Paulo, interpretado por Jayme Matarazzo, rejeita sua origem e sonha ser escritor ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE
Extravagância desconexa
Depois de quase vintes anos sem filmar, Arnaldo Jabor põe tudo que lhe passou pela cabeça em A Suprema Felicidade
Eduardo Escorel | Edição 49, Outubro 2010
Autor do roteiro e diretor de A Suprema Felicidade, Arnaldo Jabor dá um tom antiquado ao filme logo no começo, com uma epígrafe. O recurso andou na moda no século XVIII, mas desde então caiu em relativo desuso. No cinema, é considerado uma muleta pretensiosa – quem o utiliza parece pretender exibir erudição e indicar pistas para o entendimento do que virá. Na verdade, epígrafes tendem a tornar triviais até mesmo versos de Drummond, como os extraídos do poema “Memória”, publicado em Claro Enigma e incluídos em A Suprema Felicidade. Citando o já citado à exaustão, dificilmente se escapa do lugar-comum.
A partir do prólogo, outros chavões se sucedem, alguns francamente vulgares. No primeiro plano do filme, a câmera passa por corpos nus de um ruidoso casal em pleno ato sexual – são os pais de Paulo, observador aos 8 anos do que se passa em casa e na rua, durante as comemorações pelo fim da Segunda Guerra Mundial.
A referência precisa, situando a cena inicial em 1945, gera expectativas que o filme não cumprirá, por transcorrer em um vácuo sem referências a qualquer outro fato histórico ocorrido até 1956, ano em que a narrativa chega ao fim. Deixando de articular os personagens com o contexto da época, Jabor cria seres a-históricos, que, depois de terem queimado um boneco representando Hitler, passam a viver livres de qualquer influência dos acontecimentos sociais e políticos. Os personagens de A Suprema Felicidade habitam uma “terra abençoada” chamada Brasil, refúgio de estereótipos, onde sambas e requebros se somam à mitologia musical e cinematográfica norte-americana para ocupar o imaginário.
A maneira de filmar a nudez – na cena de abertura e quando Paulo, aos 19 anos, deixa de ser virgem –, iluminando os corpos por igual, remete ao tempo em que encenar relações sexuais era considerado transgressivo, sujeitando o infrator a ser castigado. Enfatizar essas situações atualmente, como acontece em A Suprema Felicidade, dando a elas o mesmo tratamento visual do passado, soa anacrônico.
Prejudicado por dois atores sofríveis quando tem 9 e 13 anos, Paulo não chega a ser o personagem principal da história. Interpretado, aos 19, por Jayme Matarazzo, ganha maior densidade. Ainda assim, não é ele o eixo da narrativa. Mais testemunha do que personagem, Paulo não tem força para interligar as três épocas da ação, levando Jabor a apelar para um arsenal de figuras de linguagem desgastadas, na tentativa de tornar compreensível a ausência de cronologia e compensar o roteiro em forma de mosaico: legendas indicando o ano da ação, passagens de imagem colorida para preto e branco, fusões – todas usadas em excesso.
Personagem que teria dimensão para ser o protagonista é Noel, o avô, graças à força da presença cênica de Marco Nanini, acentuada pelo desnível em relação à caricata Elke Maravilha no papel da avó. Mesmo ao contracenar com Mariana Lima e Dan Stulbach, bons atores que fazem a mãe e o pai de Paulo, a atuação excepcional de Marco Nanini, contraditoriamente, cria um desequilíbrio. Quando está em cena, a curva de interesse do filme atinge seu ponto máximo. Nas sequências em que está ausente, o interesse despenca – oscilação resultante dessa presença intermitente do avô Noel somada à fragilidade do personagem de Paulo.
Dividido entre nostalgia e rejeição do passado, A Suprema Felicidade trata a mãe e o pai de Paulo como pessoas frustradas – ela se torna histérica; ele, um fracassado –, dedicando tratamento afetuoso apenas ao avô. É uma visão esquemática do universo familiar, que não procura entender os personagens dos pais e, ao permanecer na superfície de ambos, reduz o conflito de Paulo ao desejo de ser diferente deles. Identificando-se com a figura idealizada do avô trombonista, personagem simpático e comovente, Paulo rejeita sua origem e sonha ser escritor. Parece fadado a viver para sempre no olho da tormenta, com uma ferida aberta e o desejo de reencontrar o avô em alguma estrela distante.
Ao voltar a fazer um filme, depois de quase vinte anos afastado das câmeras, a tentativa de acerto de contas com o passado de Jabor sofre com a extensão da galeria de personagens secundários e o acúmulo de situações humorísticas – em geral caricaturais e repetitivas – que não se integram, formando um todo desconexo. A impressão é que, depois de tanto tempo, e sem saber ao certo se fará outros filmes, o autor abriu as comportas e incluiu no roteiro tudo que lhe passou pela cabeça. A sobrecarga acaba tornando a narrativa dispersa.
Com o mata-mosquito, o comprador de coisas usadas e o pipoqueiro, Jabor esboçou elos que poderiam manter o roteiro de pé. Embora estejam presentes em diferentes épocas da narrativa, nenhum deles chega a cumprir essa função. No caso do pipoqueiro, mesmo interpretado pelo excelente João Miguel, as falas de duplo sentido, por serem redundantes, acabam perdendo a graça, impedindo que o personagem seja o mestre de cerimônia de que o filme tanto precisa.
Oscilando entre realismo e fantasia, a fotografia e a direção de arte também carecem de princípio unificador, ou de justificativa para sua heterogeneidade. As trucagens digitais e a recriação de época nem sempre conseguem evitar certo artificialismo. E, com as cenas externas em locações, o filme não consegue se libertar das amarras realistas para se situar à vontade no plano fantasioso da memória.
No início da carreira, Jabor dizia ter mais interesse por teatro e poesia do que cinema. Entre 1965 e 1990, período em que realizou nove longas-metragens, alguns com acentuadas características teatrais, sempre manteve atitude ambígua, parecendo mais um diletante do que um cineasta profissional. Por ter abandonado o duro ofício de fazer filmes, não surpreende, portanto, nem a singeleza da composição dos planos que registram a encenação sem resultarem de um projeto formal específico, nem a dificuldade para narrar a fragmentada história que ele mesmo escreveu.
Ligado à primeira geração do Cinema Novo, Jabor foi dos poucos diretores que se livrou cedo dessa influência, realizando filmes pessoais, dois deles adaptações de Nelson Rodrigues. Foi um feito incomum ter conseguido abandonar a profissão e ser bem-sucedido como jornalista. Depois de tanto tempo afastado das angústias do cinema, o que o terá levado a fazer essa extravagância de 12,5 milhões de reais?
Em 1962, Jabor dizia querer filmar “O cão sem plumas”. Décadas depois, nada mais distante do poema de João Cabral de Melo Neto do que a exuberância de A Suprema Felicidade. Distância que pode ser a chave para entender a trajetória do realizador. Ela é marcada, como a de Paulo, seu personagem, pela vontade de “ser diferente” e “descobrir quem ele é”. Vendo A Suprema Felicidade, alguém ainda poderá ter dúvida em relação à verdadeira vocação de Arnaldo Jabor?
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