Em Complô contra a América, Philip Roth imaginou a chegada de um antissemita à Casa Branca. A ascensão de Trump parece menos verossímil ILUSTRAÇÃO: LALO ALCARAZ_2016_LALOALCARAZ.COM_UNIVERSAL UCLICK
A faísca do mal
A ficção realista de Philip Roth e a pós-modernidade de Donald Trump
Alejandro Chacoff | Edição 115, Abril 2016
Escrever sobre o fascismo é obsceno, mas necessário. Assim se poderia resumir o consenso literário do pós-guerra. “Escrever poesia depois de Auschwitz é um ato de barbárie”, disse certa vez o filósofo alemão Theodor Adorno. W. G. Sebald – um escritor mais tímido e menos apegado a frases categóricas – talvez respondesse: “Uma pessoa séria não consegue pensar em qualquer outra coisa que não sejam Hitler e Stálin.” Ficções sobre o fascismo e suas atrocidades se alimentam dessa tensão constante entre a obrigação e a culpa de narrar, com os mais variados tipos de resultado. De um lado do espectro, temos as descrições minuciosas de Primo Levi sobre o cotidiano nos campos de concentração; do outro, as histórias oblíquas do próprio Sebald, em que um longo monólogo sobre o ciclo de vida do bicho da seda pode sutilmente aludir aos métodos industriais nazistas.
Apesar de sua origem, ou talvez justamente por causa dela, Philip Roth – um judeu americano nascido em 1933, ano em que Hitler tomou o poder na Alemanha – demorou a escrever sobre o tema. Foi só em 2004, já aos 71 anos e com mais de vinte livros lançados, que ele publicou Complô contra a América, uma distopia ambientada nos Estados Unidos das décadas de 30 e 40. No romance, Roth imagina o que teria ocorrido caso o aviador e simpatizante do nazismo Charles Lindbergh – um herói nacional, autor do primeiro voo solitário e sem escalas sobre o Atlântico – tivesse se lançado candidato à Presidência americana pelo Partido Republicano e vencido as eleições de 1940.
Um dos paradoxos das distopias é que elas precisam ser realistas para serem convincentes – e Roth se esforça muito para criar uma narrativa plausível. Para fazer isso ele acaba abrindo mão de alguns dos seus traços mais marcantes. O exagero satírico e os monólogos libidinosos, presentes em romances centrais da sua carreira como O Complexo de Portnoy e o O Teatro de Sabbath, mal aparecem no livro. O tom da narrativa é sóbrio, e o retrato do ambiente político da época, meticuloso. Personagens históricos, como o prefeito de Nova York Fiorello La Guardia, o jornalista de esquerda Walter Winchell e o político democrata Burton K. Wheeler, são representados fielmente; o próprio Roth e sua família são protagonistas da história, e o ar que envolve o passado descrito por ele tem o odor inconfundível de memórias da infância.
Charles Lindbergh também é retratado tal como era em vida. Um exemplo da elite protestante anglo-saxã: loiro, magrinho, de olhos azuis. Aos 25 anos, quando ainda é um piloto empregado pelo serviço de correios americano, faz o seu primeiro voo direto transatlântico, completando o trajeto entre Nova York e Paris em tempo recorde (33 horas) num pequenino avião monomotor. O feito o torna uma celebridade. Cinco anos mais tarde, em 1932, o seu filho de um ano e meio é sequestrado e morto. A tragédia provoca comoção nacional e engrandece ainda mais a figura de Lindbergh. Na narrativa ficcional de Philip Roth, seu irmão mais velho, Sandy, um desenhista precoce, faz um retrato da mãe grávida (com Roth no ventre), enquanto ela aponta para o céu na direção do avião de “Lindy”, que sobrevoa a cidade. O autor diz que os desenhos do irmão às vezes ganhavam esses “ares de arte soviética”. O comentário é feito em tom jocoso, leve; mas o desenho parece servir a um propósito narrativo maior. Ele ilustra a adoração vagamente irracional que cerca a figura de Lindbergh (adoração que a essa altura ainda é compartilhada por parte da comunidade judaica).
À medida que a Segunda Guerra Mundial se aproxima, Lindbergh passa a liderar um movimento isolacionista no país – e de fato, na década de 30, o aviador se tornou uma das figuras mais notáveis de uma parte imensa da população que não apoiava a entrada dos Estados Unidos na guerra. Faz discursos públicos contra o envolvimento no conflito e ganha assim a antipatia do presidente Franklin D. Roosevelt. Alguns dos discursos de Lindbergh reproduzem o antissemitismo em vigor na Alemanha. “O maior perigo para o nosso país reside nas propriedades e influência que eles [os judeus] detêm em nossa indústria cinematográfica, nossa imprensa, nosso rádio e nosso governo”, Lindbergh, o personagem do livro, afirma a certa altura. É um exemplo brando de suas declarações reais. Roth anexa a seu romance uma transcrição de um discurso verdadeiro feito por Lindbergh em Des Moines, em 1941, em um comício do America First, um grupo isolacionista. No discurso, Lindbergh faz diversas referências ao desafio de não deixar “sangue inferior” contaminar a sociedade americana.
Sabe-se que, em vida, Lindbergh foi estimulado por aliados a concorrer à Presidência, uma sugestão que ele nunca acolheu. No livro, ele segue esse caminho. É a partir desse cisma histórico que o autor de Complô contra a América constrói a sua especulação fictícia. Lindbergh vence a eleição presidencial e o resultado é catastrófico, com o avanço do fascismo e do antissemitismo na sociedade e nas políticas do novo governo. “Charles Lindbergh foi o primeiro americano famoso vivo que aprendi a odiar – assim como Roosevelt foi o primeiro americano famoso vivo que aprendi a amar”, escreve Roth. Se é o personagem ou o autor do livro falando, não se pode saber – e tampouco parece importar.
A ascensão política do magnata imobiliário Donald Trump – com seu discurso racista e xenófobo, e seu incentivo a manifestações de intolerância, mesmo físicas, por parte de seus eleitores – tem gerado um renovado interesse pelo livro de Roth. No final do ano passado, o jornal The New York Times e a revista The New Yorker publicaram artigos sobre Trump que usavam, respectivamente, o resumo da trama e o título de Complô contra a América como gancho. Outras publicações fizeram paralelos semelhantes, sem maiores elaborações comparativas.
Mas talvez o mais interessante não sejam as semelhanças, e sim os contrastes entre a trajetória fictícia de Lindbergh e a trajetória real de Trump. A campanha de Lindbergh à Presidência, no livro de Roth, baseia-se em uma mensagem muito simples: “Vote Lindbergh ou vote pela guerra.” Um orador conciso e lacônico, ele sempre repete o mesmo recado, de formas diferentes. E é uma mensagem legítima para a época, superficialmente pacificadora e com lastro em uma ampla tradição isolacionista americana, presente desde a emergência dos Estados Unidos como potência mundial, no século XIX. Lindbergh constrói a sua base de poder com destreza. Busca diluir seus antigos comentários antissemitas e conquistar parte do eleitorado moderado. Com esse fim, traz para o seu círculo íntimo de conselheiros Lionel Bengelsdorf, um rabino conservador e influente que passa um verniz de tolerância no seu discurso nacionalista, ou, nas palavras de um tio de Roth, “Kosheriza o Lindbergh”. O rabino Bengelsdorf argumenta que o objetivo de Lindbergh é apenas manter a paz e estimular a assimilação da comunidade judaica na sociedade americana. No esforço de tornar a sua distopia crível, Roth cria um Lindbergh mais brando que o Lindbergh real. Há apenas duas ou três falas de teor antissemita no decorrer da narrativa, todas feitas antes que Lindbergh se eleja – os discursos mais explícitos desaparecem após ele assumir o governo (o que não torna as medidas de seu fictício mandato menos fascistas). Registros históricos provam que em vida o aviador foi muito mais prolixo em seus comentários antissemitas.
A trajetória de Trump é, em certo sentido, muito mais implausível. Ele é mais vulgar, mais grotesco e mais explícito do que Lindbergh. Está longe de ser um herói nacional. Se existem admiradores que o enxergam como um empresário de sucesso, uma outra parte imensa da população americana – que inclui os tradicionais grupos midiáticos da Costa Leste – o vê simplesmente como uma piada de mau gosto. Lindbergh foi um pioneiro da aviação e fez parte da Força Aérea (algo que sempre ajuda republicanos com aspirações presidenciais); Trump herdou uma fortuna de seu pai e sua mitomania torna difícil saber até que ponto ele a expandiu. Não bastasse, ele faz pouco sentido geográfico como candidato: Nova York, sua cidade natal, é vista pelos republicanos como o quartel-general da esquerda e, no patois americano, uma metrópole de “liberais” permissivos. Não se trata do clichê da realidade que supera a ficção, mas sim do inverso: em sua essência caricatural e implausível, Trump não tem a complexidade ou a densidade psicológica de um bom personagem literário.
É certo que o magnata elegeu como pilares de sua campanha algumas mensagens centrais, repetidas de maneira disciplinada: ele é contra a imigração mexicana; a favor de trazer empregos de volta da China; e sempre a favor de “vencer, vencer, vencer”, um mantra tão eficaz quanto vago. Mas é também perceptível que a sua campanha conta com rompantes de improviso. A sua ascensão política desafia certas premissas de campanhas eleitorais. As falas que compreensivelmente angariam mais atenção midiática são as explicitamente racistas: os comentários maldosos sobre imigrantes mexicanos “estupradores” e a necessidade de “pegar as famílias” dos terroristas; e não há dúvida de que essas falas reverberam um ressentimento de grande parte do eleitorado. Mas vez ou outra Trump também rompe dogmas do partido republicano. Os exemplos mais pungentes são os seus comentários de que o ex-presidente George W. Bush mentiu para justificar a invasão do Iraque (algo que até então só democratas e políticos mais à esquerda se dispunham a dizer), e os seus elogios à Planned Parenthood, uma ONG que presta assistência na área de direitos reprodutivos, e que é vista por republicanos antiaborto como a encarnação do Mal.
A premissa de que a história é cíclica incita a busca por conceitos e rótulos quase atemporais. Donald Trump é fascista? Se tomarmos o conteúdo racista de seu discurso, seu recurso à teatralidade, seu desprezo pelas minorias e seu nacionalismo tacanho, a resposta é sim. Ao mesmo tempo, a fraudulência e as contradições de Trump mostram que ele não possui coerência ideológica. PolitiFact.com, um site americano de checagem de dados, diz que 76% de suas afirmações na campanha em 2015 tinham algum grau de falsidade. Apesar de ser visto por seus apoiadores como um corajoso destilador de verdades, e um insurgente contra a ditadura do “politicamente correto”, Trump mente, troca de posição política com frequência, inventa histórias e fabrica mitos.
Uma reportagem do New York Times publicada em fevereiro deste ano mostra que, apesar de seu discurso contra a imigração, Trump deu vários empregos para estrangeiros em seu clube privado Mar-a-Lago, na Flórida, quando lhe foi conveniente, e muitas vezes preferiu pedir vistos temporários a contratar mão de obra americana. Em um perfil publicado pela New Yorker em 1997, o repórter Mark Singer mostrou que o empresário costuma inflar o valor de sua fortuna e às vezes diz ser dono de propriedades nas quais ele mal detém participação. “Um pouco de hipérbole não machuca ninguém”, Trump diz em seu livro, A Arte da Negociação, publicado em 1987. Na obra – parte autobiografia, parte livro de conselhos empresariais –, ele defende um oximoro: a “hipérbole verdadeira”, que segundo ele é uma “forma inocente de exagero, que é boa para a promoção”.
Líderes republicanos como Mitt Romney – candidato presidencial na última eleição – têm vindo a público para denunciar Trump como uma fraude. Mas os ataques não surtem efeitos, talvez porque a sua fraudulência não seja novidade. Aquilo que o torna quase irresistível para uma parte do eleitorado tem pouco ou nada a ver com virtudes aristocráticas como caráter, heroísmo e puritanismo moral – valores caros à geração conservadora de Lindbergh. Uma das forças de Trump está na sua quase onipresença midiática, na sua capacidade de se manter sempre no centro das atenções, de zombar dos adversários, de transformar os ataques que recebe em mais uma oportunidade de promoção. Tentar combatê-lo é como tentar frear um meme. Se Lindbergh é, nas palavras de Roth, o epítome da normalidade (“um homem decente, com um rosto honesto e uma voz anódina”), Trump é um expoente da anti-normalidade; um populista pós-moderno. Sua feição rósea, as expressões franzidas e o cabelo dourado lhe dão o aspecto de um artefato de arte conceitual. Não é difícil imaginá-lo em um tanque de formol como o tubarão de Damien Hirst ou transformado em estátua de cera ao lado das colagens de Andy Warhol. Das principais características pós-modernas – a celebração da fraude; o uso da sátira como forma de desarmar qualquer debate sério ou solene –, só lhe falta a autoironia.
Philip Roth escreve romances em que a história, um turbilhão impessoal e aleatório, desmancha e desarranja a vida de pessoas medianas. Não raro seus livros terminam com alguém enlouquecendo. Em Pastoral Americana, uma alcoólatra tenta furar o pai do protagonista com um garfo durante um jantar. Em A Marca Humana, um veterano do Vietnã com problemas psiquiátricos força um acidente de carro que mata a sua ex-mulher e o protagonista. Em Complô contra a América, Evelyn, uma tia arrivista de Roth que se casa com o rabino Bengelsdorf, invade a casa da irmã quando a situação política se deteriora – e se esconde no sótão, convencida de que alguém virá matá-la. Todas as tragédias individuais têm como pano de fundo algum acontecimento coletivo, seja a Guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis ou um regime fascista hipotético.
Há algo um pouco sádico nisso que, à primeira vista, parece uma forma de fatalismo: a História marchando indiferente ao sofrimento de cada indivíduo. Mas o método artístico de Roth ressalta um ponto fundamental: o de que mesmo a vontade individual de um tirano é condicionada por movimentos mais abstratos, erráticos e imprevisíveis.
Todas as medidas oficiais que Lindbergh toma em Complô contra a América são embaladas em eufemismos. Não há campos de concentração, mas sim um “Agência para a Absorção Americana”, encarregado de “dar a oportunidade” para que judeus urbanos possam viver no Kentucky ou em outros estados rurais, e assim possam aprender a plantar e a colher (o diretor da agência é o rabino Bengelsdorf). Lindbergh não faz comentários explicitamente antissemitas enquanto está na Presidência. Quando é acusado de impor regras que na prática cerceiam a vida em comunidade dos judeus, expulsando-os das grandes cidades e forçando-os a se espalhar pelo país, ele simplesmente lê um discurso conciso reafirmando o seu comprometimento em deixar o país fora da guerra. Depois de criticar Lindbergh em seu programa de rádio e acabar sendo demitido por isso, o jornalista judeu Walter Winchell decide se tornar candidato (nanico) à Presidência, como forma de protesto. É assassinado por um extremista de direita durante um comício, e o que se segue é um levante antissemita liderado por grupos radicais. O déspota é a faísca, não a fogueira.
No livro, o governo de Lindbergh acaba de forma banal, depois que ele decola com o seu avião e desaparece no ar, sem que a aeronave volte a ser localizada. O desaparecimento repentino é um fim consistente com o caos e a aleatoriedade que Roth prega em sua ficção; mas é também a parte mais defeituosa do livro, como se o autor tivesse ficado com preguiça de desatar o complicado nó político que ele mesmo criou. Após o sumiço de Lindbergh, os países Aliados e os do Eixo disseminam histórias de conspirações políticas, cada um tentando cooptar o governo americano como aliado na guerra. (Em vida – em sua “vida real” –, Lindbergh mudou a sua posição isolacionista após o ataque a Pearl Harbor, e, após um breve período no ostracismo, chegou a lutar pelos Estados Unidos no fim da Segunda Guerra.)
“O fascismo não estava com cara de acabar logo. Aliás, não está com cara de acabar nunca.” A mudança de tempo verbal nessa passagem escrita por Natalia Ginzburg, em seu romance Léxico Familiar, alude à imensa capacidade regenerativa do fascismo. O teatro fascista de fato nunca acaba; ele só incorpora novos elementos. É uma ameba que suga as tendências de cada geração, em vez de eliminá-las. Talvez Trump não seja um fascista no sentido mais puro da palavra, do mesmo modo que Mussolini ou Hitler o foram. Mas com sua antena para captar tendências do público e depois regurgitá-las, ele pode virar um, se lhe for conveniente.
Em Complô contra a América, pouco importa se Lindbergh é um nazista ou um “antissemita de jantar”: ele gera as condições para que a bagunça da história varra os planos dos personagens, e junto com eles a ilusão de uma democracia segura. Independentemente do que ocorrer em novembro próximo, a retórica de Trump já fez um estrago irreparável. “O pesadelo terminou. Lindbergh desapareceu e nossos problemas tiveram fim”, Roth diz no final do livro, “mas nunca mais eu reviveria aquele inabalável senso de segurança que eu possuía quando criança, inculcado em mim por uma grande república protetora e por pais ferozmente responsáveis.” O pesadelo acabara; o desamparo não.
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