Estranha matéria
Eucanaã Ferraz | Edição 72, Setembro 2012
RECEBEI AS NOSSAS HOMENAGENS
Único homem acordado nesta noite, o apartamento
apertado parece imenso; vagueio desacordado de tudo
e sobretudo em desacordo comigo, único homem
acordado no mundo; o teatro estreito assim vazio
parece largo, perambulo absoluto, príncipe estragado;
não dormir é meu palácio; a Dinamarca, diminuta,
parece dilatar-se enquanto palmilho o ar do quarto.
Vem o dia, e o fantasma de meu pai não me aparece.
PAPEL TESOURA E COLA
Dia de verão na Vista Chinesa. Eu, sozinho,
era um mandarim frio; mas vendo tudo
do alto, tomado pela beleza, achei que
em meu coração a tristeza era mesquinha;
pensar em mim e em você me pareceu avareza,
tendo em vista que nós somos bem menores
vistos do Alto da Boa Vista. Janeiro bicicletas
bem-te-vis entraram pelos meus olhos
abrindo em cheio meu peito; que sombra
demoraria à luz de tantas lanternas?
Mesmo a noite mais profunda logo se incendiara
e, decerto, morreríamos só depois da madrugada.
Era uma tarde chinesa, tarde de mim sem você,
quando vi que nós dois juntos não valíamos
a cena.
MELANCOLIA
Uma cópia do nosso quarto, cada coisa, e pedaços da paisagem lá fora;
não se trata de dor ou desespero, é apenas a cópia da minha alegria;
uma cópia das suas mãos abertas, paradas, uma cópia do seu carinho,
uma cópia dos seus olhos, uma cópia idêntica do seu modo de olhar,
em preto e branco, cópias das tardes que hoje eram sempre a luz,
como tangerinas, das noites em que parece arder um metal diferente,
sua voz, o cabelo, uma festa, a cópia do seu colar, da sua lágrima,
uns amigos, você sorri; não são a dor ou o desespero, são só as ruas,
cópias das ruas, milhões, que deslizam e não dependem de
nós.
Todos estão cegos. Todos estão loucos. Todos estão mortos.
Deuses habilidade súplica suborno não têm nenhum poder
e nos lançamos ao destino, ao veredito da sorte, às leis do acúmulo,
rios hotéis palaces suítes, reproduções disso e daquilo, do que
não vemos nem saberemos, imagens não me sirvam de consolo
mas quando sejam o horror guardem ainda alguma beleza, a cópia
da beleza de quando éramos nós dois e o mundo; não é o fim,
é o dedo de ninguém sobre a tecla que nos copia, somos nós
sem nós em cópias, à perfeita e sem fim ilusão, à perfeição
da vertigem.
GRAÇA E SEMPRE
Um, a ideia o deu;
dois, algum esforço,
e ainda outro;
é neste verso, o quarto, que ela chega
e interrompe,
quando a melancolia maquinava um daqueles poemas,
mas a grande obra toda se desfez na luz repentina que
me sorria.
VIDA E OBRA
Repare, Cicero, que os copos se tornam
mais leves quando cheios de vinho.
E, você há de concordar comigo, a cada copo
essa impressão cresce. Deuses, vazio,
canções, vinho: este é um poema sobre poemas
e amizade.
Repare que o mesmo se dá conosco: o peso
faz-se leve em nós se um verso nos acontece.
QUAL ERA O NOME
A cauda aqui vai
sozinha
à parte
da lagartixa
por prestações
a varejo
e nenhuma cola
fixa
o que se supunha
gêmeo
do que se mirou
no espelho;
é o que digo:
se sou, sou-o
in-
completamente
e discordante, des-
conjunto,
de mim
o quase, somente
este mais não ser
que ser,
metade, nem
falta
sente do que não
carrega,
peso morto,
tralha, palha,
menos que tudo,
incerto,
palha, tralha,
leso, oco,
apenas um braço
basta,
estou bem assim,
sem rosto,
ninguém mais
e nenhum outro.
LES ROMANCIERS ÉTRANGERS
Ela implorou por um beijo.
Sabia que um só beijo
e tudo estaria bem,
que outro beijo viria,
mais um, outro e tudo mais.
Sim, ela implorou chorando
que lhe desse um beijo e só.
Mas ele disse que não.
Firme e frio, disse que não.
Ele sabia, sem dúvida,
que se cedesse ao pedido
tudo estaria bem e
que outro beijo viria
e ele, decididamente,
não queria. Foi por isso
que ficou daquele modo,
firme, frio. Ela implorava,
olhos inchados, vermelhos,
estava dessa maneira
quando saíram à rua
e ele fingia que nada,
nada havia acontecido.
Mas como ele conseguia
ser assim, intransponível?
Diante dela, parecia
que se convertera em pedra,
pedra inteiramente não,
muro inteiramente muro.
Que fazemos quando alguém
que amamos se faz assim
diante de nosso desejo,
frente a nosso desespero?
Hoje os olhos estão secos.
Ela lembra. E ela entende
que tudo foi bem pior:
porque a pedra não era ele,
porque a pedra era ela mesma,
apesar de toda lágrima.
Sim, ela era a pedra dele,
em que ele a transformara.
TALVEZ HOJE
Estranha matéria, que sobe do fundo
à flor da memória camada de espuma
diário de bordo vem quebrar aqui
sobre nosso peito com seu arsenal
de velhas paisagens e gente sem rosto;
se quase podemos tocá-la, não sabemos,
no entanto, em que praça, em que tempo
se dão o abraço o beijo que, talhados
no passado, emergem na água de agora
à maneira de cristais, mas que são vidros
difusos e são doces, matam a sede
e nos matam. Insepultos, ressurgimos.
TUDO VAI TERMINAR BEM
Rogai por nós Mercearia Nossa Senhora das Graças
Café e Restaurante Nossa Senhora de Fátima
por nossas alegrias Padaria São Jorge
Imobiliária São Jorge Vidraçaria São Jorge
porque jamais voltaremos à casa dos nossos dias
rogai por nós Maternidade Santa Maria Clínica
Pediátrica São Boaventura Casa de Repouso
São Bartolomeu olhai por nós
Clínica Oftalmológica São Judas Tadeu
Instituto de Beleza Santa Inês imploramos
amor e cremos sempre outra vez Depósito
de Bebidas São Pedro Autoescola São Cristóvão
quando estivermos sós, e só, ó cidade de São Paulo
tende piedade de nós na hora de nossa morte
rogai por nós Cristo Redentor Avenida
Nossa Senhora de Copacabana.