ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Estrela caipira
Nostalgia rural alavanca o sucesso de Chico Abelha
Angélica Santa Cruz | Edição 190, Julho 2022
De tanto ser gauche na vida, Francisco Lacaz Ruiz acabou chegando lá. Mais velho dos seis filhos de um casal radicado na cidade paulista de São José dos Campos, ele deveria seguir os caminhos acadêmicos trilhados pelos homens da família – o avô, matemático, foi reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), e o pai, engenheiro, lecionou na mesma instituição. “Mas eu, bicho… Nunca me enquadrei em nada disso”, constata. Em 1976, aos 19 anos, resolveu cursar agronomia – e detestou. Tentou outros três cursos, desistiu de todos. Até que, aos 23 anos, anunciou: seu lugar era no mato.
À maneira de Cosme Chuvasco de Rondó – o personagem do livro O Barão nas Árvores, de Italo Calvino, que foi morar na copa de carvalhos e oliveiras –, Ruiz se embrenhou na Serra da Mantiqueira, a fenomenal cadeia de montanhas que passa pelos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Primeiro, habitou uma casa que construiu no sítio da família, nas imediações da cidade paulista de Campos do Jordão. “Nessa época, o pai dele pensou: quem sabe agora ele toma gosto e vira um construtor”, diverte-se a mãe, Maria Helena da Silva Lacaz Ruiz, hoje com 86 anos e viúva. Mas seu primogênito passou a fazer licores, a vender leite e a trabalhar com apicultura. Virou o Chico Abelha – apelido que transformou em nome artístico.
Depois de uns dez anos nessa rotina, enfiou-se ainda mais no mato. Comprou um pequeno sítio na zona rural de Monteiro Lobato, também no naco paulista da Mantiqueira. Foi uma fase feliz. Construiu uma cabana de taipa e aprendeu a meditar. Tomava banho de cachoeira e usava buracos na mata como banheiro. Dançava de mãos dadas com amigos em meio às araucárias, dirigia um Fusca branco caindo aos pedaços e, fascinado pelo estilo de vida da roça, contava suas histórias no programa Estrelas da Mantiqueira, transmitido por uma rádio pirata. Hospedou um conhecido, usuário de crack, acreditando que a rotina puxada do campo poderia afastá-lo do vício. “Ele acabou correndo atrás de mim com um facão, exigindo dinheiro para pagar dívidas com traficantes e ameaçando me matar. Fugi pela mata e nunca mais voltei. Ele acabou indo embora e depois vendi a cabana. Uma lição de desapego”, lembra.
Em 2005, Chico Abelha foi chamado por um conhecido para ajudar na criação de uma rede social nos moldes do Facebook que Mark Zuckerberg lançara no ano anterior. Para divulgar o projeto (que não deu certo), inscreveu-se na sexta edição do Big Brother Brasil . Não foi selecionado, mas o vídeo de apresentação que fez para o reality show inaugurou sua atividade no YouTube. Encantado com o estilo de vida caipira, ele continuou produzindo e postando vídeos, enquanto trabalhava como pesquisador do Museu do Folclore de São José dos Campos. “Eu só queria deixar registros das pessoas do meio rural, que têm um conhecimento que anda esquecido, porque perdemos a conexão com a natureza”, diz.
O canal cresceu. Com 1,44 milhão de seguidores, Chico Abelha é hoje a celebridade digital de um Brasil inebriado de nostalgia rural. Não quer marketing (“Jamais aceitei dinheiro pra fazer propaganda”) e não tem estúdio (“Gravo com uma câmera Canon T5i e um microfone direcional baratinho”). Nos quase 3 mil vídeos que já publicou, ele apenas se senta em uma cozinha ou para ao lado de um roçado para puxar papo com os entrevistados.
O youtuber da Mantiqueira descobriu “o homem que nunca pagou uma conta de luz na vida” – um morador de Cachoeira de Minas, que improvisou a própria usina de energia com um sistema movido a água. O vídeo tem quase 9 milhões de visualizações. Exibiu um casal que, em um engenho no município paulista de São Bento do Sapucaí, preserva hábitos antigos como socar fubá em um moinho de pedra. Cravou 5 milhões de views. Mostrou uma família reunida na roça de Gonçalves, no Sul de Minas, para transformar um porco em carne de lata, chouriço, linguiça, torresmo e banha – gravação vista 2 milhões de vezes.
Em seu canal há brasileiros que ensinam como construir uma casa de pau a pique, como cozinhar maniçoba com frango ou como arar a terra com juntas de boi. Uma senhora chamada Cesárea conta que teve seus dezessete filhos de parto natural, em uma cabana. Um homem chamado Ditão Virgílio garante ter visto o Saci-Pererê.
Nos últimos tempos, Chico Abelha anda interessado em registrar um fenômeno potencializado pela pandemia: o dos “novos rurais”, a turma que abandona as cidades para morar no campo. A pororoca entre os estilos de vida caipira e urbano rende choques culturais. Na Serra da Mantiqueira, os neorrurais reclamam do cocô de cavalo nas estradas de terra ou dos fogos que o pessoal da roça gosta de estourar à noite. Já os nativos ficam ressentidos porque os recém-chegados constroem em áreas proibidas e, cheios de grana, conseguem se safar pagando as multas – enquanto eles são obrigados a cumprir a lei, interrompendo costumes antigos, como a caça e o corte de árvores.
O youtuber da Mantiqueira prefere se concentrar no que dá certo nesse encontro. “Os urbanos aprendem o modo de vida do caipira, de harmonia com a natureza. Em troca, disseminam a importância de não botar herbicida na comida ou de não tocar fogo na terra.” Para mostrar a nova tendência, Chico Abelha percorre a região filmando executivos aposentados em seus sítios ou jovens casais, ainda sem calos nas mãos, em suas fazendas experimentais.
Quando começou, Chico Abelha não sabia que era possível monetizar os vídeos sem publicidade, apenas com o que o YouTube paga para quem tem audiência expressiva. “Pela primeira vez tenho tranquilidade financeira”, surpreende-se. Mas a vida continua a mesma. Nos últimos sete anos, ele morou em três cidades da Serra da Mantiqueira. No município onde vive agora, São Francisco Xavier, em São Paulo, já passou por sete casas. Não pensa em comprar uma, para não ficar preso a um lugar. “Nas mudanças, a gente leva só roupas e panelas”, diz Adriana Leonardo da Costa de Faria, de 62 anos, mulher de Chico há oito – conhecida pela audiência do canal como Adriana Abelha.
Aos 65 anos, o youtuber anda convencido de que, agora, precisa ficar vigilante, para que a popularidade não o engula. “Sucesso é um conceito sem sentido. Você vai querendo mais e mais – e para quê? Para chegar aonde?”