Majur, cercada pelas folhas de Apido Paru, a palmeira baixa que dá nome à sua aldeia: “Em vez de plantar soja em terra indígena, o governo deveria fazer programas para premiar esse povo por sequestrar gás carbônico da atmosfera”, diz o prefeito Carlos do Pátio, de Rondonópolis CRÉDITO: VICTOR MORIYAMA_2022
“Estou pronta”
Quem é a primeira líder indígena do país a fazer transição de gênero
João Batista Jr. | Edição 188, Maio 2022
Depois de dar algumas garfadas no almoço – arroz, farinha de mandioca e caldo de peixe, tudo misturado em um pote de plástico de sorvete –, a indígena voltou para dentro de sua casa de palha de babaçu e chão de terra batida. Perto da cama de solteiro, abriu a gaveta da estante e encontrou o que procurava: uma bermuda de cetim lilás e uma camiseta verde-bandeira. No varal, onde estavam estendidas camisetas do Grêmio, do Palmeiras, do Flamengo e do Barcelona, pegou uma toalha de banho e, atrás da casa de seus pais, também de palha de babaçu, despiu-se e tomou um banho de caneca, usando a água da chuva armazenada num contêiner de plástico. Evitou molhar o cabelo chanel, pintado de vermelho-queimado. Pouco depois, anunciou:
– Estou pronta.
Majur Harachell Traytowu, de 30 anos, a principal líder da aldeia bororo chamada Apido Paru, às margens do Rio Vermelho, em Rondonópolis (MT), tinha um compromisso “na cidade”. Calçou um par de Havaianas cor-de-rosa e saiu caminhando por uma trilha estreita, alvoroçando as borboletas multicoloridas sobre os arbustos que ladeiam o trajeto. Logo estava no “porto”, como é chamado o local onde pequenas embarcações apanham passageiros. Subiu numa canoa de madeira, com motor a óleo diesel, e percorreu 1,2 km até chegar ao outro “porto”. Ali, tomou um táxi previamente agendado, que a levou para um dos bairros mais chiques da cidade, a Vila Aurora, e a deixou diante da Clínica Vivere, cujo estacionamento estava lotado de Volvos e Porsches. Dentro da clínica, só mulheres brancas – e Majur Traytowu.
– Parece uma loucura eu estar aqui, mas eu não aguentava mais esperar – disse ela, à porta da Vivere.
A líder indígena tinha uma consulta com a endocrinologista Josiane Neves Coelho Marques. Era uma tarde de janeiro, fazia 34ºC e, logo depois que ela entrou no consultório, desabou uma chuva torrencial que quase abafou a voz da médica.
– O estradiol passou de 28 para 68 – disse a endocrinologista. – Mas o ideal é que fique entre 150 e 200.
A notícia não era boa. O estradiol é o hormônio feminino mais importante para a sexualidade da mulher. Desde outubro do ano passado, Majur Traytowu vem tomando um medicamento que ativa a produção de estradiol. O remédio é indicado para mulheres na menopausa e também para pessoas em transição do gênero masculino para o feminino, o caso de Majur Traytowu. Em julho do ano passado, três meses antes de começar a transição, ela tornou-se a cacica da Apido Paru, aldeia fundada por seu pai há quatro anos, hoje com dezesseis casas de palha e uma população de setenta indígenas, quase todos da mesma família.
Majur Traytowu é um caso raríssimo por três razões. Não se tem notícia de outra indígena que esteja fazendo transição de gênero e, ao mesmo tempo, seja cacica de sua aldeia e solteira. “Existem indígenas assumidamente homossexuais”, diz o antropólogo André Drago, cuja tese de doutorado pela Universidade de São Paulo chama-se Reflexões sobre o Cromatismo Boe (-Bororo). “Mas ninguém fazendo transição e ocupando o posto mais alto da comunidade na condição de solteiro. Os caciques costumam ser homens cisgênero e casados. De certa forma, o poder acaba sendo exercido pelo casal”, completa Drago, que, a fim de elaborar sua tese, fez várias visitas à aldeia para entrevistar os moradores.
Majur Traytowu não demonstrou apreensão com a notícia de que seu nível de estradiol ainda estava baixo, mas não escondeu a ansiedade.
– Doutora, a minha mama começou a crescer, mas ainda está pequena. Não vejo a hora de precisar usar sutiã.
Além de aumentar as mamas e bloquear a produção de testosterona, hormônio presente em maior quantidade em homens do que em mulheres, a medicação tem seus efeitos colaterais, entre eles a irritabilidade e o ganho de peso. A líder indígena continua com seus 83 kg distribuídos em 1,75 metro de altura. “Peso, na verdade, não ganhei, mas senti que fiquei mais agoniada.” Uma das razões de sua angústia é a dificuldade financeira de fazer o tratamento. Cada caixa do remédio custa 60 reais, e Majur Traytowu foi obrigada a interromper o uso da medicação depois de sessenta dias. Como a família estava na penúria, ela precisou escolher entre tomar os comprimidos ou comprar frango e leite Ninho para seus sobrinhos. Agora, no retorno à endocrinologista, soube que terá que aumentar a dose para dois comprimidos diários, elevando o custo mensal para 120 reais. É muito dinheiro, mas ela, depois de tantos percalços, não vai desistir.
Gilmar Traytowu é o caçula dos quatro filhos de Raimundo Itogoga e Jurema Adugo Oro Kujagureudo, nascido dentro da Terra Indígena Tadarimana, cujos 10 mil hectares abrigam hoje 580 indígenas distribuídos em dez aldeias, uma das quais é a Apido Paru. Na infância, Gilmar gostava de brincar com bonecas feitas com restos de tecido e espigas de milho e, desde cedo, exercia atribuições normalmente destinadas às mulheres da aldeia, como cozinhar, varrer o chão, trançar palha e pintar o rosto dos indígenas em dias de festividades. Sua família integrava um clã com grande poder religioso e político dentro da reserva Tadarimana, e Gilmar cresceu vendo famílias irem até sua casa no nascimento e na morte, na saúde e na doença, em busca de conselhos e tratamentos.
Seu avô materno, Cirilo Parikoare, era o único pajé da reserva responsável por quebrar feitiços do Bópe, o demônio, e receitar remédios naturais. Seu pai era – e, aos 80 anos, ainda é – o único chefe de canto da reserva, encarregado de realizar os rituais dos funerais, numa cerimônia importante para a identidade dos bororos. “O chefe de canto tem de ser necessariamente mais velho. Os ritos funerários incluem cantos complexos e longos, que exigem conhecimento enorme da mitologia bororo. Essa pessoa é preparada ao longo da vida. Quando criança, passa certos remédios naturais na orelha para aprender com as divindades”, diz o antropólogo Drago.
Entre os bororos, os rituais funerários levam noventa dias. O defunto fica embrulhado em uma cesta de palha, que leva uma alça feita de kodo bíe, uma longa tira de casca de árvore. Toda semana, os indígenas jogam água no corpo para acelerar a decomposição. “Até vermos o osso”, diz Raimundo Itogoga, o pai de Majur Traytowu, deitado em uma cama de palha no quintal de sua casa. “As mulheres não podem participar dos cantos, nem na hora da oferenda dos alimentos para a alma, como suco de palmito e de cajazinho e mingau de milho. Elas participam da cerimônia dos prantos”, diz Itogoga, indiferente ao fato de que seu filho Gilmar integrava o coro das mulheres. Nos funerais, Gilmar, que ainda não se chamava Majur, sempre executou as tarefas femininas. “Eu sei chorar muito bem”, diz ela.
Majur concluiu o ensino médio, gostava de matemática e línguas – inglês, português e bororo – e já morou em outras aldeias do povo Bororo instaladas em diferentes reservas indígenas, mas nunca viveu numa cidade. Na escola, ou entre os amigos de infância e adolescência, diz que jamais sofreu bullying. “Se sofri, eu não lembro. Não tenho memória de nenhuma caçoada comigo por causa da minha condição.” Deu seu primeiro beijo na boca aos 12 anos, em um colega indígena. Sua primeira relação sexual foi aos 16. Nunca teve um relacionamento fixo em sua vida, nem tinha contato com gays em sua aldeia, muito menos transexuais. Mas, por meio do YouTube, sabia que o mundo não era exatamente composto apenas por homens e mulheres cisgênero. “Eu passava horas e horas vendo matérias sobre Carnaval e a Parada Gay de São Paulo”, recorda. (Na Apido Paru, não tem energia elétrica nem água encanada, mas o sinal de internet funciona muito bem.) Para Majur, no entanto, aquelas transexuais e travestis de corpos esculturais que apareciam na tela de seu smartphone, com cintura fina, seios fartos e cabelos pela cintura, não estavam ao seu alcance. Eram resultado de investimento de muito dinheiro.
Desde a adolescência, adotou cabelos mais longos. Gostava de passar batom nos lábios e lápis nos olhos. Na vida adulta, Majur acabou ficando responsável por ajudar na lida e no sustento dos sobrinhos pequenos, filhos de sua irmã mais velha, Laurita, que sofre por dependência de álcool. Por isso, parte dos sobrinhos e sobrinhos-netos dormem na casa de Majur. Ela tem um jeito pacato, quase introvertido, voz baixa e sorriso contido. Não é tímida, mas mantém certa distância das pessoas. Só fala quando lhe perguntam alguma coisa. Quem dá o tom da conversa é sempre o interlocutor. E foi assim, oscilando entre a timidez e a serenidade, que Majur vinha conduzindo sua vida – até que um acidente, ocorrido em 2017, mudou tudo.
Paulo Kwogo Itou estava na garupa de uma moto em Barra do Garças, cidade mato-grossense na divisa com Goiás. Não usava capacete. De repente, o galho de um arbusto bateu em seu olho – e atingiu em cheio a córnea. Começou um sangramento. Paulo Itou – que é o irmão mais velho de Majur – foi então levado ao posto de saúde das proximidades, mas os atendentes acharam melhor que fosse transferido de ambulância para Cuiabá, a capital que fica a 510 km de distância. Socorrido no hospital, decidiu-se que Itou precisava receber um transplante de córnea, sob pena de perder a visão. Raimundo Itogoga achou que o filho devia contar com a presença de alguém da família e pediu a Majur, que é fluente em português e bororo, que acompanhasse o irmão e conversasse com os médicos.
Era o começo de 2017, e Majur partiu então para Cuiabá, cidade que já conhecia. Ela e o irmão ficaram hospedados na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), mantida pelo Ministério da Saúde. Majur apresentava-se como Gilmar, mas usava blusa feminina e, de vez em quando, alguma maquiagem. Uma psicóloga da Casai percebeu aqueles sinais e perguntou se Gilmar gostaria de fazer uma terapia durante o período em que ficaria na companhia do irmão. Mais por curiosidade, Gilmar topou.
A questão da transexualidade apareceu logo na primeira sessão, quando a psicóloga Regina da Silva Ramalho perguntou qual era o maior sonho de Gilmar. A resposta veio inequívoca: “Ter seios, cabelos, cintura… tudo de mulher.” Para ilustrar esse desejo, contou algumas passagens simples da vida que lhe davam grande alegria, como ter dinheiro para comprar tonalizante para tingir os cabelos, quando conseguia alguma maquiagem e, acima de tudo, quando alguém em seu perfil no Facebook a confundia com uma mulher cisgênero ou transexual. “Além dessa resposta, logo no início do atendimento perguntei como o paciente gostaria de ser tratado”, relembra a psicóloga. Gilmar nunca escolhera um nome feminino, mas disse que gostaria de ser tratado como “ela”. Quando ouviu uma explicação técnica sobre transexualidade, Gilmar identificou-se por inteiro.
Depois de apenas seis sessões, no curso de um mês, já estava claro que Gilmar nunca quis ser Gilmar. Quando seu irmão concluiu o transplante de córnea e recebeu alta, Gilmar voltou para a aldeia de Apido Paru com uma ideia fixa: fazer a mudança de gênero pelo SUS, pois sua psicóloga lhe informara que o sistema público oferecia os remédios, o acompanhamento psicológico e, inclusive, a cirurgia de redesignação sexual. Sua primeira providência foi adotar um nome feminino. Escolheu Majur (“acho parecido com Gilmar”), Harachelle (“vi no anúncio de lançamento de um prédio perto da faculdade de Rondonópolis”) e Traytowu (“o sobrenome do meu documento mesmo”). Trocou sua apresentação no perfil do Facebook, mas não pediu a ninguém que passasse a chamá-la de Majur.
Começou a pesquisar diariamente a melhor forma de se consultar, quais medicamentos lhe receitariam. Em frente ao espelho, encolhia a barriga, fazia poses, imaginando seu corpo depois de uma transição. Mas não adotou nenhuma providência concreta. No ano seguinte, 2018, foi tema de um documentário chamado Majur, dirigido por Íris Alves Lacerda e exibido em alguns festivais (hoje disponível no YouTube). Conheceram-se quando Lacerda investigava sobre os anciões do Rio Vermelho. Majur serviu de tradutora e acabou encantando Lacerda com sua história de indígena que se reconhecia como mulher trans. “Estive em Porto Alegre para o lançamento do documentário. Foi a primeira vez que fui numa Parada Gay. Me senti alegre”, diz ela.
Em 2019, antes da pandemia de Covid, também não teve tempo para cuidar da transição. Começou a trabalhar como agente de saúde indígena, com a atribuição de encaminhar as demandas da sua aldeia na Funai e na Prefeitura de Rondonópolis. Tinha carteira assinada, ganhava um salário mínimo e seu trabalho duplicou com a chegada da pandemia. (Em janeiro passado, Majur deixou o emprego para se dedicar integralmente às atividades de cacica. Nenhum indígena morreu de Covid em sua aldeia.)
Só em 2020, Majur finalmente marcou uma consulta no SUS, em Rondonópolis, e foi atendida pela endocrinologista Josiane Marques – a mesma que, um ano depois, por coincidência, seria sua médica na Clínica Vivere. A médica lhe pediu uma série de exames. Quando Majur voltou com os resultados, foi informada de que não havia nenhum programa de transição pelo SUS na cidade. Nem mesmo em Cuiabá. Se quisesse iniciar o processo, teria que se mudar para Goiânia, a mais de 700 km de Rondonópolis. Em Goiânia, ficaria pelo menos um mês, consultando psicólogo e psiquiatra, para obter o aval para o tratamento. A notícia a abateu. Deixar a aldeia não era uma opção. Ela ainda trabalhava como agente de saúde e, em plena pandemia, viajar para longe seria um risco.
Em julho de 2021, Majur começou a ocupar o cargo de cacica, substituindo o pai (o posto de cacique não é hereditário; Majur foi escolhida por sua liderança natural). O cacique, ou a cacica, tem muito que fazer, pois atua como diplomata. Além de cuidar da aldeia, aconselhar quem está com dificuldade e mediar atrito entre as famílias, o cacique é o interlocutor entre os indígenas e os brancos – governos, Funai, ONGs, entidades civis. No segundo semestre do ano passado, por exemplo, Majur abasteceu sua comunidade com as cestas básicas doadas pela Central Única das Favelas (Cufa). “Nós conseguimos as cestas e a doação de vale-refeição de 130 reais, mas o frete era por conta dos agraciados. Todo mês a Majur vinha buscar as doações para levar até a aldeia”, diz Anarrory Sant Anna, líder da Cufa em Rondonópolis e indígena do povo Juruna/Yudjá, da região do Baixo Xingu.
Além disso, Majur precisa lidar com os problemas específicos da Apido Paru. A aldeia não tem poço artesiano, o que força os moradores a se embrenhar pelo mato para fazer as necessidades fisiológicas. No ano passado, a prefeitura construiu uma caixa d’água de 15 mil litros, mas até hoje a caixa não foi ligada. Cabe, também, a um cacique lidar com os problemas mais amplos dos moradores da reserva de Tadarimana, entre os quais a expansão descontrolada das fazendas de criação de gado na região, que vem reduzindo drasticamente a população de antas, jacus e queixadas, alimentos de caça comuns para os indígenas.
Zé Carlos do Pátio, do Solidariedade, prefeito de Rondonópolis pela terceira vez, reconhece a importância da reserva Tadarimana. “Os indígenas preservam toda essa área e permitem uma temperatura mais amena aqui na cidade”, diz ele. “Nós somos a capital nacional do agronegócio e, se não fossem as aldeias indígenas, tudo já teria sido devastado.” Rondonópolis, com seus 240 mil habitantes, tem uma economia que gira em torno da tríade gado, soja e milho. Alguns dos maiores frigoríficos do país, entre eles o Agra e Superfrigo, instalaram seus abatedouros na região há décadas. O império da família de Blairo Maggi, conhecido como o Rei da Soja, foi construído nas imediações. “Não contamos com o governo federal para nada relacionado à questão dos índios; em vez de plantar soja em terra indígena, o governo deveria fazer programas para premiar esse povo por sequestrar gás carbônico da atmosfera”, diz Carlos do Pátio, que se orgulha de ter instalado três poços artesianos na reserva e ar-condicionado nas salas da escola da aldeia central.
Apesar do trabalho como cacica, logo que assumiu o posto Majur resolveu fazer uma consulta particular em Rondonópolis para tratar da sua transexualidade. Escolheu a Clínica Vivere, apesar do preço: 480 reais a consulta, dinheiro que conseguiu reunir com o salário de agente de saúde e o cachê que recebeu de uma produtora para gravar um vídeo sobre os bororos. Ali, teve a boa surpresa de ser atendida pela endocrinologista Josiane Marques, que lhe pediu novos exames, todos realizados pelo sus. O tratamento, enfim, começou em outubro de 2021, quando Majur passou a tomar o medicamento para aumentar o nível de estradiol. Tudo acontece num ambiente que, aos olhos dos forasteiros, ora parece secreto, ora apenas natural.
A transição de gênero da cacica não é assunto em Apido Paru. Ou quase ninguém sabe ou simplesmente ninguém comenta. Majur, ela mesma, trata como algo estritamente pessoal. “Não escondo de ninguém, mas também não saio por aí falando”, diz ela. Nem informou seus pais sobre a decisão de tomar remédio, mas eles não parecem interessados no assunto. “Nunca o meu pai me criticou por fazer a tarefa das mulheres”, diz Majur, ao relembrar a época em que, na infância e na adolescência, se integrava sempre ao grupo feminino da aldeia.
Algumas de suas sobrinhas sabem do uso do medicamento porque notaram uma mudança nas mamas. Então, Majur explicou o que estava acontecendo. “A minha função é trazer ajuda para cá, como comida, e batalhar por um poço artesiano”, diz. “As pessoas não comentam nada comigo porque o principal é que eu faça um bom trabalho. Eu nunca escutei piada aqui dentro nem em outras aldeias, nunca ninguém virou as costas para mim. Se tiver algum indígena bororo preconceituoso é porque ele copiou o homem branco.”
“Isso de se chamar Majur é mais recente, mas ele sempre foi assim. Só faz os trabalhos de mulher, cuida muito bem das crianças. Eu vejo como algo normal. Nunca vi ninguém tratar diferente porque usava roupa de mulher ou cabelo mais longo”, diz a indígena e amiga Vanessa Johlis, de uma aldeia vizinha, a Pobori, onde a família de Majur vivia antes de fundar a Apido Paru. “A aldeia deles é a mais recente da reserva, e todo mundo sabe que o Gilmar cuida bem de tudo. Lá não tem bagunça por causa de bebida, briga entre as famílias. Ele bota ordem.” De fato, recentemente Majur expulsou duas primas, com seus maridos e filhos, da aldeia Apido Paru. Elas estavam bebendo cachaça e vodca, colocando o som muito alto e causando confusão. “Até para ficar o exemplo para todo mundo, não posso aceitar quem passa o dia brigando e bebendo.”
A irmã Laurita também reconhece o trabalho de Majur. “Cuida dos meus filhos e dos meus netos. Sobre isso de gostar de homem eu não me importo, cada um tem a sua vida.” Romilson Koriga, casado com uma sobrinha de Majur, já conversou com ela sobre a transição. “Eu notei algumas mudanças no corpo, mas não me importo com isso. Aqui não tem nada disso, essa questão é do homem branco. O Gilmar trabalha bem, cuida de todo mundo. Por que vou ser contra alguém assim?” A ausência de manifestações de preconceito também pode estar relacionada ao seu posto – afinal, numa aldeia indígena, ninguém quer confusão com o cacique ou a cacica.
Em sua aldeia, Majur é Gilmar e todos se referem a ela como “ele”, inclusive seus pais. Ninguém corrige, nem Majur. “Meus pais me respeitam da forma como sou, sabem do meu comprometimento com a aldeia. Não é o nome nem a roupa que definem uma pessoa”, diz.
Majur continua sem um companheiro. Quando tem algum envolvimento, é por meio do Facebook e do Instagram. Ela instalou o aplicativo de relacionamentos Grindr, destinado ao público lgbtqia+, mas achou tudo muito imediatista e arriscado. “Tem muito branco que olha para a mulher trans como fetiche, preciso tomar cuidado.” Recentemente, em uma das idas ao mercado da cidade, observou que duas mulheres apontavam para ela. Uma comentou, em voz alta, que não sabia que existiam “índios viados”. “Eu olhei bem e não respondi. Não gosto de briga.”
Seu principal objetivo para o futuro próximo é mudar a documentação. Majur chegou a marcar um encontro com uma despachante de Rondonópolis, que pediu 3 mil reais para refazer os papéis. A indígena achou caro demais e não aceitou. Não sabia que, para pessoas carentes, a mudança para o nome social é um serviço gratuito. Entre seus planos, está também cursar a faculdade de enfermagem. Ainda tem dúvida sobre fazer a cirurgia de redesignação sexual. “Antes, quero mudar meu corpo, ficar feminina”, diz. Está empenhada em conseguir os 120 reais por mês para tomar os dois comprimidos que a médica lhe receitou. Pretende ganhar algum dinheiro fazendo bicos como modelo e palestrante.
Antes do alvorecer, gosta de ficar observando – e contando – as araras-canindés que pousam nas copas das árvores de cajazinhos, a fruta da cajazeira que é assim chamada em Mato Grosso. Às vezes, aparecem seis. Às vezes, dez. “Eu vejo esses animais e penso na vida: eles são lindos, livres. Não tem como ver um bicho desses e não pensar que a natureza é linda.”