Reiko ligou para a Family Romance e descreveu o pai que queria para sua filha de 10 anos: independentemente do que a menina fizesse, ele deveria se mostrar gentil. Para pagar os serviços do pai de aluguel, ela passou a gastar menos com comida e a comprar suas roupas em brechós ILUSTRAÇÃO_MIKA TAKAHASHI_2018
Famílias de aluguel
No Japão, pode-se contratar o serviço de marido, mãe, chefe ou neto
Elif Batuman | Edição 147, Dezembro 2018
A reportagem Famílias de aluguel foi publicada originalmente na edição de 30 de abril de 2018 da revista New Yorker e lhe valeu um dos mais prestigiosos prêmios do jornalismo norte-americano, o National Magazine Award. No entanto, em janeiro de 2021, a New Yorker devolveu a premiação à Sociedade Americana de Editores de Revista. A devolução aconteceu depois que a New Yorker descobriu, por meio de uma investigação interna motivada por suspeitas levantadas pela imprensa japonesa, que os três principais personagens da reportagem deram informações falsas à repórter e aos checadores da revista.
Na versão digital da reportagem, a New Yorker incluiu uma nota informando que a investigação trouxe dados que “contradizem aspectos fundamentais da história desses indivíduos e comprometem seriamente a credibilidade dos depoimentos que eles prestaram à revista”. Mas, como o fenômeno retratado na matéria – o aluguel de parentes pelas famílias japonesas – é real e bem documentado, a New Yorker não tirou a reportagem do ar.
Pela mesma razão, a piauí decidiu manter a reportagem online (veiculada na edição impressa nº 147, de dezembro de 2018), mas alerta os leitores para o fato de que Kazushige Nishida, Reiko Shimada e Yūichi Ishii, as três figuras centrais da reportagem, forneceram dados biográficos falsos. Nishida e Shimada não deram seus nomes completos verdadeiros e não são solteiros. Aparentemente, Shimada é casada com Ishii, o proprietário da empresa Family Romance, que presta os serviços de “aluguel de parentes”. Abordado pela equipe de investigação da New Yorker, Ishii sustentou que seus clientes são reais, mas não esclareceu se é ou não casado com Shimada. Nishida e Shimada, por sua vez, admitiram ter alterado seus nomes para evitar exposição pública, mas afirmaram que, fora isso, suas histórias são verdadeiras.
Há dois anos, Kazushige Nishida – um assalariado de 60 e poucos anos que mora em Tóquio – começou a alugar uma esposa e uma filha por meio período. Sua mulher tinha morrido havia pouco, e seis meses antes a filha de 22 anos saíra de casa após uma discussão e nunca mais voltara.
“Achei que eu fosse uma pessoa forte”, disse Nishida quando nos encontramos numa noite de fevereiro, num restaurante perto da estação de trem de um bairro residencial. “Mas, quando a pessoa se vê sozinha, sente uma solidão dilacerante.” Alto e ligeiramente encurvado, Nishida vestia terno e gravata cinza; tinha uma voz grave, era gentil e parecia um tanto autodepreciativo.
Ia ao escritório todo dia, naturalmente, ele disse; trabalhava no departamento de vendas de uma empresa manufatureira e tinha amigos com os quais saía para beber ou jogar golfe. À noite, porém, ficava completamente só. Achou que com o tempo se sentiria melhor, mas, ao contrário, a sensação só piorava. Pensou que poderia ser divertido ir a clubes de hostesses – aqueles bares que oferecem mulheres para conversar com os clientes –, mas no fim da noite ele estava sozinho de novo, sentindo-se um idiota por ter gastado tanto dinheiro.
Então lembrou que tinha visto um programa na tevê sobre a Family Romance, uma das muitas empresas japonesas especializadas em alugar parentes substitutos. Uma cliente, uma senhora mais velha, falava com entusiasmo sobre sua experiência de ir às compras com o neto alugado. “Era apenas um neto de aluguel, mas a mulher estava mesmo feliz”, lembra Nishida.
Ele entrou em contato com a empresa e encomendou uma esposa e uma filha para jantar com ele. No pedido, anotou a idade da filha e o tipo físico da esposa: 1,50 metro, meio cheinha de corpo. Custava 40 mil ienes, cerca de 1 340 reais. O primeiro encontro aconteceu num café. A filha de aluguel era mais descolada que sua filha real – ele usou a palavra “moderninha” –, mas a esposa logo lhe pareceu “uma mulher comum, normal, de meia-idade”. E, acenando na direção de minha intérprete, Chie Matsumoto, completou: “Ao contrário, por exemplo, da senhorita Matsumoto, que talvez se assemelhe a uma mulher em busca de sucesso profissional.” Jornalista, professora e ativista, com óculos de aro de acetato e cabelos espetados entremeados de fios brancos, Matsumoto riu ao traduzir a caracterização.
A esposa de aluguel lhe pediu detalhes sobre como ela e a filha deveriam se comportar. Nishida simulou o típico movimento de cabeça com que sua falecida mulher costumava ajeitar os cabelos e o jeito brincalhão com que a filha lhe cutucava as costelas. Em seguida, as mulheres se puseram a interpretar seus papéis. A esposa o chamava de Kazu, como fazia sua mulher de verdade, e meneava a cabeça para jogar os cabelos para trás. A filha, zombeteira, dava-lhe cutucões nas costelas. Quem os visse poderia tomá-los por uma família de verdade.
Nishida agendou um segundo encontro. Dessa vez, mulher e filha foram à casa dele. A mulher preparou okonomiyaki, um tipo de panqueca que sua finada esposa fazia, enquanto ele conversava com a filha. Jantaram e foram ver tevê.
Outros jantares em família se seguiram, em geral na casa de Nishida. Certa ocasião, os três saíram para comer monjayaki, outra variedade de panqueca muito ao gosto da falecida. O jantar não foi dos mais caros, e ele se perguntou se deveria tê-las levado a um lugar melhor, uma vez que, afinal, eram suas convidadas. Mas, por outro lado, na vida real os Nishida não frequentavam restaurantes finos.
Antes de um novo encontro, ocorreu a Nishida enviar à Family Romance uma cópia da chave de sua casa. Naquela noite, quando voltou do trabalho, encontrou as luzes acesas, a casa quentinha: as duas estavam lá para recebê-lo.
“Foi muito bom”, recorda, com um leve sorriso, acrescentando que, quando as duas se foram, não sentiu falta delas – isto é, não sentiu nenhuma necessidade premente ou saudade. Só pensou que “seria bom repetir a experiência”.
Ele me diz que, embora continue se dirigindo a elas pelo nome da mulher e da filha e os encontros ainda ocorram como jantares em família, em certa medida as duas pararam de interpretar e “voltaram a ser elas mesmas”. A esposa de aluguel às vezes “ultrapassa os limites da família alugada”, pelo menos o suficiente para se queixar do marido real, e Nishida lhe dá conselhos. Com esse afrouxamento dos papéis, ele também percebeu que estivera interpretando o papel do “bom marido e pai”, tentando não parecer tão infeliz nem chato, dizendo à filha como segurar a tigela de arroz. Agora se sentia mais leve, capaz, pela primeira vez, de falar sobre sua filha de verdade, sobre como ficara chocado com sua decisão de ir morar com um namorado que ele nem conhecia e sobre como haviam discutido e cortado relações.
A filha de aluguel tinha muito a dizer sobre a filha de verdade. Garota de 20 e poucos anos, ela disse a Nishida que provavelmente ele não havia usado as palavras certas, ou que se expressara de modo errado. Dificultou à filha um pedido de desculpa e agora cabia a ele dar o primeiro passo para a reconciliação. “Sua filha está esperando que o senhor ligue”, disse. Para mim, essa frase parecia saída de uma sessão mediúnica. O próprio Nishida não entendeu bem o modo como a moça lhe falou, nem em nome de quem. “Ela agia como uma filha alugada, mas, ao mesmo tempo, também me revelava como se sentia na condição de filha de verdade”, ele afirmou. “Mas, se nosso relacionamento fosse um relacionamento real entre pai e filha, talvez ela não tivesse falado com tanta sinceridade.”
Nishida acabou telefonando à filha – cujo ponto de vista, segundo ele, não teria compreendido sem a ajuda da filha de aluguel. Não conseguiram conversar logo de cara, mas acabaram por se entender. Um dia ele chegou do trabalho e encontrou flores frescas no altar da família dedicado à falecida esposa. Então entendeu que a filha havia passado por ali.
“Tenho pedido que ela volte para casa”, ele me disse, cauteloso, dobrando e redobrando uma toalhinha de mão que a garçonete trouxe. “Tenho esperança de que a gente se reencontre em breve.”
Yūichi Ishii, o fundador da Family Romance, contou que ele e seu “elenco” trabalham ativamente no desenvolvimento de estratégias que produzam resultados como os obtidos no caso de Nishida, em que a família de aluguel acaba por não ter mais importância na vida do cliente. Seu objetivo é “criar uma sociedade na qual ninguém precise de nossos serviços”. Ishii é um homem bonito de 30 e poucos anos. Em um de nossos encontros, chegou diretamente de uma entrevista para a tevê; vestia um terno risca de giz, abotoaduras e um prendedor de gravata com um camafeu azul com um cavalo. Seu cartão de visitas exibe uma caricatura dele e a máxima “Mais prazer do que a realidade pode dar”.
Nascido em Tóquio, filho de um comerciante de frutas e uma professora de natação, Ishii cresceu no litoral da província de Chiba. Na escola, os colegas se reuniam num telefone público para vê-lo passar trotes imitando voz de adulto; era o único que conseguia dar aqueles telefonemas sem rir. Aos 20 anos, foi selecionado por uma agência e conseguiu alguns trabalhos como modelo – e também no cinema, como figurante. Tinha um emprego regular como cuidador de idosos. Ishii me mostrou fotos em diferentes festas em lares para idosos, vestido como Marilyn Manson ou com roupas femininas, cercado por velhinhos encantados. Adorava a sensação de ajudar as pessoas e sentia orgulho de ser o cuidador mais requisitado, inclusive quando residentes de determinado lar eram transferidos para outras unidades. Na prática, já era um neto de aluguel.
Onze anos atrás, uma amiga de Ishii, mãe solteira, contou a ele que estava com dificuldade em matricular a filha num jardim da infância muito concorrido, porque as escolas davam preferência a filhos de pais casados. Ishii se ofereceu para acompanhá-la a uma entrevista, no papel de pai da menina. A empreitada malogrou – a criança não estava acostumada com ele e a interação resultou artificial –, mas incutiu em Ishii o desejo de se aperfeiçoar e “corrigir injustiças”, ajudando outras mulheres na situação da amiga. Ao pesquisar na internet se alguém já tinha pensado em oferecer um serviço daquele tipo, ele deparou com a Hagemashi-tai, uma agência de aluguel de parentes.
A Hagemashi-tai – ou “Quero alegrar você” – foi fundada em 2006 por Ryūichi Ichinokawa, um ex-assalariado de meia-idade, casado e pai de dois filhos. Cinco anos antes, Ichinokawa havia ficado profundamente abalado por um esfaqueamento ocorrido numa escola particular num bairro de Osaka, que resultou na morte de oito crianças de idades próximas às de seus filhos. Casos como esse são raros no Japão, e as escolas não ofereciam serviços psicológicos apropriados, razão pela qual Ichinokawa se matriculou num curso de psicologia, na esperança de um dia vir a atuar como psicólogo em alguma escola. Em vez disso, acabou lançando um site que oferecia aconselhamento psicológico por e-mail. Daí, a atividade se ampliou para o aluguel de parentes. Tudo indicava que muitos problemas decorriam de uma ausência significativa, e frequentemente a solução mais simples era encontrar um substituto.
Ishii se inscreveu para trabalhar na Hagemashi-tai, mas aos 26 anos foi considerado jovem demais para atuar como marido ou pai, restando-lhe apenas figurar como convidado em casamentos. Festas de casamento são o arroz com feijão do negócio de aluguel de parentes, talvez porque no Japão as tradições que ditam o número apropriado de convidados nessas cerimônias não tenham se adequado à urbanização e à migração crescentes, ao encolhimento das famílias e à menor estabilidade no emprego. Noivos demitidos alugam substitutos para os antigos colegas e supervisores; pessoas que mudaram de escola muitas vezes alugam amigos de infância; noivos recentes, relutantes quanto a incomodar um ao outro com problemas familiares, podem alugar substitutos para pais divorciados, presos ou mentalmente enfermos. Um cliente da Hagemashi-tai simplesmente não quis dizer à noiva que seus pais tinham morrido – preferiu alugar substitutos.
Em 2009, Ishii resolveu dar início a seu próprio negócio. O primeiro passo foi encontrar um nome marcante. Ele começou pesquisando frases relacionadas à ideia de uma família imaginária, e então topou com um ensaio de Freud publicado em 1909, “O romance familiar dos neuróticos”, sobre crianças que acreditam que seus pais são impostores e se creem, na verdade, filhas de nobres ou membros da realeza. Segundo Freud, essa fantasia é o jeito infantil de lidar com a experiência inevitável e dolorosa da decepção com os pais. Se os pais continuassem, para sempre, a parecer todo-poderosos, generosos e infalíveis – que é como os filhos pequenos os veem –, ninguém jamais se tornaria independente; e, no entanto, como pode alguém suportar a perda súbita e irremediável de entes tão queridos? O “romance familiar” permite à criança sustentar o ideal por mais um tempo, na medida em que o desloca para “genitores novos, nobres”, cujos traços formidáveis, escreveu Freud, “vêm de lembranças verdadeiras do pai e da mãe reais, inferiores”. Nesse sentido, a criança não está apenas “se livrando” dos pais, mas também está os exaltando, e todo o processo de substituição desses pais por versões superiores deles “é apenas uma expressão da nostalgia da criança pelo tempo feliz perdido, em que o pai lhe parecia o homem mais forte e mais nobre, e a mãe, a mulher mais bela e adorável”.
Além da Family Romance, Ishii também tem uma agência de atores e modelos e uma consultoria em tecnologia, empregando cerca de vinte funcionários em tempo integral, sete ou oito dos quais trabalham exclusivamente para a Family Romance. Ele mantém uma base de dados de cerca de 1 200 atores. Trabalhos grandes e únicos, como casamentos, respondem por cerca de 70% da receita da empresa. O restante provém de relacionamentos pessoais que podem, como no caso do senhor Nishida, se prolongar por anos.
Desde 2009, Ishii já atuou como marido para uma centena de mulheres. Cerca de sessenta desses trabalhos ainda estavam em andamento. No início da carreira, ele chegou a integrar dez famílias ao mesmo tempo – uma carga de trabalho insustentável. “Você se sente como se carregasse nos ombros a vida de uma pessoa”, disse. Desde então, implementou uma política segundo a qual nenhum ator pode representar mais de cinco papéis simultaneamente.
Um dos riscos da profissão é o cliente se tornar dependente. De acordo com Ishii, entre 30% e 40% das mulheres que se relacionam com maridos de aluguel acabam por propor casamento. Os clientes do sexo masculino têm menos propensão à dependência, uma vez que, por razões de segurança, esposas de aluguel raramente vão à casa dos homens; a esposa e a filha de Nishida abriram uma exceção pelo fato de atuarem em dupla. De modo geral, parceiras ou cônjuges de aluguel não ficam sozinhas com os clientes, e todo contato físico além de dar a mão é proibido.
As situações de dependência mais difíceis envolvem mães solteiras. “Não podemos simplesmente repelir essas mulheres e dizer: ‘Não, não podemos prosseguir.’ E isso porque assumimos a responsabilidade de desempenhar esse papel por um longo período”, Ishii afirma. Nesses casos, o primeiro passo é reduzir a frequência dos encontros a um a cada três meses. Isso funciona com algumas pessoas, mas outras insistem em encontros mais frequentes, e vez por outra é preciso dar um basta.
Em Tóquio, no começo do ano, conheci membros do elenco tanto da Family Romance como da Hagemashi-tai. Eles já haviam frequentado casamentos, seminários espirituais, feiras de empregos, competições de comediantes e lançamentos de álbuns de bandas de adolescentes. Uma mulher vinha representando o papel de esposa de um mesmo homem fazia sete anos; a esposa de verdade engordara, e o marido contratou uma substituta para sair com ele e seus amigos. A mesma atriz já havia participado de eventos escolares, substituindo mães acima do peso – filhos de pais gordos podem ser alvo de bullying. Ichinokawa e Ishii me contaram muitas outras histórias. Uma mulher que trabalhava num cabaré contratou um cliente para se interessar por ela. Uma cega alugou uma amiga não cega para lhe dizer quais eram os homens de boa aparência num baile para solteiros. Uma grávida alugou uma mãe para convencer o namorado a reconhecer a paternidade da criança, e um rapaz alugou um pai para tranquilizar os pais da namorada grávida.
Mulheres solteiras com pais obcecados por casamento muitas vezes alugam namorados ou noivos de mentirinha. Se os pais exigem ver o namorado uma segunda vez, em geral a filha procura ganhar tempo, e então diz que o caso não foi adiante. De vez em quando, porém, os pais não se deixam levar por evasivas, e a situação se complica. Ishii contou que, duas ou três vezes por ano, encena casamentos. As cerimônias custam cerca de 5 milhões de ienes (algo em torno de 170 mil reais). Em alguns casos, a noiva convida colegas de trabalho, amigos e familiares reais. Em outros, são todos atores, menos a noiva e os pais dela. O padrinho de aluguel faz um discurso que muitas vezes leva às lágrimas os convidados alugados. Quando desempenha o noivo, Ishii experimenta emoções confusas. Um casamento de mentira dá tanto trabalho para organizar quanto um de verdade – são meses de planejamento, sempre em companhia da “noiva”. Invariavelmente, diz ele, “começo a me apaixonar por ela”. Quando chega o momento do beijo, algumas preferem fingir – são apenas os rostos que se tocam para dar a impressão de um beijo –, mas outras optam por um beijo de verdade. Ishii tenta se imaginar como ator de um filme, mas, com frequência, afirma, “sinto como se estivesse me casando de fato com a mulher”.
De todos os serviços oferecidos pela Family Romance, o que mais me surpreendeu foi o do “recriminador de aluguel”. Ao contrário do que supus, os recriminadores não são alugados por clientes que desejam repreender uma pessoa, e sim por gente que “cometeu um erro” e precisa de ajuda para “se redimir”. Taishi, 42 anos, ator e instrutor de fitness, amável no trato, me contou sobre seu primeiro desempenho nessa função. O cliente, um homem de quase 60 anos, fundador de uma empresa, queixava-se de ter perdido a “motivação”. Não frequentava mais as reuniões de trabalho nem saía para beber com os empregados. Começara a delegar responsabilidades e passara a jogar golfe e frequentar clubes de hostesses, à custa da sua própria empresa. O contador estava a par dessas despesas e, portanto, era bem capaz que os demais empregados também soubessem, o que envergonhava o patrão.
Taishi, impressionado com aquele nível de consciência e relutante quanto a gritar com um presidente de empresa quinze anos mais velho que ele, sugeriu que o cliente simplesmente se reunisse com os funcionários ou tomasse uns tragos com eles, e parasse de lançar despesas pessoais na conta da empresa. Diante dessa sugestão, o homem reagiu com uma diatribe sobre a distância correta entre o presidente de uma empresa e seus empregados, explicando que qualquer variação desse comportamento intimidaria os subalternos. Recusou-se inclusive a participar de ao menos uma reunião, a fim de constatar se alguém de fato ficaria intimidado com sua presença. A conversa não ia a lugar nenhum, e Taishi percebeu que começava a se irritar cada vez mais. “Eu disse: ‘Bom, se o senhor nem me dá ouvidos, por que nos contratou?’” E, em parte desempenhando seu papel, em parte a sério, deu um murro na mesa. “O problema é essa sua cabeça dura!”, exclamou, atirando longe o canudinho de seu refrigerante.
Alugar um pedido de desculpa, o papel oposto ao do recriminador, pode ser tarefa espinhosa. Ishii esboçou alguns cenários possíveis. Se alguém comete um erro no trabalho e um cliente contrariado pede para falar com o supervisor dele, o sujeito pode contratar Ishii para atuar como seu supervisor. Então, Ishii, identificando-se como chefe de departamento, irá se desculpar. Se a desculpa não for aceita, outro ator pode ser enviado para se justificar na condição de chefe do supervisor. Se o chefe do supervisor não se sair bem, Ishii despachará um presidente da empresa arrependido. Essas são situações que podem se complicar, uma vez que os verdadeiros chefes não sabem que se desculparam. Às vezes, se a parte ofendida não conhece pessoalmente quem a ofendeu, Ishii finge ser o culpado, o qual, por sua vez, fingirá ser seu supervisor. Então Ishii rasteja e estrebucha no chão enquanto gritam com ele, e tudo isso à vista do verdadeiro culpado. Cenas assim causam uma impressão surreal, onírica e desagradável, diz Ishii.
Ainda mais estressantes são os pedidos de desculpa em casos extraconjugais. Um marido enganado por vezes exige que o amante da mulher se desculpe pessoalmente. Uma esposa infiel cujo amante se recusa a colaborar pode alugar um substituto. A tática de Ishii, nesses casos, é aplicar uma tatuagem temporária no pescoço e se vestir como um membro da Yakuza. Ele vai até a casa do casal e, quando o marido abre a porta, cai de joelhos diante dele e se desculpa profusamente. Agindo assim, pretende neutralizar o potencial de violência da situação por meio de uma mescla de surpresa, medo e bajulação. Se o amante é casado, o marido enganado pode exigir um encontro com o amante e a mulher do amante, na esperança de destruir o casamento do rival. Então, o amante cuja mulher nada sabe de seu caso extraconjugal acaba por alugar uma esposa substituta. Uma atriz que conheci descreveu o papel de “esposa do amante” como o pior tipo de trabalho: além de fazê-la sentir-se culpada e uma pessoa terrível, essa atuação tende a se estender além do tempo previsto, e os maridos gritam e agem com agressividade.
Outra agência de aluguel oferece tarefa mais especializada: seu nome, Ikemeso Takkyūbin, faz referência a homens bonitos que prestam o serviço (em domicílio) de provocar o choro na cliente para então enxugar suas lágrimas, e em seguida eles também choram. Os homens podem ser escolhidos a partir de um catálogo de belos rapazes de diferentes tipos, que incluem “irmãozinho”, “sujeito durão”, “intelectual”, “samurai”, “mestiço” e, curiosamente, “dentista”. O “dentista” com cara de adolescente – ele aparecia na foto ofuscado por uma escova de dentes em primeiríssimo plano – era de fato um dentista, como depois fiquei sabendo.
Hiroki Terai, o fundador da Ikemeso Takkyūbin, disse que o serviço oferecido pela empresa é um braço de outra modalidade de negócio: o das “cerimônias de divórcio”, destinadas a auxiliar as pessoas a encerrar um ciclo da vida e a aliviar a estigmatização social. Nos últimos nove anos, Terai já realizou 530 cerimônias desse tipo. (Na quadringentésima, um marido, vestido como um buquê de noiva do tamanho de uma pessoa real, foi atado a uma corda de bungee jump e empurrado de um penhasco pela futura ex-esposa). Essas cerimônias, que com frequência ocorrem num edifício em péssimo estado, simbolizando um “casamento em ruínas”, incluem uma apresentação que ilustra, ponto por ponto, por que o casamento deu errado. Quinze casais se reconciliaram depois de ver a apresentação. Vez por outra, mulheres envergonhadas com o divórcio contratam familiares de aluguel para assistir à cerimônia.
Logo no começo, Terai ficou espantado com o número de homens que choravam naquelas cerimônias de divórcio – “em geral, as mulheres se comportam bem, mas os homens choram alto”, ele contou –, e como aqueles mesmos homens ficavam aliviados depois. Ao perceber que ele próprio não chorava havia cerca de cinco anos, Terai procurou vídeos no YouTube que o fizessem chorar e encontrou um comercial tailandês que mostrava uma menina que desconsiderara o amor do pai surdo-mudo. Então ele chorou e sentiu como se tivessem lhe tirado um peso.
Terai cunhou a expressão rui-katsu – “choro comunitário” – e deu início a um novo empreendimento: sessões de choro em empresas, com o intuito de fortalecer o espírito de equipe. Hoje, no Japão, cerca de quarenta firmas promovem oficinas de rui-katsu, a maior parte delas não vinculadas à empresa de Terai. Além das sessões de noventa minutos nas empresas, Terai viaja uma vez por ano a Iwaki, na província de Fukushima, para realizar uma sessão de rui-katsu com sobreviventes do tsunami que atingiu o local em 2011.
Hoje, aos 37 anos, Terai afirma que a atitude das pessoas diante de homens que choram mudou muito desde sua infância. A título de experimento, ele perguntou a mulheres mais jovens o que elas achavam de homens que choram. Todas responderam que eles seriam sensíveis e delicados – contanto que também tivessem boa aparência. Então, depois de ouvir de algumas participantes das sessões de rui-katsu que o serviço ficaria melhor se suas lágrimas fossem enxugadas por homens bonitos, Terai se sentiu profissionalmente obrigado a despachar belos rapazes para ajudar as pessoas a chorar.
Eu havia pedido para experimentar o serviço e escolhi o “samurai”. Terai promoveu um encontro no saguão de um hotel. (Minha intérprete, Matsumoto, ficou surpresa quando eu não quis pagar 8 mil ienes por uma sala particular para minha sessão de choro; assegurei-lhe que, embora o samurai fosse novidade, aquela não seria a primeira e, muito provavelmente, tampouco a última vez que eu choraria em público.) O samurai, um jovem esbelto de feições esculturais, que parecia incrivelmente sensível, vestia um traje feito por um estilista especializado em reinterpretações modernas de vestimentas japonesas tradicionais. Ele deu início à sessão com a leitura em voz alta de uma história para crianças em que um menininho, em Fukushima, escreve uma carta para sua avó e para o cachorro dela, ambos arrastados pelo tsunami.
“Você está chorando?”, Terai me perguntou. “Você precisa chorar, ou ele não poderá enxugar suas lágrimas.” O samurai, que também atua como modelo freelancer, olhou solícito para meu rosto e me ofereceu um lenço pregueado e listrado de azul e branco. Expliquei que me sentira próxima das lágrimas quando a avó e o cachorro recebem a carta no céu, e o cachorro abana o rabo. “Todo mundo chora quando o cachorro abana o rabo”, anuiu o samurai, com conhecimento de causa.
Em seguida, nós todos assistimos a um vídeo no YouTube sobre um pai que toca saxofone no casamento do filho. Esperei temerosa pela revelação de que o pai tinha câncer. De repente o vídeo acabou, e nada de ruim aconteceu. Quando ergui os olhos, vi uma lágrima escorrendo em direção ao queixo do samurai. Matsumoto também chorava. Terai me explicou que o momento que provoca choro é quando se fica sabendo que as irmãs do noivo haviam preparado, em segredo, um acompanhamento ao piano para o solo do pai.
De todo modo, Terai queria tirar fotos do samurai enxugando minhas lágrimas. “Tente parecer triste”, ele disse. Eu olhei para o chão, e o samurai se agachou em minha direção com o lenço. Depois, ele me contou sobre seu teste para ser admitido naquele serviço, e que o teste foi gravado por um telejornal. Para seu embaraço, ele não conseguiu chorar. “Eu tinha lágrimas nos cantos dos olhos, mas elas não escorriam.”
“A lágrima tem que escorrer pelo rosto”, Terai explicou. Ainda assim, não fechou as portas ao samurai. “Ele não conseguiu chorar naquele momento, mas eu podia imaginá-lo chorando”, disse. “E constatei que ele não estava me enganando.”
Meu compromisso seguinte, dessa vez com a Family Romance, consistiu numa sessão de duas horas com uma mãe de aluguel no distrito comercial de Shibuya. Estava ansiosa por aquele encontro antes mesmo de chegar ao Japão. Na véspera da viagem, minha mãe de verdade me escreveu um e-mail maravilhoso, desejando boa viagem e aludindo, como eu sabia que ela faria, a um de meus livros preferidos, As Irmãs Makioka, um romance familiar de Jun’ichirō Tanizaki escrito na década de 30. Ela me dera seu exemplar quando eu era adolescente, e uma das coisas que eu mais gostei na história foi da semelhança entre a linguagem e as piadas compartilhadas pelas irmãs com as lá de casa. Não foi justamente porque minha mãe compartilhou comigo seu amor por Tanizaki e Kōbō Abe que eu me tornei escritora? E que agora eu podia visitar os lugares sobre os quais havíamos lido juntas? Parecia-me injusto não apenas que eu estivesse indo sozinha ao Japão, mas que também tramasse substituí-la por uma mãe de aluguel.
Uma tarde, em Tóquio, no trem, Matsumoto me ajudou a preencher o formulário. “Tem um espaço aqui para suas lembranças preferidas da infância”, ela disse. E eu me peguei contando a ela sobre o dia – eu tinha 3 ou 4 anos – em que minha mãe, uma jovem médica que trabalhava até tarde, chegou cedo em casa e me levou para comprar um carrinho de boneca. Aquela felicidade inesperada foi, de algum modo, intensificada pelo caráter supérfluo do carrinho, pelo fato de ele ser desnecessário. “O dia em que a gente comprou o carrinho”, “o dia do carrinho”, transformou-se num sinônimo de… de quê? De um dia feliz, embora eu me lembre de, mais tarde, ter perguntado à minha mãe por que a menção àquele episódio sempre me trazia alguma tristeza. Temia que ela me dissesse para parar com aquela morbidez, isto é, que parasse de procurar maneiras de me sentir triste com coisas que eram alegres. Em vez disso, ela respondeu sem pestanejar: “Não será porque a gente se pergunta o motivo que nem todo dia é ‘dia do carrinho’?”
Encontrei minha mãe de aluguel no café de uma loja de departamentos. Não tinha visto a foto dela e, por isso, precisei de um tempinho para identificar a pessoa: uma mulher japonesa pequenininha e de meia-idade, cabelos cor de mel. Ela se levantou quando me aproximei.
“Mãe!”, exclamei radiante.
Abracei-a, e ela me abraçou algo distante, mas uma distância quase imperceptível. “Como vamos fazer?”, ela me perguntou num inglês americano sem sotaque. “Você gostaria de me entrevistar ou prefere que a gente represente?”
Como eu reservara duas horas com ela, sugeri que fizéssemos um pouco de cada. “Para mim isso é meio estranho, porque quando atuo como mãe em geral é para uma filha de 20 e poucos anos”, ela disse – aos 56, ela era apenas dezesseis anos mais velha que eu.
“Quer que eu finja ter 20 e poucos?”, perguntei.
“Não, posso fazer o papel de uma mulher mais velha”, ela respondeu. Quanto a nossa história anterior, ela propôs que minha mãe tivesse “se mudado para o Japão por algum motivo”, e que nos revíamos agora pela primeira vez em muitos anos. Concordei.
De repente, sua expressão se suavizou. “Faz tanto tempo que não nos vemos.” Sua voz também estava mais terna e nostálgica. Fiquei levemente tocada.
“Faz tempo mesmo”, respondi.
“Não sei de quanto você se lembra. Não sei se lembra do tempo que passamos juntas.” A tristeza na voz dela me fez pensar em minha mãe de verdade, quando ela falava da época posterior a seu divórcio, quando fui morar com meu pai.
“É claro que lembro”, eu disse, animando-a, e me vi inclusive tentando recuperar alguma memória real, até lembrar que não havia nenhuma, porque tínhamos acabado de nos conhecer. “Quero dizer… não lembro em detalhes”, acrescentei.
“Pois eu me lembro de cada minuto que passamos juntas, e prezo todos eles. Eu só queria que eles tivessem sido mais numerosos”, ela disse. “Não tive todo o tempo que queria com você por causa do meu trabalho. É uma coisa que hoje eu lamento.”
Senti uma onda de pânico, como se uma vidente estivesse me dizendo alguma coisa de uma precisão sinistra.
“Você precisou trabalhar muito duro”, eu disse.
“Mas e o seu trabalho? Como você lida com toda a pressão?”, ela me perguntou – e a magia se desfez, porque minha mãe de verdade sabe tudo sobre meu trabalho e não teria feito aquela pergunta. Então comecei a falar sobre o aplicativo de meditação que tenho no celular e perguntei se ela gostava de meditar. “Acho que agora estamos falando como nós mesmas”, ela disse, fazendo eco ao que eu estava pensando.
Comecei a entrevistá-la. Seu nome era Airi e ela havia passado boa parte da infância nos Estados Unidos e no Canadá, porque seu pai era pesquisador da área de física. Nos anos 70, Airi trabalhou na televisão por algum tempo, atuando em papéis secundários, fazendo a “criança asiática feliz”. Quando tinha 14 anos, o pai a mandou para o Japão, para que ela “entrasse no sistema”. Censurada e marginalizada por empregar palavras em inglês, ela aprendeu a manter a boca fechada até que aprendesse a falar japonês com perfeição. Concluída a educação formal, ingressou no mundo das empresas, escalando as posições mais altas de diversas companhias internacionais, até deixar, dois anos atrás, seu último cargo.
Pouco depois, Airi entrou para a Family Romance, onde hoje é chamada para dois ou três trabalhos todo mês. Não tem filhos nem parentes próximos; perdeu o marido, os pais e uma avó de 110 anos num intervalo de vinte anos. Às vezes, as jovens mulheres que contratam seus serviços como mãe falam das “merdas que enfrentam no trabalho”. Ouvindo as histórias delas, parecidas com as que sofreu na própria carne, Airi é capaz não apenas de imaginar, mas até mesmo de experimentar como poderia ter sido sua vida se, em vez de se concentrar tanto no trabalho, tivesse tido filhos.
A despeito de terem histórias e personalidades diferentes, percebi certas semelhanças entre Airi e minha mãe. Minha mãe também teve de superar muitas barreiras para alcançar um nível alto em seu campo de atuação, e num país diferente daquele no qual havia crescido. Também abandonara seu cargo recentemente. Ao ouvir Airi descrever as coisas de que gostava em sua vida e as que poderiam ter sido melhores, fui tomada por uma estranha sensação de alívio: ela enfrentou dificuldades semelhantes às de minha mãe, mas não tinha tido uma filha, o que significava que não foi a filha a razão daquelas dificuldades.
Conversamos sobre a reportagem que eu estava escrevendo. “Acho que só vou ocupar umas poucas linhas”, ela disse, e de súbito comecei a me sentir culpada. Provocou-me dor física ouvi-la mencionar de passagem sua instabilidade financeira e dizer que não podia “seguir vivendo desse jeito para sempre”, ou quando sugeriu que eu a contratasse como intérprete – respondi dizendo que já tinha uma. O pior momento veio quando ela disse que nenhuma das filhas que a haviam contratado jamais pediu para vê-la novamente, e me dei conta de que tampouco eu a veria de novo. Assim, quando Airi se ofereceu para me mostrar a loja de departamentos, eu logo aceitei, embora nosso tempo já tivesse acabado.
Depois da Restauração Meiji, em 1868, os reformadores uniram o Japão em torno de um imperador “restaurado” e, após séculos de isolacionismo e governo feudal, puseram-se a transformar o país num poder militar burocrático moderno. Escreveram um novo Código Civil, abrindo espaço para aquilo que os ocidentais chamavam “família” – um conceito até então desprovido de realidade legal no Japão e que nenhuma palavra da língua japonesa era capaz de expressar. Um novo termo foi cunhado, kazoku, e desenhou-se um “sistema familiar” com base numa antiga forma de organização doméstica: a ie, ou casa. Produto em parte dos princípios confucianos, a ie possuía uma hierarquia rígida. O chefe controlava a propriedade e escolhia um membro da geração mais jovem para sucedê-lo – em geral o primogênito, embora às vezes a escolha pudesse recair sobre um genro ou mesmo um filho adotado. A continuidade da casa era mais importante que as relações de parentesco. Os demais integrantes podiam permanecer na ie, casar com um membro de outra ie (no caso das filhas) ou dar início a outro ramo de sua ie (no caso dos filhos). A ideologia nacionalista da era Meiji representava o Japão como uma grande família, na qual o imperador era o chefe da casa principal, que se ramificava nas demais casas. O familismo tornou-se o núcleo da identidade nacional, contrapondo-se ao individualismo egoísta do Ocidente.
Depois da Segunda Guerra Mundial, uma nova Constituição, esboçada durante a ocupação aliada, procurou suplantar a ie pela via de um núcleo familiar “democrático”, ao estilo ocidental. Casamentos forçados passaram a ser ilegais, cônjuges se transformaram em iguais perante a lei e a propriedade era distribuída equitativamente entre os filhos de um casal, independentemente de gênero ou ordem de nascimento. Com o crescimento econômico do pós-guerra e a ascensão da cultura empresarial, a ie se tornou menos comum, enquanto os núcleos familiares em apartamentos – o assalariado, a dona de casa e os filhos – proliferaram. Durante o florescimento econômico da década de 80, um número crescente de mulheres passou a trabalhar fora. As taxas de natalidade declinaram, enquanto os divórcios e o número de lares compostos de uma só pessoa aumentaram. A expectativa de vida também aumentou, bem como a proporção da população mais velha.
Foi então que surgiu a primeira onda de famílias de aluguel. Em 1989, Satsuki Ōiwa, a presidente de uma companhia de Tóquio especializada em treinar funcionários para servir a grandes empresas, começou a alugar filhos e netos para idosos negligenciados pela família – uma ideia que lhe ocorreu ao ouvir funcionários de grandes companhias se queixarem de que estavam muito ocupados para visitar os pais. O serviço oferecido por Ōiwa recebeu grande cobertura da imprensa, e em poucos anos foram enviados parentes para mais de uma centena de clientes. Um casal contratou um filho para ouvir histórias sobre a má sorte do pai. O filho de verdade morava com eles, mas se recusava a ouvir aquelas histórias. Além disso, o neto já não era mais criança, e os avós sentiam saudade de tocar a pele de um bebê. Uma visita de três horas de um filho e uma nora de aluguel, de posse tanto de uma criança pequena como da paciência necessária para ouvir histórias tristes, custava cerca de 4 300 reais. Outros clientes incluíam um jovem casal que alugou avós para o filho, e um homem solteiro que contratou mulher e filha a fim de experimentar o tipo de núcleo familiar que vira na tevê.
A ideia de alugar parentes deitou raízes na imaginação popular. O pós-modernismo estava no ar e, numa época de relativismo cultural, o relativismo do aluguel se encaixou como uma luva. Em 1993, Misa Yamamura, famosa escritora de romances policiais, publicou O Caso do Assassinato na Família de Aluguel – uma paciente de câncer idosa se vinga do filho negligente hipotecando a casa da família e alugando um filho mais atencioso, uma nora e um neto. A mulher é assassinada, e dois testamentos diferentes são encontrados – um deles beneficiava o filho, o outro, os parentes de aluguel, o que representava a tensão entre a crença tradicional no amor filial e as relações econômicas a atrelar pais e filhos.
Desde então, parentes de aluguel têm inspirado farta produção literária. Em Tóquio, conheci o crítico literário Takayuki Tatsumi, que escreveu um compêndio sobre o gênero nos anos 90. Segundo ele, romancistas pós-modernos e gays se valeram de parentes alugados para representar a “família virtual”, uma ideia que Tatsumi remontou à ie do período Meiji, quando a adoção de familiares era comum e a linhagem biológica se subordinava à integridade da casa. “De acordo com Foucault, tudo é construído, e não essencialmente determinado”, afirma Tatsumi. “O que importa é a função.” Lembrei de uma citação da pioneira Satsuki Ōiwa, que eu tinha lido num artigo sobre ela: “O que oferecemos não é afeição familiar, e sim afeição humana expressa sob a forma da família.”
Parentes substitutos ou de aluguel seguem figurando na literatura e no cinema. Eles aparecem em três filmes japoneses recentes que assisti em aviões. Numa comédia, O Ladrão Substituto, um órfão sem parentes cria vínculos emocionais com uma série de estranhos isolados que ele encontra ao arrombar uma casa; em outra, um padrasto paga ao pai inútil de sua enteada para que ele passe tempo com a filha. A atmosfera reinante nesses filmes parecia alternar entre certa euforia com a alquimia do mercado, que transforma estranhos em entes queridos, e uma paranoia à moda de O Show de Truman, em que todos aqueles que amamos estão apenas representando um papel.
Tanto a euforia quanto o medo podem ter sua origem na desregulamentação do mercado de trabalho japonês na década de 90, bem como na consequente erosão do estilo de vida do assalariado do pós-guerra. Hoje, 38% da força de trabalho japonesa é constituída de trabalhadores não regulares. (Boa parte da cobertura que a imprensa dá aos parentes de aluguel apresenta esse trabalho como um bico para complementar a renda.) Em 2010, o número de domicílios unipessoais suplantou o de núcleos familiares. No Japão, assim como em outros lugares, os jovens de hoje têm mais oportunidades no que concerne à mobilidade e à expressão pessoal, mas estão menos acostumados à experiência da estabilidade, da vida em comunidade e em família. Enquanto isso, o número de idosos cresce. Tatsumi me mostrou o trecho de um filme de 2008 em que uma mulher mais velha permite que um jovem vigarista a engane, porque o rapaz a faz lembrar o filho morto. O filme se passa, em parte, num grupo de casas de papelão de velhos sem-teto, que de fato existiu em Tóquio.
Como muitos outros aspectos da sociedade japonesa, com frequência os parentes de aluguel são explicados por meio dos conceitos de honne e tatemae, isto é, os sentimentos individuais genuínos e as expectativas da sociedade. Autenticidade e coerência não são necessariamente valorizadas em si mesmas. A dissimulação da honne autêntica sob a tatemae convencional é muitas vezes vista como um ato de altruísmo e sociabilidade, e não como engodo ou hipocrisia. Um exemplo: o homem que alugou pais de mentira para seu casamento porque seus pais de verdade haviam morrido acabou por revelar a verdade à mulher. Funcionou muito bem. A mulher disse que compreendia que seu intuito não fora enganá-la, e sim evitar complicações na cerimônia. E chegou a agradecê-lo pela consideração.
Ainda assim, embora muitos aspectos do negócio do aluguel de parentes se devam a especificidades do Japão, é igualmente verdade que, ao longo da história da humanidade, pessoas vêm pagando a estranhos para que estes cumpram papéis que seus parentes desempenhavam de graça. Carpideiras já existiam na Grécia antiga, em Roma e na China, na tradição judaico-cristã e nos primórdios do mundo islâmico, e elas foram criticadas por Sólon, são Paulo e são João Crisóstomo. Seguem existindo na China, na Índia e, mais recentemente, na Inglaterra, onde um serviço com sede em Essex, Rent A Mourner (Alugue uma Carpideira), opera desde 2013. E o que são babás, enfermeiras e cozinheiras senão parentes de aluguel a cumprir alguns dos papéis que eram tradicionalmente desempenhados por mães, filhas e esposas?
Na verdade, a ideia de que as famílias se definem pelo “amor que o dinheiro não pode comprar” é relativamente recente. Em tempos pré-industriais, a família era a unidade econômica básica, e um novo filho significava mais um par de braços para o trabalho. Depois da industrialização, as pessoas começaram a trabalhar fora em troca de salário fixo, e cada filho passou a significar uma boca a mais para alimentar. A família se tornou um refúgio do amor incondicional num mundo governado pelo mercado.
Em 1898, a feminista Charlotte Perkins Gilman escreveu que o “amor romântico” e o “sacrifício materno” eram construtos ideológicos, nada mais que publicidade enganosa para manter as mulheres em casa. As meninas aprendiam a valorizar acima de tudo o romance e a cultivar a beleza física, a fim de atrair um marido. A seguir, com base num contrato tácito, elas deveriam, sem nenhum preparo ou treino, se transformar em enfermeiras, educadoras e faxineiras não remuneradas e em período integral, levadas por um “misterioso ‘instinto maternal’” que, chegado o momento, entrava automaticamente em ação.
No Japão do final do século XIX, o Estado introduziu uma “ideologia do amor romântico” que definia “a sequência ideal da vida de uma mulher” em termos semelhantes: “amor romântico (fazer a corte)” seguido de casamento, filho, do despertar de um “amor materno provedor” e da ocupação triunfante de um papel dessexualizado de “cuidadora”. Assim escreve a antropóloga Akiko Takeyama num livro recente sobre os clubes de hostesses de Tóquio, em que mulheres pagam para beber e conversar com homens bem-apessoados e atenciosos. Algumas donas de casa gastam dezenas ou centenas de milhares de ienes nesses clubes – fazem alguns bicos, economizam na mercearia ou extorquem o marido. Desse modo, tornam a experimentar algum romantismo, ausente desde que se tornaram cuidadoras e donas de casa em tempo integral e passaram a ser chamadas de “mãe” pelos maridos.
Em certo sentido, a ideia de alugar um parceiro, parente ou filho talvez seja menos estranha do que a noção de que cuidar dos filhos e da casa é manifestação de um amor romântico que não se pode comprar. Pode-se argumentar que interessa ao capitalismo patriarcal promover esta segunda ideia como universal; o psicanalista marxista Wilhelm Reich já dizia que, com as mulheres provendo trabalho doméstico e cuidados gratuitos, os capitalistas podiam pagar menos aos homens. Mas há outras iniquidades também. Gilman ressaltou que, quando o cuidado grátis se torna tarefa exclusiva de esposas e mães, as pessoas sem família não têm acesso a ele: “Somente os casados e seus parentes diretos têm algum direito ao conforto e à saúde.” Ela então propôs que o trabalho não remunerado que recai sobre cada dona de casa – a educação das crianças, o gerenciamento do trabalho doméstico, a preparação da comida e assim por diante – fosse repartido entre especialistas remunerados, e de ambos os gêneros. Mas o que muitas vezes acontece é que todas essas tarefas, em vez de se transformarem em profissões respeitadas e bem pagas, são gradativamente impostas a mulheres em desvantagem socioeconômica, que assim liberam as colegas mais privilegiadas para investir nas próprias carreiras.
Quando Yūichi Ishii fala em “corrigir injustiças”, ele parece estar dizendo o mesmo que Charlotte Perkins Gilman. “Todo ser humano precisa de um lar – o homem solteiro, o marido, o viúvo, a menina, a esposa ou a viúva”, ela escreveu. Graças à Family Romance, alguém como Kazushige Nishida, que perde a família, pode alugar esposa e filha e assim desfrutar dos confortos de um lar: panquecas variadas, vozes femininas dando-lhe as boas-vindas, a cutucada carinhosa nas costelas.
Nove anos atrás, Reiko, uma higienista dental de 30 e poucos anos, entrou em contato com a Family Romance para alugar um pai por meio período para sua filha de 10 anos, Mana, que, como muitas crianças de mães solteiras no Japão, estava sofrendo bullying na escola. Dentre as quatro opções que lhe foram oferecidas, Reiko escolheu o homem de voz mais suave. O pai de aluguel tem ido a sua casa com regularidade desde então. Mana, hoje com 19 anos, ainda não sabe que ele não é seu pai de verdade.
Matsumoto e eu fomos encontrar Reiko numa casa de chá lotada, perto da principal estação ferroviária de Tóquio. O encontro tinha sido marcado por Ishii, que disse que mais tarde se juntaria a nós. Reiko, hoje com 40 anos, vestia um suéter azul-marinho simples, uma echarpe xadrez e um maravilhoso casaco de lã, cuja cor de água-marinha parecia tirar o foco do restante do salão.
“É a primeira vez que conto minha história”, ela disse baixinho e olhando ao redor. Reiko explicou que tinha se casado com o pai de Mana, um homem chamado Inaba, aos 21 anos, depois de descobrir que estava grávida. Ele se tornou violento e ela se divorciou pouco depois de dar à luz. Explicou à filha que o casal havia tido um desentendimento fazia muito tempo, quando a menina ainda era bebê. A garota entendeu aquilo como se fosse ela a culpada pela partida do pai, e nada que Reiko lhe dizia era capaz de dissuadi-la.
Na escola, Mana era introspectiva, custava a fazer amigas. Aos 10 anos, evitava os colegas sempre que possível, seja passando o dia todo na enfermaria da escola ou ficando em casa, onde raras vezes saía do quarto, a não ser quando Reiko estava no trabalho. Depois de um período de três meses em que a menina evitou a escola, Reiko ligou para a Family Romance. No pedido que fez – ela trazia consigo uma cópia impressa do documento de sete páginas –, descreveu o pai que queria para sua menina. Independentemente do que Mana dissesse ou fizesse, ele deveria se mostrar gentil.
Quando o novo “Inaba” chegou para a primeira visita, Mana estava em seu quarto, como de costume, e se recusava a abrir a porta. Inaba abriu uma frestinha. Ele e Reiko puderam ver Mana sentada na cama com as cobertas sobre a cabeça. Depois de falar com ela, ainda na porta, Inaba se arriscou a entrar; sentou na cama, acariciou o braço da menina e pediu desculpa. Matsumoto parou enquanto traduzia essa parte, e vi que os olhos dela estavam marejados. Passado um momento, ela enfim conseguiu reproduzir o que Inaba havia dito a Mana: “Peço desculpa por não ter vindo ver você.”
Mana surgiu de debaixo das cobertas, mas não olhou nos olhos dele. Inaba, notando que numa parede havia um pôster da banda adolescente Arashi, contou a ela que já tinha feito figuração num vídeo do grupo. Foi então que Mana olhou para ele. Reiko se lembra de, no corredor, ter se perguntado quanto do que ele dizia era verdade.
Depois do que pareceram horas, Inaba e Mana desceram as escadas, e os três compartilharam de “um almoço esquisitíssimo”. Reiko foi arrumar a cozinha e deixou Inaba e Mana sozinhos. Eles encontraram o vídeo da banda no YouTube e, por não mais que um segundo, Inaba parecia de fato aparecer no filme. Ao final das quatro horas combinadas, ele se levantou e Mana, que parecera até alegre, ficou desconfiada. “Ah, você está indo embora – quem é você, então?”
Reiko decidiu contratar os serviços de Inaba com regularidade – cerca de duas vezes por mês, por períodos corridos de quatro ou oito horas, a um custo de 20 ou 40 mil ienes (cerca de 670 e 1 340 reais). Para arcar com a despesa, passou a gastar menos com comida e a comprar suas roupas em brechós. Uma noite, passados três ou quatro meses, ela chegou do trabalho e perguntou a Mana como tinha sido o dia dela; pela primeira vez em anos a menina respondeu e contou o que tinha visto na tevê. O rosto de Reiko se iluminou ao falar da transformação ocorrida quando a filha “por fim ficou sabendo que o pai se preocupava com ela”. “Mana se tornou uma criança normal, extrovertida e feliz.” Reiko começou a agendar os encontros com meses de antecedência, para festas de aniversário, reuniões de pais e mestres e até mesmo idas à Disneylândia de Tóquio ou a fontes termais nas proximidades. Para explicar por que nunca podiam passar uma noite juntos, Reiko inventou que Inaba tinha se casado de novo e agora possuía uma nova família.
Quando lhe perguntei se algum dia ela planejava contar a verdade à filha, os olhos dela se encheram de lágrimas. “Não, nunca vou poder contar”, disse, e então começou a rir. “Às vezes, gostaria que Inaba-san casasse comigo”, completou entre lágrimas e risos. “Não sei se deveria dizer isso, mas eu também fico feliz quando ele vem nos visitar. É só por um tempo determinado, mas sou capaz de ficar muito, muito feliz. Sinceramente, ele é um homem muito legal. Você vai ver, talvez.”
Haviam dito a Reiko que Inaba talvez se juntasse a nós na casa de chá. Quando dissemos que era Ishii que viria, ela comentou que não conhecia nenhum Ishii. “Acho que Inaba-san e Ishii-san podem ser a mesma pessoa”, Matsumoto aventou. Reiko pareceu cética, não via Inaba como o presidente da Family Romance. Por um tempo ficamos sentadas ali, mexendo o açúcar em nossa infusão de yuzu.
Então Ishii veio caminhando na direção da nossa mesa. Vestia um blazer sobre um suéter preto de gola rulê. “Inaba-san!”, Reiko exclamou.
Ishii se apresentou, dirigindo-se formalmente a Reiko. Ela reagiu com uma indignação brincalhona: em geral, falavam um com o outro como marido e mulher.
Agora, estavam sentados lado a lado, diante de mim e de Matsumoto, do outro lado da mesa, e não olhavam um para o outro. Havíamos combinado que, depois que ele chegasse, eu poderia entrevistar os dois juntos, mas eles operavam numa frequência tão diferente que, por um momento, pareceu impossível dirigir-lhes uma única frase.
“Você alguma vez se perguntou qual seria o verdadeiro nome de Inaba-san e o que ele faz?”, eu finalmente perguntei a Reiko.
Ela respondeu que não e que tampouco estava pensando nisso agora; era como se já soubesse. “Eu acho que ele não muda”, disse. “Age muito naturalmente. Vejo ele agora, assim, e é a mesma coisa.” Sorridente, Ishii protestou, lembrando a ela que hoje ela era sua cliente, e não sua mulher.
“Você está com uma coisinha aqui”, Reiko disse, apontando para o canto da boca de Ishii, que, num reflexo, voltou-se para um espelho e se limpou. Foi o primeiro de muitos momentos em que era visível que ele era às vezes Ishii, às vezes Inaba.
Então os dois começaram a lembrar do primeiro almoço com Mana. Reiko havia feito um monte de comida – camarões fritos, rosbife, sopa de milho, coisas de que Mana gostava –, e Ishii lembrou que havia decidido “comer como um pai”, o que, para ele, significava “sem nenhuma hesitação ou cerimônia”. Para demonstrar o que queria dizer, debruçou-se sobre a mesa, afastou um cotovelo e fez aquele movimento de quem enfia comida na boca. O efeito era patriarcal. Reiko riu, encantada. Os olhos dela encontraram os meus, e eu sorri de volta. Eu não estava fingindo – era um sorriso de verdade. Mas por que eu sorria?
Perguntei sobre a relação entre uma família real e uma família de aluguel. Ishii respondeu que, embora uma família alugada não fosse real, em certo sentido ela podia ser “mais que uma família”. Aquela ideia me pareceu um tanto confusa, mas Reiko disse que entendia perfeitamente. “Se eu não tivesse me divorciado e ainda estivesse casada, não acho que estaria rindo assim ou me sentindo tão feliz”, explicou. “A família de verdade não é necessariamente a melhor coisa do mundo.”
Passado algum tempo, ela se levantou para ir embora. Ao vestir o casaco, disse que se sentia bastante revigorada. Seu rosto parecia radiante, mais expressivo e vívido do que antes, ao nos encontrarmos. Vê-la partir me doeu um pouco. Eu podia sentir como ela o amava – os ombros largos dele no blazer escuro.
Ishii pediu licença para ir ao banheiro, e ficamos Matsumoto e eu conjecturando por que ele havia escolhido revelar sua identidade a Reiko em nossa presença. Talvez precisasse de alguém de fora para dar credibilidade àquilo que estava tentando dizer a ela: que comandava uma empresa grande, ambiciosa e importante, que seu relacionamento com ela não era real, que jamais se casariam. Quando Ishii voltou, perguntei se ele tinha dito a Reiko que as visitas de Inaba deveriam se encerrar.
Sim. Mana logo faria 20 anos. “Se ela casar e tiver filhos, eu vou ter netos”, ele disse. Netos eram uma coisa maravilhosa, claro, mas significariam mais pessoas no mundo para as quais seria necessário mentir – e isso sem falar no marido, nos sogros e nos cunhados de Mana. “Antes que isso aconteça, Reiko precisa contar a verdade a ela.”
“Reiko está de acordo?”, perguntei.
Ishii hesitou e disse: “Ela provavelmente sente uma enorme vontade de continuar como está.”
Ishii achava sinceramente que Mana compreenderia. Eu me perguntei se haveria algum modo de fazer com que a jovem encarasse aquilo como a história de uma mãe que a adorava e de um sujeito com certas restrições que, à sua maneira restrita, havia lhe proporcionado gentileza e estabilidade. É verdade que ele cobrava cerca de 200 reais por hora, mas o mundo estava cheio de pessoas incapazes de serem gentis e presentes, mesmo em troca de muito dinheiro. O mero fato de a gentileza envolver dinheiro a invalidava?
“Já me perguntaram por que não me caso”, disse Ishii. Embora solteiro, ele havia conhecido os pais de muitas noivas, beijado uma dezena delas, se desculpado por trair e até mesmo assistido a um parto. Estivera presente em entrevistas em escolas e em reuniões de pais e mestres, filmara jornadas esportivas e cerimônias de graduação, já passara dias na Disneylândia. Se algum dia for pai, seus sentimentos em relação aos filhos serão diferentes daqueles que experimentou no trabalho? “Hoje, me preocupo se não vou acabar apenas representando o papel de bom pai”, ele disse.
Às vezes Ishii sonha que conta a Mana que ele não é seu verdadeiro pai. “Como é sonho, ela aceita”, ele diz. “Aceita a verdade, mas então conclui: ‘Seja como for, você continua sendo meu pai.’”
“E você acredita que, de alguma maneira, você é mesmo o pai dela?”, perguntei.
Ishii cerrou os olhos, parecia cansado. “O que tudo isso prova é que, ainda que não sejamos uma família de fato, ainda que seja só uma família de aluguel, o modo como interagimos pode fazer dela uma espécie de família.”
Uma noite, de volta ao hotel, sentindo os efeitos do fuso horário e confusa com todas as histórias que andara ouvindo, decidi me permitir uma extravagância: uma massagem no quarto. Ao contrário dos encontros com o samurai emotivo e a mãe de aluguel, a sessão de massagem não poderia ser lançada como despesa de trabalho. Por outro lado, ponderei, eu tinha desmarcado uma sessão de terapia em Nova York que custava mais que a massagem, e portanto estava até economizando.
Duas horas depois, uma moça sorridente bateu à porta do quarto, esperou até que eu dissesse para entrar, tirou os sapatos e me deu um documento para assinar. O documento afirmava que eu não solicitara uma massagem sexual e que, se fosse homem, manteria entreaberta a porta do quarto. Tudo contribuía para a atmosfera onírica: a voz suave da moça, seu toque seguro, o fato de eu estar deitada na cama e o caráter compacto dos quartos de hotel em Tóquio, que a obrigava a mover coisas para um lado e outro a fim de abrir espaço para ficar de pé. Em algum momento, percebi que ela estava ajoelhada a meu lado na cama. Que bizarro – de alguma forma, nós duas, juntas na cama daquele jeito, era normal. “Seus ombros estão uma pedra!”, ela disse, buscando relaxar meus músculos com os dedos. Senti-me plena de amor e gratidão e pensei que o fato de eu estar pagando por aquilo, que poderia ser motivo de desconforto, na realidade era uma fonte de alegria e alívio, porque significava que eu não tinha de pensar em coisa nenhuma. Podia simplesmente relaxar. A sensação era de amor incondicional – o tipo de amor que você não obtém das pessoas, e tampouco pede a elas, porque também elas têm necessidades, o que implica um constante revezamento na satisfação das necessidades de um e outro. Não tive de fazer uma massagem nela nem ouvir seus problemas, porque havia lhe dado dinheiro, com o qual ela poderia fazer o que quisesse: pagar contas, comprar um casaco cor de água-marinha ou mesmo contratar alguém para lhe fazer uma massagem ou para ouvi-la falar de seus problemas. Essa hora durante a qual ela me deu atenção e eu não lhe dediquei atenção nenhuma não iria ser registrada num livro-caixa no qual ela poderia, ao longo dos anos, acumular ressentimentos contra mim. Eu não tinha de me sentir culpada: estava pagando.
No início, imaginava que pagar aluguel de certo modo diminuía a ideia do amor incondicional. Mas agora eu me pegava refletindo se, afinal, era de fato possível obter amor incondicional sem pagar por ele. As perguntas que eu vinha me fazendo sobre o verdadeiro sentimento de Ishii por Reiko e pela filha dela faziam mais sentido quando eu pensava nelas nesses termos. Uma pessoa pode fazer profissionalmente – por um determinado período de tempo, em troca de dinheiro e reconhecimento – coisas que não pode fazer de graça para sempre. Eu sabia que Ishii tinha dado duro para interpretar “o pai gentil” – assistira a filmes de famílias para aprender como caminhar, falar e comer. E eu também havia lido sobre um rapaz que trabalhava num clube de hostesses e estudava romances de amor para ser capaz de antever e atender todas as necessidades das clientes, não lhe restando tempo para a vida pessoal. Segundo ele, “a ideia do romance ideal que as mulheres têm demanda trabalho duro, o que é quase impossível no mundo real”. Ele disse que jamais seria capaz de trabalhar tanto para uma namorada de verdade.
Pensei na minha sessão perdida de terapia e em Kenji Kameguchi, um professor de psicologia que conheci e que, nos últimos trinta anos, vem tentando popularizar a terapia familiar num país estoico, avesso a conflitos, como o Japão, onde a psicoterapia ainda é estigmatizada. Na opinião dele, os parentes de aluguel estavam, de uma maneira leiga, cumprindo algumas das funções típicas de modalidades de terapia em grupo, como o psicodrama, no qual os pacientes representam e improvisam situações passadas ou processos mentais uns dos outros. A recriação dramática pode ajudar as pessoas de uma maneira que uma conversa não logra fazer, porque nessa recriação, mesmo que não consigamos contar a alguém qual é nosso problema – porque ele é terrível demais para ser descrito, porque não encontramos as palavras certas ou porque não sabemos qual é esse problema –, ainda poderemos dramatizá-lo com outra pessoa. Sob esse prisma, a transferência, elemento central da psicoterapia freudiana, pode ser considerada um processo em que o terapeuta se torna o parente de aluguel do paciente – nas palavras de Freud, “a reencarnação – de alguém importante da sua infância, do seu passado”.
E, pensando na transferência, eu me peguei perguntando a mim mesma quem a massagista estava substituindo. O samurai, que não tinha conseguido me fazer chorar? O psicoterapeuta, que eu não tinha podido ver naquela semana? Meus pais, cuja relação com meu eu infantil eu tentara reprisar ao contratar o terapeuta? Tomada por aquela sensação de estar caindo, percebi: eram tartarugas até lá embaixo.[1] Meu pensamento seguinte veio sob a forma de uma pergunta: era possível alugar uma tartaruga em Tóquio? A massagista foi embora, e eu fui pesquisar. Dois cliques mais tarde, li sobre a Casa de Chá Subtropical de Yokohama, onde, pelo preço de um bule de chá, os clientes podem manusear uma variedade de tartarugas terrestres. O artigo vinha acompanhado da foto de uma tartaruga-leopardo subindo numa tartaruga maior, uma tartaruga-de-esporas-africana, que a primeira parecia ter confundido com o mundo.
[1] A expressão “tartarugas até lá embaixo” (em inglês, “turtles all the way down”) é usada desde o século XIX para falar da infinitude do Universo. Baseia-se na ideia mitológica de que o mundo é sustentado por uma tartaruga, que, por sua vez, seria sustentada por outra, e assim por diante. A frase foi usada por Stephen Hawking no livro Uma Breve História do Tempo, quando ele conta que um cientista, após descrever como a Terra orbita em volta do Sol, e o Sol, em torno de um conjunto de estrelas, foi interpelado por uma velhinha: “O que o senhor disse é um disparate. O mundo não passa de um prato achatado equilibrado nas costas de uma tartaruga gigante.” O cientista então perguntou a ela: “E onde se apoia a tartaruga?” E a velhinha exclamou: “Você é um jovem muito inteligente, mas são tudo tartarugas até lá embaixo!” A expressão também serviu de título a um dos livros do escritor John Green.