do Corolla naquele novembro de 2019, eu e minha namorada entramos no Mara’s. É um café simpático ao lado do Jardim Botânico. Tinham gerador. Começamos a falar com duas mulheres da mesa ao lado, que tentavam ler notícias sobre os fogos no celular para costurar uma volta a Chico naquela tarde; várias rodovias estavam fechadas. Elas tinham dirigido até Mendocino na véspera para jogar as cinzas de alguém no Pacífico (“Meu marido. Ele não era assim uma pessoa 100% boa. Agora vou poder fazer tudo que eu quiser”). Como minha namorada tinha um trabalho perto de Los Angeles dali a dois dias, decidimos fazer as malas e partir para o Sul do estado, onde os famosos ventos de Santa Ana castigavam a região com múltiplos focos de incêndio televisionados, mas, ao menos, não havia blecaute. Pegamos a Rodovia 101, que cortava uma zona evacuada, e todas as saídas da autoestrada estavam fechadas com cones e guardadas por carros da polícia rodoviária. Pensei nas pessoas que deixaram suas casas para trás, sem saber se, quando voltassem, elas ainda estariam de pé. Ao passarmos pela entrada de Healdsburg, pensei no Centro da simpática cidadezinha onde eu tinha tomado um sorvete com meu pai.
Não podíamos imaginar que, depois de alguns meses, o mundo inteiro se trancaria em casa por causa de um inimigo invisível e que teríamos medo de tocar em maçanetas e de perder pessoas queridas. Também não imaginávamos que a “estação do fogo” de 2020 já demonstraria em agosto – isto é, antes de propriamente começar – que seria ainda pior do que as precedentes; no meio daquele mês, cerca de 12 mil raios atingiram a seca Califórnia, iniciando centenas de incêndios.
De 1º de janeiro a meados de setembro deste ano, 1,4 milhão de hectares foram devastados pelo fogo, o equivalente a nove cidades de São Paulo. No dia 17 de setembro, 18,5 mil bombeiros lutavam contra as chamas no estado. Enquanto isso, no mesmo dia, no Brasil, um enorme incêndio já havia queimado 2,9 milhões de hectares do Pantanal, o que representa 19% de todo o bioma. Segundo o Ministério da Defesa, atuavam no combate ao fogo 430 pessoas, entre militares, bombeiros e agentes do Ministério do Meio Ambiente.
No trailer de Lorraine Dechter em Chico, olho para o pôster de um curandeiro espiritual vestido de branco, com um arco-íris se formando entre as mãos. A desordem ao redor é ostensiva, como se houvesse mais coisas do que o lugar pode comportar. Estamos em um terreno no Centro da cidade de quase 100 mil habitantes. A área pertence a um velho amigo de Dechter (“Comprei esse trailer e vou colocá-lo na minha propriedade. Você fica aqui pelo tempo que precisar”). Ela se levanta, pega um pacote de nachos. Está me contando que acabou de entrar com a documentação necessária para pedir uma casa pré-fabricada à fundação budista Tzu Chi, uma agência humanitária internacional com sede em Taiwan que já doou cerca de 1,2 milhão de dólares para as vítimas do Camp Fire. Dechter ainda não sabe o que vai acontecer, mas o terreno em Paradise é tudo que tem.
Ela liga o computador. Mais cedo, tinha me falado sobre a lista de coisas que perdeu no fogo e que seu advogado precisava anexar ao processo contra a PG&E. Dechter havia postergado o trabalho de redigi-la por meses. Como conseguir a serenidade necessária para listar tudo que você acumulou em tantas décadas de vida e perdeu de uma só vez? Certo dia, decidiu finalmente encarar aquilo como uma tarefa de escrita solicitada pelas terapias cognitivas. “Entrei na internet e peguei fotos de coisas semelhantes às que eu tinha, coloquei as imagens das coisas no arquivo e escrevi sobre elas: ‘Isso não tinha preço porque…’” Agora, ela abre a lista de 147 páginas. Há objetos banais como talheres e panelas, mas também outros repletos de significado afetivo: quadros pintados por amigos, um cobertor mexicano, um tabuleiro de xadrez de ônix, conchas de abalone encontradas na praia, uma bengala com a cabeça de uma águia, livros sobre o Pé Grande.
“Eu estava em um hotelzinho na cidade de Truth or Consequences, no Novo México, quando escrevi a lista. Tinha ido visitar uma amiga na Carolina do Norte, estava levando as coisas dela na minha van, oito caixas de coisas que estavam guardadas em um depósito que alugo em Los Molinas. Eu precisava de lugar no depósito, meu filho também, então peguei aquelas oito caixas e dirigi para a Carolina do Norte. Ela pagou a gasolina. No caminho de volta, meu pneu furou, e eu não tinha dinheiro suficiente, aí acabei na cidade de Truth or Consequences, esperando chegar uma grana que uns amigos estavam me mandando. Fiquei lá até terminar a lista. Foi engraçado. Na parede, logo acima da mesa do computador, em vez de uma pintura, havia uma dessas telas luminosas que você liga na tomada. Era a imagem de um fogo, com um monte de brasas voando.”
“Desde o incêndio, tenho me interessado em saber o que posso fazer com minha memória”, continua Dechter. “Porque o que mais me dói ter perdido são os manuscritos, os livros, as histórias, as coisas que são lembranças, as fotografias. Se houvesse ferramenta para trazer de volta nossas memórias, coisas, ideias, então a gente poderia reescrever os poemas que se perderam, que ficaram total ou parcialmente queimados. Eu sentaria embaixo da minha árvore e escreveria e cantaria as canções que costumava cantar ali.”
Então ela se levanta de novo e abre um armário. Logo após a morte do marido, comprou um cofre à prova de fogo e colocou lá dentro negativos de fotografias e textos que tinham escrito juntos, o que lhe deu alguma tranquilidade para atravessar o luto. O cofre se revelou menos seguro do que prometera o fabricante e acabou queimando. Ainda é possível identificar dentro dele um calhamaço de páginas, que se transformou em algo quebradiço, prateado e brilhante. É tão estranho e tão frágil que tenho receio de chegar perto, mas finalmente o examino com cuidado. Alguns versos de um poema datilografado ainda estão lá.
Não há mais flores bonitas,
foi o que alguém disse.
Você acredita que [ilegível]
Quase não dá para acreditar.
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