ILUSTRAÇÃO: WILHELM BUSCH_DEUTSCHES MUSEUM FÜR KARIKATUR UND ZEICHENKUNST_HANOOVER
“Eu só sei desenhar”
Morreu Ronald Searle. O tesouro de ilustrações e cartuns de traço inconfundível permanece
Dorrit Harazim | Edição 65, Fevereiro 2012
O ano de 2012 nasceu com um traço a menos. A perda, dois dias antes da virada do calendário, não foi pequena. O dono do traço que se extinguiu chamava-se Ronald Searle. Morreu dormindo, aos 91 anos de idade. Não fosse assim, talvez tivesse morrido de lápis na mão, rabiscando a própria despedida. Nasceu e viveu como um britânico de carteirinha – tanto assim que foi viver as últimas décadas da vida no sul da França –, mas sua linguagem era universal. Como ilustrador, cartunista, caricaturista ou desenhista, seu traço redefiniu o humor europeu do pós-guerra.
“As ilustrações de Searle não faziam o mundo parecer engraçado, era ele que o via assim”, sustenta Russell Davies, autor de uma robusta biografia do criador da escola fictícia St. Trinian’s – a série ilustrada que lhe deu projeção mundial. “Apesar de sua mordida e latido serem igualmente ferozes, ele sempre usou ambos com um ligeiro piscar de olhos”, acrescenta o biógrafo.
Filho da classe operária inglesa dos anos 20, Searle foi catapultado, ainda rapazote, para os horrores da Segunda Guerra Mundial no front do Pacífico. Ali sobreviveu a três anos e meio como prisioneiro de guerra e mão de obra escrava das tropas japonesas.
“Entrei na guerra como um estudante de arte de 19 anos que só fazia retratos do papai, da mamãe e do cachorro. De uma hora para outra, eu estava desenhando gente que morria. Basicamente, todos os meus amigos e pessoas que aprendi a amar viraram fertilizante para as plantações de bambu daquelas paragens”, resumiu Searle ao completar 90 anos, quando deu sua primeira entrevista para a televisão em mais de três décadas. Na ocasião, recebeu a BBC em seu ateliê provençal e explicou aos ingleses – “que pensam que eu já morri” – o quanto ele desenhava melhor com o borbulhar de uma taça de champanhe sempre ao alcance da mão.
Searle se alistara em 1939 num regimento dos Royal Engineers que foi deslocado para Cingapura, à época ainda parte do Império Britânico. Imaginou que serviria à pátria como projetista de instalações militares. Só que o Japão trucidou os ingleses em Cingapura e ocupou a ilha. Searle foi parar primeiro na prisão de Changi, uma espécie de Abu Ghraib asiática daquela guerra. Numa segunda etapa, foi transportado para um campo de prisioneiros próximo, onde 50 mil soldados aliados rendidos serviam de mão de obra forçada ao inimigo.
A expansão do domínio japonês na região exigia grandes obras de infraestrutura. Entre elas, a sisífica construção da ponte sobre o rio Kwai, por onde passaria a via férrea destinada à invasão da Birmânia (hoje Mianmar). O episódio foi imortalizado em tons épicos pelo diretor de cinema David Lean, com William Holden e Alec Guinness em papéis memoráveis e a canção-tema assoviada até hoje. Apesar das sete estatuetas abocanhadas pelo filme na premiação do Oscar de 1958, Ronald Searle jamais o digeriu. Classificou-o de relato adocicado e de fornecer um retrato falso da camaradagem diante da adversidade.
Durante seus anos de trabalho forçado, Searle, como os demais, apanhava regularmente. Teve dengue, malária e beribéri mais de vinte vezes. O australiano Russell Braddon, um de seus companheiros de cativeiro, faz a seguinte descrição daquele que se tornaria um dos grandes cartunistas do século passado: “Tentem imaginar alguém pesando pouco mais de 40 quilos, muito próximo da hora de morrer, num ambiente em que nenhum aspecto da condição humana poderia ser chamado de humano, calmamente deitado a desenhar com um toco de lápis num fragmento de papel usado. Isso lhes dará uma ideia da singularidade do temperamento desse homem em relação aos demais.”
Searle escondia seus esboços debaixo dos colchões dos prisioneiros moribundos de cólera. “Eu precisava desesperadamente retratar o que via. Imaginei que mesmo com minha morte alguém acabaria achando os desenhos e descobrindo o que aconteceu aqui.” Cerca de 300 desses 400 esboços sobreviveram à guerra e foram reunidos em livro. “Você não sai de uma vivência dessas sem que ela oriente o resto da sua vida. Me serviu de guia”, constataria ao final.
Três anos depois de repatriado, Ronald Searle irrompeu com estrondo no universo da sátira ilustrada. Começou publicando cartuns sobre o comportamento anárquico de meninas de um colégio imaginário, seguidos de uma série de livros ilustrados sobre a mesma escola delirante – St. Trinian’s. O público leitor não se cansava de exigir mais e mais episódios; quando a série chegou a ser adaptada para o cinema, Searle achou que chegara o momento de se livrar do sucesso. Para não se tornar prisioneiro de sua criação, deu ao último volume o título de The Terror of St. Trinian’s, no qual a escola é destruída por nada menos que uma bomba atômica.
Libertado das meninas de pernas palito, longas meias pretas e intenções perversas, Ronald Searle voltou seu traço para a sátira da sociedade inglesa. Com Merry England, etc., que mescla situações deliciosas, personagens e legendas minimalistas insuperáveis, o refinamento do seu humor o tornou disputado dos dois lados do Atlântico. Passou a fazer capas para a New Yorker, Punch e Granta, estreou na publicidade, criou pôsteres, fez animação para o cinema e ilustrou mais de 100 livros.
Mas foi ideia da revista americana Life contratá-lo para retratar o mundo real, sem recorrer ao humor, por meio de reportagens ilustradas de eventos noticiosos. Registrou, dessa forma, o histórico julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, em 1961. Também como repórter-ilustrador cobriu os funerais do rei George VI (pai da atual rainha Elizabeth II), a construção do Muro de Berlim, as eleições primárias americanas que deram a vitória a John F. Kennedy. “Qualquer um consegue desenhar um cartum capaz de fazer as pessoas rirem. Reportagem ilustrada é muito mais duro – você precisa saber o que há por trás do que está acontecendo”, comparou mais tarde.
Quando foi morar na França com a segunda mulher, Monica, já tinha experimentado tantos estilos que, segundo o cartunista americano Edward Sorel, conseguira dominar por completo todas as formas de artes gráficas. Obras suas integram a coleção permanente do British Museum, do Victoria & Albert Museum e do Imperial War Museum.
Apesar de ter ido morar no vilarejo medieval de Tourtour, na Provence, há quase quarenta anos, nunca quis se tornar francês. “Você não troca de nacionalidade como quem troca de paletó. Haja o que houver, sempre serei britânico.”
Seu derradeiro livro, publicado quatro meses atrás e intitulado Les Très Riches Heures de Mrs. Mole, é uma coletânea de desenhos criados para aliviar as sessões de quimioterapia e radioterapia com que Monica combateu um câncer de mama. Foram 47 sessões ao longo de cinco anos. Para cada sessão criou uma nova faceta da toupeira radiosa e adorável inventada pelo artista para representar a companheira com quem viveu cinquenta anos. Monica morreu em julho passado. “Eu não podia fazer mais nada por ela”, concluiu, “pois só sei desenhar.” Só?
Leia Mais