Ressentimentos mútuos se avolumaram entre Geraldo Alckmin e João Doria. O ex-governador de São Paulo Alberto Goldman, da ala histórica do PSDB, classificou Doria de “fascistoide”: “Ele é uma farsa. Acabou se revelando um mau gestor e um político que utiliza as práticas mais abomináveis” FOTO: DIEGO PADGURSCHI_FOLHAPRESS
Estranhos no ninho
Guerra no PSDB compromete as ambições presidenciais de Geraldo Alckmin
Consuelo Dieguez | Edição 141, Junho 2018
No seu último dia como governador de São Paulo, Geraldo Alckmin olhou distraidamente pela janela de seu gabinete, no Palácio dos Bandeirantes, e, sem demonstrar emoção, comentou em voz baixa: “Passei os últimos oito anos nesta sala.” Voltou a vista para o ambiente, decorado com móveis escuros e pesados, e continuou sua digressão, em tom monótono: “Na verdade foram vinte anos no total, contando desde a primeira vez que entrei aqui como vice-governador, em janeiro de 1995, quando fiquei por seis anos. Depois, mais seis como governador e, novamente, mais oito, de 2010 até agora. Se acharem alguém com mais tempo que eu nessa cadeira, me falem”, disse, reconhecendo na longevidade um grande acontecimento.
Geraldo Alckmin é, incontestavelmente, o mais longevo ocupante do Palácio dos Bandeirantes, sempre pelo PSDB, partido que por quase um quarto de século governou o estado de São Paulo. Naquela sexta-feira, 6 de abril, ele se despedia do posto, nove meses antes da conclusão do mandato, para entrar na disputa por outra cadeira – a de presidente da República, no Palácio do Planalto, de onde o PSDB está apartado há quinze anos. Será a segunda vez que ele se lança na empreitada. Quando debutou, nas eleições de 2006, foi derrotado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que concorria à reeleição.
Alckmin se aproximou de sua mesa, ocupada por pilhas de livros de que estava se desfazendo. Apontou para uma encadernação de mapas do Brasil e avisou à secretária que ficaria com ela. “Gosto muito de mapas”, explicou, enquanto desdobrava um enorme, presente do senador maranhense Roberto Rocha, eleito pelo PSB e convertido ao PSDB em 2017. Debruçou-se sobre a carta e, deslizando o dedo pelo estado do Acre, fixou-se, de maneira causal, no ponto onde estava marcada a cidade de Cruzeiro do Sul. Bateu repetidamente o dedo sobre o local, chamando a atenção para a dificuldade de se fazer conhecido num país de dimensões continentais. “Precisa ter alguém aqui que vai votar em você, distribuindo santinho.”
Nas eleições de 2014 ao governo de São Paulo, Alckmin venceu em 644 das 645 cidades do estado. Apesar da crise hídrica que assolava a capital, garantiu sua reeleição em primeiro turno, com mais de 12 milhões de votos. Agora, me disse, precisava mostrar para o eleitor “do Oiapoque ao Chuí” que sua experiência à frente do estado mais rico da federação o credenciava para resgatar um país com 13 milhões de desempregados, 140 bilhões de reais de déficit público, pobreza endêmica e uma crise sem precedentes na segurança pública. “Vou percorrer o Brasil de norte a sul, de leste a oeste, pregando a união nacional”, falou, sem se exaltar. “Sei que será uma campanha difícil, mas estou otimista.”
Vestindo uma camisa branca com as mangas arregaçadas e uma calça azul-marinho meio surrada, presa por um cinto tão apertado que parecia ter a função de efetivamente mantê-la presa ao corpo, ele deixou o gabinete por volta das nove da manhã e rumou para a sala de reuniões, onde assinaria convênios com diversos prefeitos, uma de suas últimas atividades ainda como governador. Embora evitasse qualquer referência às eleições de outubro, era tratado como candidato. Após firmar um acordo com a Santa Casa de Jaci, no interior do estado, ele ouviu do diretor do hospital, frei Francisco Belotti, que o religioso rezaria por ele no Santuário de Fátima, em Portugal, para onde iria viajar no final do mês. O governador sorriu encabulado.
Ao encontrar a comitiva do prefeito de Matão, Alckmin elogiou a indústria local. João Marchesan, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, a Abimaq, que integrava o grupo, foi logo dando seu recado: “O Pérsio Arida tem uma linha política liberalizante. Se fizer isso sem dar igualdade de condições para a indústria nacional, em cinco anos estaremos novamente quebrados.” O governador argumentou que o segredo era saber fazer o jogo da inserção internacional. Marchesan retrucou: “Ninguém quer proteção, queremos isonomia.” Sem subir o tom, Alckmin respondeu que Arida, responsável pelo programa econômico de sua campanha, daria as ideias, mas quem estaria no controle seria ele.
Depois correu para o auditório contíguo à sala. “Isso aqui parece hospital”, comentou. “É assim das seis da manhã às onze da noite.” Centenas de prefeitos, recepcionados pelo então vice-governador Márcio França, do PSB, o esperavam para comemorar a entrega de casas populares. O PSB nunca se coligou nacionalmente com o PSDB, mas graças à aliança feita com os tucanos em São Paulo, dali a algumas horas passaria a comandar o mais rico e poderoso estado da federação, desalojando os tucanos de sua maior vitrine. E mais: França é candidato ao governo do estado nas eleições de outubro. Se ganhar, derrotando o ex-prefeito João Doria, candidato do PSDB, o partido ficará fora do Bandeirantes por pelo menos quatro anos. Ao entrar no recinto, Alckmin foi saudado com gritos de “Presidente!” Ele agradeceu o apoio e avisou que deixava São Paulo “nas mãos competentes e honestas de Márcio França”. Saiu ovacionado.
Por volta das 10 horas, Alckmin já estava no helicóptero que o levaria às estações de metrô que vinha inaugurando – algumas das quais com atraso de mais de dois anos – no apagar das luzes de sua gestão. Só naquele dia seriam quatro. Enquanto sobrevoava a cidade, leu as principais notícias que sua assessoria tinha assinalado nos jornais. Todas as manchetes estampavam a ordem do juiz Sérgio Moro para que Lula se entregasse até o final da tarde à Polícia Federal. Lacônico, o governador disse que aquilo tudo era “triste”. Lula estava entrincheirado no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, junto com seus apoiadores, e havia certa tensão no ar – não se sabia se o ex-presidente acataria a ordem judicial. “A lei tem que ser cumprida”, Alckmin balbuciou. A gravidade do acontecimento havia ofuscado completamente a cerimônia da troca de comando no governo paulista.
Ao chegar à primeira das estações, o tucano foi sendo empurrado para dentro da composição do monotrilho por um séquito que queria seguir com ele no mesmo vagão. Em tom professoral, ele apontava pela janela os bairros da Zona Leste que seriam atendidos pelo serviço, alertando repetidas vezes e pronunciando as sílabas uma a uma tratar-se de uma região com po-pu-la-ção mai-or que a do U-ru-guai. Quando viu o trem se aproximar da estação São Lucas, uma faísca de satisfação pareceu iluminar sua fisionomia. “São Lucas, o médico de homens e de almas. O mais querido dos evangelistas por ser o mais a-mo-ro-so”, ensinou.
De pé, segurando na alça superior do vagão, indiferente à algaravia ao redor, ele se pôs a recitar máximas que repete como mantras: “Política tem que ser feita assim, de forma a-mo-ro-sa. Política é esperança. Não é coruja que só pia agouro e nem a Cassandra do apocalipse. Política é arte e ciência ao encontro do bem comum.” Arte, ele disse, é o dom de gostar das pessoas, de “estar a serviço do irmão”. Ciência seria estar preparado para lidar com questões complexas e tomar decisões difíceis. “Vejo no debate político muita superficialidade. Políticos tomam decisões que afetam a vida de milhões de pessoas, que levam ao desemprego, à recessão, ao sofrimento. Não é possível que continue essa discussão rasa.”
O tucano tem o hábito de incorporar à sua fala um caso ou uma citação. Seu temperamento contido às vezes exaspera correligionários e aliados, temerosos de que isso seja uma desvantagem numa campanha em que os candidatos precisarão se conectar com a indignação e o desencanto do eleitor. Alckmin não se abala com isso. “Agressividade não vence eleição”, disse. “Em política não se obriga, se conquista.”
A natureza insípida do ex-governador lhe valeu o apelido de “picolé de chuchu”, dado pelo humorista José Simão. E a piada pegou. Outro elemento que pode atrapalhar Alckmin é o fato de ele pertencer a um partido tradicional, num momento em que a sociedade está saturada dos políticos e parece procurar um nome novo, que de alguma forma represente uma ruptura com o status quo. Ele também discorda. “Acho que tem muito modismo. O que é ser novo na política? É a idade? É ter 30 ou 60 anos? É ter experiência nenhuma?” Arriscou uma definição: “Novo, para mim, é defender o interesse coletivo, é ter responsabilidade fiscal, é ter experiência para governar, é não fazer políticas populistas que acabam por arruinar o país.” Tomando a si mesmo como exemplo, disse que agora, aos 65 anos, sente-se muito mais amadurecido e preparado para governar o país do que em 2006, quando tinha 53. “Para mim, velhas são as corporações, a elite do funcionalismo que tomou conta do setor público se unindo a grupos privados que cresceram não por seus méritos, mas por serem amigos do rei.” Profissão de fé liberal e pendor para platitudes se combinam na fala de Alckmin.
Na mesma manhã em que Lula se via acuado pela ordem de prisão e Alckmin inaugurava obras a toque de caixa, Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, ex-diretor da Dersa, a estatal paulista de rodovias, foi preso por suspeita de desvio de recursos das obras do Rodoanel, em São Paulo, durante o governo de José Serra, de 2007 a 2010. Ao desembarcar do vagão, Alckmin foi cercado por um batalhão de repórteres. Queriam saber se a prisão do homem apontado como operador do dinheiro ilícito do PSDB no estado teria consequências sobre sua campanha. O tucano permaneceu impassível e respondeu que não havia por que ser afetado, já que não tinha nenhum envolvimento com o caso. Embora tenha ganhado poder e influência na gestão de Serra, Paulo Preto se tornou diretor da Dersa em 2005, ainda sob o governo Alckmin.
Naquele começo de abril, não era só isso que empanava sua candidatura. Havia a expectativa de que o senador Aécio Neves, candidato à Presidência da República em 2014 pelo PSDB – e, de quebra, presidente nacional do partido até outubro do ano passado –, se tornasse réu no Supremo Tribunal Federal por causa da gravação de uma conversa com Joesley Batista, um dos donos da JBS, na qual o político mineiro pedia 2 milhões de reais ao empresário. Aécio, de fato se tornou réu dias depois. Não bastasse, também estava próximo o julgamento do ex-governador de Minas Gerais pelo PSDB, Eduardo Azeredo, envolvido no chamado mensalão tucano. (Azeredo foi preso em 23 de maio.)
No helicóptero, de volta ao Bandeirantes, Alckmin tratou de se distanciar dos acusados. “Tenho quarenta anos de vida pública, sempre eleito pelo voto popular. Não sou filho da dinastia política e nem da fortuna pessoal. Nasci com o povo, na periferia, nos bairros, e desde meu primeiro mandato como prefeito nunca fui acusado de nada. Tenho a consciência absolutamente tranquila.” Elogiou o PSDB “por não se opor à investigação de seus pares, ao contrário do que faz o PT”, e reforçou a atuação do Judiciário: “A lei vale para todos. Que haja investigação e que se faça justiça inocentando os inocentes e punindo os que cometeram delitos.” Nenhuma palavra em defesa dos correligionários.
A trajetória do próprio Alckmin tem pontos cegos que aguardam explicação.Na delação da Odebrecht, um dos colaboradores afirmou que o Setor de Operações Estruturadas da empreiteira, onde a propina aos políticos era administrada, havia contribuído com 10 milhões para as campanhas de Alckmin de 2010 e 2014. Na contabilidade da empresa, ele aparecia sob o cognome de Santo, escolhido em homenagem ao fervor católico do ex-governador. Segundo o delator, os recursos teriam sido repassados, via caixa dois, a Adhemar Cesar Ribeiro, irmão da mulher de Alckmin, Maria Lúcia. Como a investigação não tem a ver com a Lava Jato, ela foi encaminhada ao Tribunal Regional Eleitoral, e não à Justiça comum, uma vez que a suspeita é de irregularidade eleitoral, e não de crime de suborno. “Foi uma denúncia eleitoral que veio para o ambiente adequado e já prestei esclarecimentos”, disse o tucano, insistindo: “Estou com a consciência tranquila. Nada disso afetará minha campanha.”
Queira ou não o ex-governador, esses episódios mancharam a imagem do PSDB, que procurava se colocar como paladino da moralidade quando os escândalos do PT vieram à tona. “Não se trata só do candidato, trata-se de saber como a sociedade perceberá o partido que agora tem seus próprios escândalos”, me disse um analista ligado aos tucanos. “Alckmin terá que trabalhar muito para se descolar das imagens de Serra e de Aécio, além de ter que se defender das acusações da Odebrecht.” Ele entende, porém, que o fato de a acusação de propina ter ido parar na Justiça Eleitoral deixa o presidenciável menos exposto.
Nas pesquisas do instituto Datafolha realizadas em abril, Alckmin tinha entre 6% e 8% das intenções de voto, a depender do cenário. Aparecia embolado com Ciro Gomes, do PDT, atrás de Marina Silva, da Rede, e de Jair Bolsonaro, do nanico Partido Social Liberal, líder quando Lula é retirado da disputa.
Há um fenômeno curioso a ameaçar as candidaturas de centro, como a de Alckmin, em caso de confirmação do impedimento de Lula. A empresa de pesquisa Ideia Big Data identificou que, considerando o conjunto do país, de cada dez eleitores de Lula, um tem Bolsonaro como segunda opção. No Rio, de cada dez, quatro votariam em Bolsonaro na ausência do petista. Em São Paulo, Alckmin herda apenas um de cada dez votos de Lula.
Nada disso parece afetar o humor do tucano. “Não se deve dar tanta importância às pesquisas neste momento.” Ele acredita que por ora as eleições só preocupam políticos e jornalistas. “A maioria das pessoas está ocupada com seus afazeres, com sua vida. Só vão pensar em eleição quando mudar o horário da novela. Vão dizer, ‘Opa, começou o horário eleitoral.’” Para as lideranças tucanas, Alckmin insiste em dizer que ninguém deve ter expectativas de que ele venha a crescer de forma significativa antes do início do horário eleitoral, em meados de agosto. Além disso, só em julho serão definidas as alianças partidárias regionais e nacionais, o que pode tirar de cena alguns dos que hoje se dizem candidatos à presidência. “Com tanta gente no páreo fica difícil para qualquer um se mexer nas pesquisas”, avaliou Alckmin. A sua aparente tranquilidade, porém, não aplaca a angústia que vai tomando conta do partido. Bastante preocupado com a estagnação do candidato nas pesquisas, um assessor do PSDB me disse que Alckmin tem “uma autoconfiança quase messiânica de que vencerá as eleições”.
De volta ao palácio, ele se recolheu à ala residencial, no 3º andar, para despachar o resto de sua mudança pessoal para o apartamento que possui perto dali, no Morumbi. Entre seus pertences havia mais de duas dezenas de pastas de plástico azul, etiquetadas por assunto: saúde, segurança, educação, economia etc. Às cinco da tarde, Alckmin voltou à ala funcional do palácio. Ali se juntou ao vice-governador Márcio França e a seus familiares, a alguns políticos, entre eles o ministro Aloysio Nunes Ferreira e o senador José Serra, da cúpula do PSDB, e ao ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, seu ex-secretário de Segurança. Com o grupo, seguiu para a cerimônia de transmissão do cargo.
O monumental saguão do Palácio dos Bandeirantes estava lotado de convidados. O espaço lembra uma churrascaria rodízio. Mármores claros adornam as escadas e o piso, vigas marrons de madeira pesada cruzam o teto, formando quadrados; um lustre de ferro pende do alto, luminárias de rua em estilo antigo repousam nos cantos das paredes brancas, onde se encontra um imenso painel de cores berrantes e inspiração tropical. A tragédia arquitetônica e urbana brasileira está bem representada ali.
Márcio França, o novo inquilino do palácio, focou sua fala num único tema: fi-de-li-da-de. Para ilustrar o seu discurso, derramou sobre a plateia alguns versos de intenso romantismo: “Ah, a lealdade…/Essa velha e honrada senhora certeira/Não tem dia e não tem hora que eu te esqueça/Nem que o mundo acabe e eu desapareça/Lá vai você comigo, minha querida companheira.” Seguiu nessa toada falando de sua fidelidade à mulher, aos amigos, ao partido. Por fim, virou-se para o tucano: “Eternamente governador Geraldo Alckmin, amigo e companheiro, serei fiel e leal ao seu legado. Saiba que no dicionário cravado nas nossas almas e guardado no coração, só há uma palavra que precede a palavra lealdade. É gratidão.”
O discurso tinha endereço. Na mesma tarde, a 13 quilômetros dali, na sede da Prefeitura de São Paulo, no Centro da cidade, o prefeito João Doria transmitia o cargo para seu vice, o também tucano Bruno Covas, a fim de concorrer ao governo do estado pelo PSDB. A decisão de Doria de abandonar a prefeitura com apenas um ano e três meses de mandato causara constrangimento a Alckmin. Em 2016, ele fora o fiador do empresário convertido a político, enfrentando todos os caciques do partido – de FHC a Aloysio Nunes, de Serra a Alberto Goldman –, que defendiam o nome do vereador Andrea Matarazzo. Na época, o que estava em jogo era o controle do PSDB no estado e a correlação de forças internas na disputa pela indicação à Presidência da República – ligado a Serra, Matarazzo seria uma pedra no sapato para as pretensões de Alckmin.
Doria é a própria encarnação do que Alckmin costuma chamar com desdém de “riquinho” quando está entre assessores. O ex-prefeito vive numa casa de 2 500 metros quadrados no Jardim Europa, tem um jatinho Legacy 645, estimado em mais de 50 milhões de reais, faz uso de botox e, de mocassim e camisa polo, se esmera na imagem de mauricinho. Sua cabeça orbita em torno de metáforas automobilísticas e no seu currículo constam o patrocínio a concursos de beleza de cachorros durante a temporada de inverno em Campos do Jordão e a criação de uma revista chamada Caviar Life Style. Alckmin, por sua vez, se apresenta como um homem de hábitos frugais. Católico fervoroso, gosta de dizer que os tucanos precisam “comer mais poeira”, “amassar barro” e “calçar as sandálias da humildade”. A aliança entre o socialite coxinha e o caipira franciscano era algo, no mínimo, curioso.
Não durou muito. As relações entre o governador e o prefeito começaram a se esgarçar assim que Doria foi entronizado no cargo, em 1º de janeiro do ano passado. Após um début muito midiático, quando, vestido de gari, ele se pôs a varrer as ruas da capital, Doria logo deixou claro que tinha planos mais ambiciosos. O entusiasmo provocado por sua acachapante vitória no primeiro turno, obtida não apenas graças à imagem de “empresário descolado da política”, mas também ao sentimento antipetista, particularmente forte em São Paulo, fez com que logo surgissem especulações a respeito de sua trajetória rumo à Presidência da República. Doria passou a aparecer em pesquisas de opinião, algumas delas pouco confiáveis, mas que cumpriam o papel de colocar seu nome na roda nacional num momento em que as ruas pediam renovação política. A criatura apostou a sério que poderia desbancar o criador na indicação do PSDB à presidência.
O prefeito se atirou num frenético périplo pelo Brasil, discursando para associações empresariais e se exibindo como postulante ao Planalto. Muitos desses encontros eram estimulados por sua empresa, o Lide, cuja especialidade é produzir eventos pelos quais empresários interessados em ouvir a nata da política e da economia pagam um bom dinheiro. Em sua campanha para conquistar os tucanos, Doria ia colhendo títulos de cidadão dos municípios que visitava, o que lhe ampliava o prestígio e a visibilidade. Ganhou também apoio escancarado do ruidoso Movimento Brasil Livre, o MBL, um grupo de direita jovem nascido em São Paulo, que ele ajudou a financiar.
Seu giro pelo país estressou a relação com Alckmin, mas essa não foi a única consequência. A popularidade de Doria despencou em São Paulo. Firmou-se a percepção de que o homem que havia prometido cuidar da capital como um aplicado zelador a havia abandonado ao Deus dará. Doria foi obrigado a recuar e a redimensionar suas ambições. Em dezembro do ano passado, durante a convenção nacional do PSDB em Brasília, Alckmin foi ungido como o nome mais apropriado para concorrer ao Planalto.
Contudo, embora vitorioso na esfera nacional, Alckmin não conseguiu convencer o tucanato paulista a aderir a seu projeto de apadrinhar Márcio França. “Me parecia óbvio que o PSDB não ia abdicar de ter candidatura própria em São Paulo”, disse-me um analista do partido. “O paulista é ligado ao Palácio dos Bandeirantes. Para alguns, o Bandeirantes é até mesmo mais importante que o Planalto”, avaliou, concluindo, com certa ironia: “Para os tucanos, é possível ficar fora do governo federal, mesmo porque já ficaram e sabem como é. Fora do Bandeirantes é impensável.”
Por muito tempo, Márcio França quis levar o PSB para perto do PSDB na disputa presidencial. Como não conseguiu, Alckmin ficou sem argumentos contra uma candidatura tucana em São Paulo.
Fechada a questão, alguns tucanos se colocaram como pré-candidatos ao governo estadual, como José Aníbal, suplente de Serra, de quem é amigo, e o genro de Abílio Diniz, Luiz Felipe D’Avila, empresário que gosta de se apresentar como cientista político e contava com a simpatia de Alckmin. Doria entrou na disputa sem o apoio dos caciques do PSDB. “Me pareceu que tudo o que ele não queria era ser prefeito”, disse o vereador Mário Covas Neto, o “Zuzinha”, filho do ex-governador Mário Covas, durante uma conversa em seu gabinete, na Câmara dos Vereadores, no Centro de São Paulo. “A verdade é que Doria gosta de eventos. Como eventos duram três dias, e a prefeitura, quatro anos, ele deve ter achado que tinha perdido a graça”, disse o vereador, rindo da própria piada. Alegando problemas de relacionamento com o ex-prefeito, Zuzinha deixou o PSDB para se filiar ao Podemos.
Não foi só ele que teve esse tipo de problema. Parte dos secretários dos partidos que apoiaram Doria na campanha à prefeitura também se indispuseram com o chefe. Seu secretário do Meio Ambiente, o vereador Gilberto Natalini, do PV, foi demitido por telefone, por dificultar a concessão de licenças ambientais que feriam as leis do município. “Aquilo lá era uma farra do boi”, Natalini me disse. Após demiti-lo, Doria o substituiu por um representante do PR, o mesmo partido que o PV acusara de agir de maneira irregular durante a gestão do petista Fernando Haddad.
Na lista dos que se indispuseram com o prefeito ainda estão a ex-secretária de Direitos Humanos e Cidadania, a vereadora Patricia Bezerra, do PSDB, que pediu demissão por discordar da truculência com que Doria tentou resolver o problema da Cracolândia, no Centro de São Paulo, e o secretário do Trabalho e Empreendedorismo, Eliseu Gabriel, do PSB, que deixou o posto por divergências na concessão de carteiras de trabalho para moradores de rua. O caso mais estrepitoso, porém, foi o da vereadora Soninha Francine, do PPS, que ocupava a Secretaria de Assistência Social, e foi demitida em vídeo, no YouTube, sob a alegação de que não acompanhava o ritmo da prefeitura.
O voluntarismo de Doria, atropelando as regras de gestão pública, é o principal alvo das críticas da maioria dos secretários. “Ele se comportava como se a prefeitura fosse a empresa dele”, me disse um secretário. “Queria aprovar os projetos sem planejamento, sem avaliação. Esquecia que tinha que dar satisfação à Câmara dos Vereadores e ao Tribunal de Contas.” E acrescentou: “Tinha ainda aquela palhaçada de botar todo mundo para trabalhar sábado de manhã cedo para dar a impressão de que ele estava produzindo, quando, na verdade, a única coisa que fazia era nos mostrar notinhas de jornal defendendo a sua candidatura à presidência.” Já a oposição acusa Doria de ter inflado os dados da prefeitura, apresentando, por exemplo, números de matrículas escolares e vagas hospitalares muito superiores às que realmente entregou. “Ele queria fazer tudo rápido, e fazia malfeito”, acusou o vereador Antonio Donato, do PT. “Por isso vivia tendo problemas com o Tribunal de Contas.”
O ex-governador Alberto Goldman, de 80 anos, um nome do quadro histórico do PSDB, foi o primeiro a criticar as andanças de Doria pelo Brasil, recriminando-o por abandonar a cidade. Em um de seus blogs, postou: “O Doria está há nove meses na prefeitura, o prefeito mesmo ainda não nasceu, mas já nasceu o candidato a presidente.” E seguiu com os ataques, apontando problemas na zeladoria da cidade, como lixo acumulado, mato alto, ruas esburacadas e falhas na iluminação pública. A reação de Doria foi destemperada. Contrariando a orientação de seus assessores, ele postou em seu blog que Goldman era um “velho inútil” e que deveria ir para casa “vestir o pijama”. “Foi um desrespeito não só com o Goldman, mas com as pessoas mais velhas, de um modo geral. Foi algo muito ruim para a imagem dele. O projeto de ser candidato a presidente começou a ruir ali”, admitiu um assessor. Na tréplica, Goldman não deixou por menos: “Prefiro ser velho que velhaco.”
Durante a refrega, Goldman enviou um e-mail a Alckmin desancando o prefeito. Disse, entre outras coisas, que “era impossível para o partido aceitar uma figura como Doria, que desqualificava os políticos, era dono de uma ambição desmedida e despreparado para governar”. Alckmin contemporizou, respondendo que as críticas pareciam “um exagero”. Goldman dava voz ao pensamento dos caciques tucanos que nunca perdoaram Alckmin por ter usado sua influência para transformar Doria em prefeito da principal cidade do país.
Temendo os efeitos nocivos que o ex-afilhado pode causar em São Paulo à sua campanha presidencial, Alckmin e seus apoiadores manobraram para tirar Doria da sucessão ao governo. A derradeira tentativa consistiu na sugestão de mudança de data da prévia do partido que escolheria o nome para suceder Alckmin no Bandeirantes. Não mais 18 de março, junto com as prévias nacionais, mas 7 de abril. Como o prazo para desincompatibilização dos cargos majoritários também era 7 de abril, Doria, caso quisesse concorrer, precisaria deixar a prefeitura sem ter a certeza de que sairia vitorioso. Seria um voo muito arriscado. Mas a estratégia falhou. De olho no comando da cidade, o então vice-prefeito, Bruno Covas, aliado à parte da bancada estadual do partido, se empenhou para que os delegados barrassem a mudança. Doria, por sua vez, usou a máquina a seu favor, ameaçando retaliar com a perda de cargos na prefeitura os que se insurgissem contra ele.
Em 5 de março, o diretório do PSDB se reuniu para definir a questão. O presidente do partido no estado, Pedro Tobias, fechado com Doria, permitiu que a militância acompanhasse a disputa, a cargo dos 105 delegados com direito a voto. Por volta das sete da noite, ficou claro que haveria tumulto no auditório lotado. Aliados de Doria enviaram ônibus entupidos de cabos eleitorais para pressionar os delegados. Além dele, disputavam a indicação do partido Luiz Felipe D’Avila, José Aníbal e o deputado federal Floriano Pesaro.
Felipe D’Avila abriu o debate defendendo a mudança das datas. Não para o dia 7, como proposto inicialmente, mas para 2 de abril, alegando que isso daria mais tempo aos candidatos para debater seus projetos com os convencionais. Foi vaiado. Quando, em seguida, Aníbal insistiu no adiamento, o clima ferveu. Da plateia começaram a se ouvir gritos de “golpistas”.
Tucano histórico, Aníbal se indignou. Com o rosto em brasa, mandou um militante calar a boca. Bruno Covas tomou a palavra e defendeu a manutenção da votação no dia 18. “Há quatro anos fizemos 7 milhões de votos de diferença do Aécio em cima da Dilma aqui em São Paulo. Aécio perdeu no estado dele. Por isso, Geraldo Alckmin precisa de um candidato forte aqui para poder correr o Brasil na campanha nacional, enquanto o PSDB garante os votos dos paulistas. Quem é o candidato forte para ajudar Geraldo Alckmin?” Da plateia vieram gritos: “Doria!”
O prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando, foi mais duro ao defender as prévias no dia 18, para que o PSDB já começasse a se mexer contra Márcio França, segundo ele o principal adversário do partido em São Paulo. “Ele já está anunciando o que vai fazer com o caixa do estado. Já está prometendo fazer contratações. É como alguém para quem se empresta a casa e a pessoa trata logo de querer vendê-la.” E berrou: “A casa é emprestada!”, levando as falanges de Doria ao delírio.
Como num evento coreografado, Doria adentrou no auditório meia hora depois, acompanhado de uma batucada ruidosa, que abafava os discursos do auditório. Com o sorriso congelado, o prefeito mantinha-se indiferente à confusão. Quando Aníbal tentou falar mais uma vez, para sugerir votação secreta, a plateia reagiu com violência. “Aníbal, vai para casa trocar a fralda do Serra”, gritaram alguns. Ou: “Aníbal, filho da puta! Fora, bandido.” Até mesmo o secretário da Casa Civil de Alckmin, Samuel Moreira, foi vaiado e chamado de golpista. Com a situação fora de controle, o presidente do partido, em vez de exigir que a claque se retirasse, limitava-se a pedir mais educação aos presentes. A manutenção da data ganhou por vasta maioria.
Com o placar a seu favor, Doria subiu em uma mesa para discursar, exaltado. Defendeu a necessidade de o PSDB ter uma candidatura forte para enfrentar Márcio França e para varrer a esquerda das terras paulistas. Ao final do discurso, ressuscitou o símbolo de sua campanha à prefeitura, o “acelera”, que consiste em um “V” horizontal feito com os dedos, enquanto as caixas de som reverberavam o Tema da Vitória, usado pela Rede Globo quando Ayrton Senna vencia uma corrida de Fórmula 1. Doria saiu do auditório carregado.
Na manhã seguinte enviei uma mensagem a Alberto Goldman pedindo uma entrevista. Ele alegou que não tinha tempo, pois estava com viagem marcada para o dia seguinte. Expliquei que eu estivera no diretório e gostaria de falar sobre o que estava ocorrendo com o PSDB em São Paulo. A resposta veio a jato: “Esse Doria e suas hordas fascistas”, escreveu, e abriu imediatamente um horário em sua agenda, para aquela mesma noite. Sugeriu que, antes, eu lesse o texto que ele acabara de postar em seu blog, intitulado “João, o predador”.
Goldman mora num prédio em estilo neoclássico em Higienópolis, o mesmo bairro onde vive Fernando Henrique Cardoso. Ele me recebeu na sala de seu apartamento, ao lado da mulher. Não escondia a irritação com as manifestações de desrespeito e selvageria que haviam marcado a reunião do diretório na noite anterior. Culpou Doria pelo ambiente contaminado e partiu para o ataque. Acusou o então prefeito de tentar minar a candidatura de Alckmin, de ser um sujeito “sem escrúpulo”, “fascistoide”, “sem espírito público”. “Ele é uma farsa. Se dizia um bom gestor e antipolítico. Acabou se revelando um mau gestor e um político que utiliza as práticas mais abomináveis.” Enumerou-as: “Ele feudaliza cargos na prefeitura, faz acordos para manter o controle dos diretórios, além de se cercar de gente fraca.” Seu veredicto era de que a campanha de Doria seria muito confusa porque “ele não entende nada do estado, não sabe nada de setor elétrico, de saneamento, de nada. O discurso dele é vazio, é puro marketing”. A reportagem procurou Doria, mas o ex-prefeito não quis falar à piauí.
Doria venceu as prévias no dia 18, e a divisão do PSDB no estado se acentuou. A primeira baixa importante foi a do líder do partido na Assembleia, José Antônio Barros Munhoz, que migrou para o PSB. Alckmin, por sua vez, numa clara provocação a Doria, assinou como último ato de seu governo a nomeação de Goldman para um posto na administração do estado.
Os ressentimentos da parte do ex-prefeito não são menores. O círculo de Doria se queixa dos caciques tucanos, os quais acusa de não quererem passar o bastão para as novas lideranças e de tentar sufocá-las. Pessoas próximas ao ex-prefeito me disseram que Doria seria um candidato com muito mais capacidade de empolgar o eleitor do que Alckmin no pleito presidencial. Uma delas enfatizou que ele não estava totalmente fora do jogo. “Se o Alckmin não decolar, Doria pode ser o plano B do partido.”
Outro assessor disse que a confusão no diretório só ocorreu porque Alckmin não diz o que quer. “Se ele tivesse dito ‘Sou candidato a presidente e o meu candidato a governador é o Márcio França’, nada disso teria acontecido”, afirmou. “Alckmin podia ter ameaçado apertar o tubo e matar todo mundo sufocado. Se não quisesse essa confusão, tinha que ter colocado o pau na mesa.” Na visão de muitos, ao não manifestar uma posição clara, Alckmin, avesso a enfrentamentos abertos, acabou deixando os integrantes da legenda livres para se digladiarem.
O ex-governador não disfarça sua simpatia por França, a quem se refere como “o candidato do meu coração”. Quando fala de Doria, contudo, costuma dizer: “o candidato do meu partido”. Alckmin não vê problema em subir tanto nos palanques de França quanto nos de Doria: “Isso pode até me ajudar, pois terei uma exposição maior.”
A dupla exposição, na verdade, tende a ser nociva, a depender do andamento da disputa. “Se os candidatos à presidência passarem a se atacar demais, é lógico que isso vai respingar no Alckmin e lhe roubar votos no estado”, me disse um aliado do ex-governador. Tudo indica que a apreensão faz sentido. Numa entrevista recente à rádio Jovem Pan, Doria chamou França de “Márcio Cuba”, acusando-o de ser “esquerdista” e simpático a Lula e ao PT. Disse também que Alckmin havia cometido um equívoco ao fazer aliança com o PSB e, mais uma vez, prometeu varrer a esquerda do estado. Na véspera, na mesma rádio, França acusara Doria de ser uma pessoa “sem palavra”, pois tinha abandonado a prefeitura depois de jurar que não o faria.
Disputas pessoais não são as únicas causas do embate entre os tucanos paulistas. As eleições evidenciaram que há uma guerra geracional dentro do PSDB do estado. Com Serra escanteado, praticamente fora do jogo depois que a Lava Jato o pegou em cheio, a hegemonia do partido pode cair no colo de Doria, caso ele se eleja governador e Alckmin fracasse pela segunda vez como candidato a presidente.
O oposto também pode ocorrer, é claro. Mas não é o que deseja, por exemplo, o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, o deputado Cauê Macris, de 33 anos. Considerado um dos quadros mais aguerridos da ala jovem do PSDB, ele foi também um dos que defenderam o nome de Doria para concorrer ao governo. “O João simboliza para a gente a modernidade”, diz, entusiasmado. Macris fala, inclusive, de um “novo PSDB” capitaneado por gente como Doria, o atual prefeito Bruno Covas e um punhado de deputados, a começar por ele próprio. “A nova geração quer aproximar o PSDB do mundo moderno, quer clareza de opinião, não quer mais essa coisa de ficar em cima do muro”, explicou, defendendo à sua maneira que a legenda se assuma como representante da direita liberal.
O primeiro a pautar a necessidade de renovação dos quadros do PSDB foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que, aos 87 anos, continua sendo a maior referência do partido. FHC acabou criando constrangimento para Alckmin quando, há alguns meses, demonstrou entusiasmo com as pretensões de Luciano Huck chegar ao Planalto.
Conversei com FHC no final de abril, em seu apartamento. O ex-presidente fez questão de dizer que nunca defendeu a candidatura de Huck pelo PSDB e jamais prometeu apoiá-lo. “Meu candidato é o Geraldo”, afirmou. Por que então estimulou a candidatura do apresentador? “Porque estimulo tudo que é novo”, resumiu.
Perguntei se Doria se enquadrava na sua concepção de novo. Tergiversou. “No sentido de que nunca foi candidato, sim. E também pela forma como se comunica. Meu celular está cheio de mensagens com propaganda dele. A novidade dele é a comunicação. Só não sei ainda qual é o seu projeto para São Paulo.”
Ao mesmo tempo, FHC se mostrou preocupado com os riscos embutidos na busca pelo novo na política, mencionando a eleição de Donald Trump. Disse que seu maior temor no Brasil de hoje é com a propagação da demagogia e do populismo. “Quais vão ser os interesses mais estáveis dessa sociedade nova? Que processos econômicos e sociais vão surgir? Está tudo estilhaçado. Como vamos juntar isso aqui? Em nome de quê?”, questionou. Na avaliação de FHC, num momento como o atual, Alckmin tem a seu favor justamente a experiência que falta a vários de seus adversários. Eu lhe perguntei se a alegada falta de carisma seria um obstáculo ao candidato. FHC escapou pela tangente, preferindo citar as qualidades do presidenciável. “O Geraldo é um cara simples sem ser simplório. Tem uma preocupação fiscal aliada à visão social. Não se deixou corromper pelo poder como Lula, não é intolerante, nunca discriminou ninguém. Acho que o Brasil está precisando de tolerância.”
Geraldo José Alckmin Filho não é um candidato que arrebate multidões. Em seu contato com o público, mantém sempre um sorriso congelado e, vez ou outra, acena para pessoas, como se as reconhecesse. Embora formal, é gentil e acessível, ouve o interlocutor com atenção e não se incomoda com selfies, embora não tenha o costume de abraçar nem de dar tapinhas nas costas das pessoas. Se fosse preciso compará-lo a dois conhecidos políticos paulistas, ficaria a meia distância entre a antipatia atávica de José Serra e o estardalhaço teatral de Paulo Maluf.
Com 1,74 metro, nem gordo nem magro, a calva disfarçada por fios de cabelo na lateral e um nariz pronunciado escondido atrás dos óculos, Alckmin é um tipo discretamente desajeitado. Tem o hábito de pressionar com firmeza os lábios e, quando sentado, de recolher as pernas para trás das cadeiras, cravando a ponta dos pés no chão.
Ele foi vereador aos 20 anos, prefeito aos 24, e depois deputado estadual, federal, vice-governador, e quatro vezes governador. Nasceu em Pindamonhangaba, ou Pinda, como ele se refere à cidade no interior do estado. Caçula da família, perdeu a mãe, Miriam, aos 10 anos e foi criado pelas duas irmãs e pelo pai, Geraldo, servidor público, veterinário e ex-seminarista (pertencente à ordem franciscana), até hoje sua maior referência pessoal e intelectual. “Ele sabia grego, latim, foi professor de português. Tinha uma cultura impressionante. Eu perto dele sou desse tamanhinho”, disse, encostando a ponta do polegar no indicador.
Alckmin se formou em medicina pela Faculdade de Taubaté, especializando-se em anestesiologia. Para custear os estudos, dava aulas em cursinhos da região. Talvez por isso mantenha o cacoete de, ao falar para o público, sempre terminar as frases com uma pergunta acompanhada da resposta, como um professor: “É um problema do…? Brasil.” “O tráfico de…? Drogas.” Conheceu sua mulher, Maria Lúcia, ou Dona Lu, como é chamada, quando ainda era prefeito de Pindamonhangaba. Ela acabara de se separar do primeiro marido, e ele, percebendo que por isso a provinciana sociedade local a excluía, convidou-a para dançar durante um baile. Casaram-se em 1979 e tiveram três filhos. Dois meninos e uma menina. São avós de seis netos. Em 2015, seu filho mais novo, Thomaz, de 31 anos, piloto de carreira, morreu num acidente de helicóptero quando fazia um teste com a aeronave, junto com o instrutor.
Quando lhe perguntei como lidava com a perda, Alckmin reagiu de forma contida. Tirou do bolso um santinho com a foto do filho, as datas de nascimento e morte e a oração “O amor não desaparece jamais”, atribuída a Santo Agostinho. E me deu. “É uma dor que não passa. Você dorme e acorda pensando. É uma dor tão grande que a única coisa que pode te amparar é a fé”, disse, sem se alterar. Contou que todo domingo, na missa, oferece a comunhão ao filho. “O que mais me resta fazer?”
Membro do PSDB desde a sua fundação, em 1988, Alckmin nunca se misturou com a elite intelectual do partido, que entre amigos ele chama de “turma de Higienópolis”. Seu anti-intelectualismo vem invariavelmente temperado por uma espécie de humor matuto. Na cerimônia de posse de FHC como imortal na Academia Brasileira de Letras, por exemplo, depois de ouvir o discurso de boas-vindas feito pelo ex-chanceler tucano e também imortal Celso Lafer, o governador comentou baixinho, com sorriso nos lábios: “Nunca vi tanta citação, é muita filosofia numa noite só.”
Alckmin não frequenta restaurantes sofisticados, dispensa bons vinhos e passa ao largo dos charutos. Sua bebida preferida é o café (diz tomar mais de vinte xícaras por dia), gosta de paçoca (às vezes saca uma do bolso e oferece ao interlocutor) e das conversas com populares em balcões de padaria. Quando governador, costumava visitar a favela Paraisópolis, próxima ao Palácio dos Bandeirantes, para tomar um cafezinho e prosear com os moradores.
Na comparação com o descalabro da maioria dos estados brasileiros, São Paulo tem números a apresentar. Em seus oito anos de governo, Alckmin deixou o estado com as contas e os salários do funcionalismo em dia (concedeu até alguns aumentos, considerados insuficientes pelos sindicatos de classe); abriu dezesseis novos hospitais só na capital (embora os funcionários do Hospital das Clínicas da USP o critiquem por ter reduzido o quadro de pessoal); criou 31 escolas técnicas, além de 22 faculdades de tecnologia; construiu rodovias por meio de parcerias público-privadas; inaugurou 34 quilômetros de trilhos com recursos próprios do estado (ainda assim, insuficientes para atender a demanda pelo serviço); e equilibrou a Previdência com uma reforma que levou todos os novos funcionários do estado a se aposentarem pelos mesmos padrões do INSS, com o teto máximo de 5 mil reais (quem quiser se aposentar com um salário maior deve contribuir com os fundos de pensão).
Ainda assim, mesmo tendo deixado o governo com 36% de aprovação de bom e ótimo, sua situação em São Paulo não é exatamente confortável. Seu mais sério adversário no estado é o deputado Jair Bolsonaro. Candidato da ultradireita à presidência, defensor da ideia de que cada cidadão tenha a sua arma em casa, Bolsonaro tem atraído parte do eleitorado tradicional do PSDB em São Paulo. Nas últimas pesquisas do Datafolha, ele e Alckmin apareciam tecnicamente empatados no estado, ambos com 16% na preferência dos votos.
São principalmente as camadas com renda acima de dez salários mínimos que por ora preferem o ex-capitão ao tucano. “Essa é uma das classes mais sensíveis à percepção da violência urbana, ainda que essa elite sofra mais com a violência contra o patrimônio do que contra a pessoa”, me disse o diretor de pesquisas do Datafolha, Alessandro Janoni. “O candidato com discurso mais duro contra a violência atrai esse tipo de eleitor.” Mesmo que essa faixa de renda, em nível nacional, represente apenas 4% do eleitorado e não tenha força para alavancar uma candidatura, ela pode funcionar como formadora de opinião. Bolsonaro também supera Alckmin em âmbito nacional entre os eleitores mais pobres, com rendimento familiar até dois salários mínimos. O militar aparece nessa faixa com 9% de preferência; Alckmin tem 7%. “Nada garante que Bolsonaro continuará se sustentando com o discurso de que vai resolver tudo à bala”, disse Janoni. “Mas essa é a fotografia do momento.”
No começo de maio, Alckmin esteve no Rio de Janeiro. Um de seus compromissos de pré-campanha, organizado pelo PSDB local, era na Baixada Fluminense, uma das regiões mais violentas do estado, sob intervenção de tropas militares desde fevereiro. O tema da segurança pública logo veio à tona. É um assunto que favorece o ex-governador paulista. Sem consultar anotações, Alckmin disse que, em 2001, São Paulo tinha 13 mil assassinatos por ano, o que representava uma taxa anual de 35 homicídios para cada 100 mil habitantes (no Brasil, no mesmo ano, a média era de 27,8 assassinatos por 100 mil). “A Organização Mundial da Saúde afirma que taxas acima de dez homicídios por 100 mil caracterizam epidemia”, disse para uma plateia de políticos da cidade de Mesquita, a única do estado governada pelo PSDB. Então, numa espécie de contagem regressiva, enumerou: “A partir daí as taxas foram caindo para 19, 16, 11, 10, depois 9,2 e 8,47 até chegar aos atuais 7,65 homicídios por 100 mil habitantes, contra 28 por 100 mil na média nacional.” E enfatizou: “Em São Paulo os homicídios caíram de 13 mil, há dezessete anos, para 3,5 mil, enquanto no resto do Brasil os assassinatos só fizeram crescer.”
Ao terminar, o tucano foi bombardeado de perguntas. O que, afinal, foi feito para reduzir tão drasticamente os níveis de homicídio? “Inteligência, treinamento, prisões em flagrante, ações policiais permanentes, fechamento de ferros-velhos que compram peças de carro roubadas”, enumerou Alckmin, no habitual estilo de professor de cursinho. E seguiu no tema: “O governo federal tem o dever de encarar essa questão em todo o país unindo a ação das polícias federais e do Exército às polícias estaduais e municipais, patrulhando ostensivamente as fronteiras e os portos, estreitando relações diplomáticas com os países vizinhos para um combate conjunto à violência.” Por fim, fez uma ressalva. Não bastava atuar só nas consequências, mas também nas causas. “Educar as crianças é prioridade”, afirmou, dizendo a seguir que o senador Cristovam Buarque, do PPS, um dos partidos que compõem sua base de apoio, estava preparando seu programa de governo para a área. Era difícil discordar das obviedades didaticamente expostas pelo governador. Os números respaldavam seu discurso bem ensaiado.
A truculência da ação da polícia paulista, sobretudo a Polícia Militar, é um assunto que preocupa as entidades de defesa dos direitos humanos. Uma pesquisa feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança afirma que a polícia de São Paulo é a segunda que mais mata no Brasil, atrás apenas do Amapá – esses números, porém, o ex-governador não mencionou em sua fala na Baixada. Em 2014, a polícia foi responsável por 3 mil mortes no país, das quais 965 ocorreram em São Paulo.
Em 2012, uma operação policial no interior do estado resultou na morte de oito integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa que comanda o tráfico de drogas no estado, agora já espraiada pelo Brasil. Na época, confrontado com o morticínio patrocinado pela polícia, Alckmin limitou-se a dizer: “Quem não reagiu está vivo.”
Estudioso do PCC, o jornalista Bruno Paes Manso diz ser impossível refutar a melhora nos números da segurança em São Paulo. “Uma redução de 80% nos casos de homicídio em dezessete anos de governo tucano sem dúvida impressiona”, ele me disse. Pesquisador ligado ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Paes Manso explicou que o estado avançou muito no patrulhamento ostensivo e desenvolveu um software que identifica os locais de ocorrência de crimes, facilitando o trabalho da polícia. Junto a isso, houve uma expressiva expansão dos presídios, de trinta para 170 unidades, no mesmo período. E foi aí que se deu o problema. “Essa política de encarceramento teve um efeito colateral”, comentou. “O PCC se organizou e os presídios viraram uma espécie de hub da droga, passando a comandar de lá de dentro o crime em todo o Brasil.”
No dia seguinte ao encontro na Baixada, enquanto Alckmin se deslocava pelo Centro do Rio numa van, perguntei-lhe se tinha receio de que Jair Bolsonaro invadisse seu território eleitoral. Encolhido no banco, ele disse: “Zero, nenhum. Vamos ter uma grande votação em São Paulo.” Alckmin está convencido de que a onda Bolsonaro está murchando. “Ele bateu no teto”, especulou. “Não avança para outros segmentos da população, e quando começarem os debates certamente vai encolher.” E expressou seu ponto de vista sobre a evolução da campanha. “Já tivemos o fenômeno Luciano Huck, já tivemos o fenômeno Bolsonaro, e agora, com a desistência do Joaquim Barbosa, é mais um fenômeno que passa.” (Naquela manhã, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal havia comunicado ao PSB que, após refletir, tinha decidido não concorrer à presidência).
O efeito Bolsonaro, contudo, afetou seu discurso. Num evento em São Paulo, Alckmin defendeu que os proprietários rurais possam se armar para combater invasões de terra. Mas não chegou a ponto de chamar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de organização terrorista. Em meados de abril, o deputado estadual Carlos Bezerra Junior, do PSDB, já havia me alertado sobre os riscos de Alckmin ser forçado a endurecer o discurso para contemplar os apetites do eleitorado. Não apenas por causa de Bolsonaro, mas também para neutralizar Doria. “O Alckmin é um democrata, com sensibilidade social”, opinou. “O Doria, com esse discurso radical, ultraconservador, pode acabar forçando o partido a se afastar do centro, levando Alckmin junto.” Bezerra imputa a Doria a culpa pela declaração desastrosa de Alckmin ao tomar conhecimento de que um dos ônibus que levava a comitiva de Lula em viagem ao Sul do país fora baleado por manifestantes: “O PT colheu o que plantou.” O episódio desgastou sua imagem, ainda que ele tenha se desculpado.
O economista Pérsio Arida, o principal formulador econômico da campanha de Alckmin, considera um equívoco as críticas de que o partido teria pouca empatia pelo social. “Isso é uma mentira”, ele me disse. “O maior programa de distribuição de renda foi o Plano Real, porque acabou com a inflação, que castigava os mais pobres.” E atacou o PT, que segundo ele deu muito mais dinheiro para os empresários, por meio dos subsídios concedidos pelo BNDES, do que para o Bolsa Família. “A história de que o PT tem sensibilidade social e o PSDB não tem é uma lenda urbana”, afirmou.
Arida enumerou algumas das propostas que estarão no programa de governo de Alckmin. Reforma tributária, criando um único imposto sobre o consumo, de forma a desburocratizar a vida das empresas e dos cidadãos (“Não podemos prometer reduzir a carga tributária, dados os imensos problemas fiscais do país, mas podemos torná-la menos onerosa ao simplificá-la”); aprimoramento da infraestrutura, como estradas, portos, ferrovias e aeroportos, por meio de parcerias público-privadas, a exemplo do que ocorreu em São Paulo (“Para dar mais competitividade ao produto brasileiro, melhorar a vida das empresas, com impacto sobre emprego e renda”).
Uma das questões-chave é a reforma da Previdência. “Se não fizermos a reforma, o risco é de, no futuro, o Estado não conseguir sequer pagar os benefícios de quem está aposentado.” A reforma tem que ser feita buscando a justiça social, ele disse. E foi didático: “Hoje, a aposentadoria média no setor privado é de 1 600 reais. No setor público, a aposentadoria média, no Executivo, é de 8 mil reais; no Judiciário, de 25 mil; na Câmara, de 28 mil. Isso criou uma distorção injusta.” A questão, para ele, seria fazer o eleitor compreender a necessidade da reforma. “Política é arte do convencimento. Tem que ganhar na persuasão. O Alckmin não fará concessões populistas. Ele vai explicar que a reforma é necessária para se fazer justiça social.”
As privatizações também estão incluídas no programa de governo, mas Arida não especificou quais estatais seriam vendidas. Afirmou que o que está errado é o discurso. “Se a pergunta para a opinião pública é ‘Quer que privatize a Eletrobras?’, muita gente dirá que não. Mas pergunte ‘Onde você prefere que o governo coloque 500 milhões, na Eletrobras ou na saúde?’ Aí você vai ver uma resposta muito diferente”, disse.
Na campanha de 2006, uma das críticas do PT ao PSDB que acabou por desestabilizar a campanha do tucano foi a de que ele privatizaria a Petrobras. Perguntei a Alckmin se, agora, a empresa estaria incluída na lista de privatizáveis. “Podemos até vender algumas áreas, como a de refino, mas o coração da companhia, a exploração e produção de petróleo, de maneira alguma. Não vamos substituir um monopólio público por um privado”, afirmou.
Após ser derrotado nas prévias, Luiz Felipe D’Avila foi convidado por Alckmin para ser o coordenador da campanha. Em seu escritório, instalado num casarão nos Jardins, em São Paulo, D’Avila disse que o mote do programa do tucano será dizer aos brasileiros que a renda deles dobrará, com a melhora de todos os indicadores sociais: saúde, educação e emprego.
A questão será dar mais dinamismo ao modo como Alckmin se comunica. Não se cogita, porém, mudar o estilo do candidato para que ele encare os concorrentes mais raivosos. “O jeito simples do Alckmin ajuda. Quando a campanha se aproximar, o eleitor vai ver que ele tem os valores que a sociedade mais preza, que são estabilidade, serenidade, respeito às regras, capacidade de gestão, sensibilidade social. O que Bolsonaro entregou em seus sete mandatos? O que Marina entregou? O que Ciro entregou? O Geraldo tem um longo histórico de entrega de serviços para a sociedade.” E quanto às denúncias contra o PSDB? “O Alckmin não é Aécio. Ele mora na mesma casa há décadas, tem o mesmo sítio há décadas. É isso.”
Perguntei a Alessandro Janoni se um discurso focado na esperança poderia ser estrategicamente útil a um candidato nas próximas eleições. O diretor do Datafolha disse que sim. “Existe uma soma de medos no país: medo das reformas, do desemprego, da violência”, explicou. “O candidato que anular esse sentimento de medo e trouxer um pouco de esperança talvez tenha mais chance.” Inaceitável para o eleitor, ele disse, será o discurso “bipolar”. “Os candidatos terão que deixar claras suas posições a respeito de questões nevrálgicas como reforma da Previdência, déficit público, privatização, e das contrapartidas que serão oferecidas à sociedade ao se implementar essas reformas.”
A luta interna hoje travada no PSDB é o fator que mais tumultua a campanha de Alckmin. Em dezembro do ano passado, ele foi eleito presidente nacional do partido, não só para ganhar visibilidade nacional, mas sobretudo para apaziguar a cúpula, em pé de guerra desde que vieram à tona as denúncias de Joesley Batista contra o presidente da República, Michel Temer, e o senador Aécio Neves. Sob o comando do senador Tasso Jereissati, do Ceará, e do deputado Ricardo Tripoli, de São Paulo, líder do partido na Câmara, parte das bancadas em Brasília se rebelou. Para esse grupo, era inadmissível o PSDB, que entrara de cabeça na defesa do impeachment de Dilma, continuar apoiando um presidente acusado de ter sido subornado. Também achavam intolerável manter Aécio no comando do partido.
A briga sobre continuar ou não no governo rachou o PSDB. Num jantar oferecido por Alckmin no Palácio dos Bandeirantes, no ano passado, Jereissati e José Aníbal precisaram ser contidos por FHC quando a discussão veio à tona. Aníbal, aos berros, acusou Jereissati de ser voluntarioso ao defender publicamente a saída do partido do governo, já que eles haviam decidido, em colegiado, dar sustentação a Temer após o impeachment de Dilma. Jereissati, segundo um parlamentar presente, por pouco não partiu para o confronto físico.
Em setembro do último ano, quando veio a público a gravação da JBS em que Aécio Neves pedia propina, cinco senadores, entre eles Jereissati, foram ao apartamento do político mineiro pedir que ele renunciasse à presidência do PSDB, pelo bem do partido. Aécio os recebeu aos prantos por causa da prisão da irmã e pediu um prazo até o final do dia para entregar o cargo. Renunciou. Jereissati assumiu como interino e comandou o programa da legenda exibido em horário eleitoral, no qual o PSDB fez um mea-culpa, numa referência velada a Aécio e ao apoio do partido ao governo. Aníbal, indignado, telefonou para Aécio, dizendo que ele deveria reagir, e chamou Jereissati de traidor. Transtornado, Aécio correu ao gabinete de Jereissati e, esbaforido após subir dois lances de escada, exigiu o cargo de volta. Para aplacar a briga, o partido entregou, às pressas, a presidência a Alberto Goldman, até dezembro, quando Alckmin foi eleito.
Certa vez, José Serra, ao refletir sobre as desavenças partidárias, comentou com parlamentares próximos que o PSDB não podia ser analisado apenas do ponto de vista político e social. Era preciso levar em conta questões psicológicas, subjetivas. Em contraponto ao verticalismo do PT, que até hoje segue a vontade absoluta de Lula, no PSDB há muita disputa de egos, e o tratamento que uns dispensam aos outros não raro é bastante agressivo.
Durante discussões sobre manter ou não a aliança com o governo Temer, um tucano paulista, a fim de desqualificar as opiniões de Tasso Jereissati, o chamou de Traço Jereissati, numa alusão à inexpressiva votação que teve em seu estado. Por causa de seu jeito empertigado, Tripoli ganhou, nos bastidores tucanos, o apelido de “Sambarilove”, nome do personagem que tira onda de galã na Escolinha do Professor Raimundo. Alckmin é chamado de “o caipira”, João Doria, de “João Dólar”. Quando FHC participou do documentário sobre liberação de drogas feito por Fernando Gronstein Andrade, irmão de Luciano Huck, cuja candidatura vinha sendo estimulada pelo ex-presidente, um tucano, zombeteiro, me disse: “Fernando Henrique agora é maconheiro.” E por aí vai.
Pelas novas regras eleitorais, a campanha de 2018 só começará 45 dias antes das eleições, e não mais três meses antes. Será uma campanha curta, que exigirá muito poder de convencimento da parte dos candidatos, já que estão vetadas as superproduções de vídeos usadas em campanhas anteriores. Além disso, com a proibição de doações de empresas, o dinheiro para campanha também estará mais curto. O PSDB estima que terá 70 milhões de reais do fundo partidário para gastar com o pleito. O tempo de tevê será decisivo, e por isso as alianças são cruciais. “É uma campanha curta e de resistência”, Alckmin costuma repetir.
As divergências dentro do partido dificultam inclusive a política de alianças. O deputado Marcus Pestana, do PSDB de Minas Gerais, um dos coordenadores da campanha, não esconde sua preocupação com o meio de campo embolado do centro. Numa conversa em seu gabinete, mostrou um gráfico com os candidatos empatados nas pesquisas eleitorais. “Esse centro político democrático pode estar fora do segundo turno se tivermos muitas candidaturas disputando o mesmo espaço”, disse, apontando para os nomes de Alckmin, de Rodrigo Maia, do DEM, de Henrique Meirelles, do MDB, e de Álvaro Dias, do Podemos. E comparou a situação com a das eleições de 1989, quando Lula e Fernando Collor acabaram no segundo turno, beneficiados pelo grande número de candidatos no centro. “Ou nos unimos, ou a situação pode complicar”, disse. Felipe D’Avila foi mais incisivo: “Se não houver aglutinação, vamos perder.”
A questão é que no PSDB não há consenso sobre as coligações. No final de março, quando, numa reunião em seu gabinete, perguntei a Jereissati sobre alianças, ele disse que o ideal seria o MDB ter seu candidato, o que desvincularia o PSDB do governo Temer, cuja imagem é a pior possível. Tripoli, numa conversa em seu escritório em São Paulo, em maio, disse que, graças à atuação de seu grupo, a imagem do PSDB tinha agora se descolado do governo. Pouco depois de nosso encontro, porém, Fernando Henrique Cardoso encontrou-se com Temer para discutir uma possível aliança.
Durante seu périplo pelo Rio, perguntei a Alckmin se a aliança com o MDB ajudava ou atrapalhava. Ele foi evasivo: “Problemas grandes vão demandar convergência e diálogo”, disse. E citou Juscelino Kubitschek, que foi em busca da união nacional. Lembrou que o PSDB tinha sua origem no MDB. “Eu mesmo fui da ala Manda Brasa, do doutor Ulysses Guimarães.” Com mais de mil prefeituras, o MDB tem uma grande capilaridade pelo Brasil, o que o torna um parceiro estratégico em qualquer aliança.
No MDB, o sentimento em relação ao PSDB é de insatisfação. Um assessor de Temer me disse que seria muito difícil um acordo entre os dois partidos porque os tucanos adulam por trás e atacam pela frente. “Eles querem acordo escondido e não à luz do dia. Querem nosso apoio, mas não publicamente. Querem ser amantes e não cônjuges. Assim não aceitamos. Vamos com o Meirelles”, ele disse.
Em meados de abril, o PSDB havia conseguido fechar candidatos próprios em alguns estados importantes das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O que mais animou Alckmin foi a decisão do senador Antonio Anastasia de sair candidato por Minas Gerais, o segundo maior colégio eleitoral depois de São Paulo. Caso Alckmin tenha votação expressiva nos dois estados, suas chances de ir para o segundo turno aumentam bastante.
Enquanto ele tomava um café numa lanchonete no Centro do Rio, comentei que no PSDB havia quem achasse desnecessário se preocupar com o Nordeste, onde os candidatos de esquerda têm mais penetração, e julgasse mais acertado concentrar a atenção nas regiões simpáticas à legenda, a fim de garantir os votos dos indecisos. Pelos cálculos do partido, se a candidatura Alckmin crescer 10% em São Paulo, ele agrega 2,5% no placar nacional.
Mas o ex-governador pareceu não compactuar com esse prognóstico. “Temos tudo para crescer no Nordeste”, assegurou. “São 40 milhões de eleitores.” Dois dias antes ele estivera no Piauí e no Maranhão participando de eventos organizados por políticos locais. Buscou uma explicação oblíqua: “Se você pensar bem, a maioria dos maranhenses e piauienses que vivem fora de seus estados está em São Paulo. Portanto, há uma relação forte de São Paulo com o Nordeste.” Depois, olhou-me nos olhos e disse: “Eu não sou um candidato da elite. Eu sou o candidato do povão.”
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