"Vejam o impressionante repertório abaixo, e tentem adivinhar qual pianista terá gravado todas estas obras no período aproximado dos último 15 anos"
Fantasia para piano
Em 2005, um crítico americano escreveu que Joyce Hatto era a maior pianista viva de quem ninguém ouvira falar. Em pouco tempo, a senhora de mais de 70 anos se tornou um fenômeno. Até que alguém resolveu investigar
Mark Singer | Edição 17, Fevereiro 2008
No verão de 1989, em Royston, na Inglaterra, um homem chamado William H. Barrington-Coupe recebeu com muita alegria um visitante da Alemanha. Era Ernst A. Lumpe, professor secundário, fervoroso amante da música e colecionador de discos. Por alguns anos, os dois homens vinham mantendo uma correspondência que consistia principalmente em respostas de Barrington-Coupe, um ex-agente de músicos clássicos e produtor fonográfico peripatético, a perguntas de Lumpe sobre a autenticidade de vários LPs antigos.
Durante as décadas de 50 e 60, muitas companhias fonográficas na Inglaterra e nos EUA tinham a prática – questionável, mas amplamente tolerada – de reapresentar ao mercado gravações de artistas consagrados como obra de instrumentistas fictícios, vendendo os discos com grandes descontos. Barrington-Coupe, conhecido entre os íntimos como Barry, trabalhou para vários selos que ajudaram a consagrar essa modalidade de lançamento – o LP clássico em “superoferta”. Esses discos, vendidos no atacado ao preço unitário de mais ou menos 1 dólar, eram uma rica fonte de pseudônimos interessantes – Paul Procopolis, Giuseppe Parolini, Filarmônica Pro Arte de Cincinnati, Sinfônica Estatal de Munique – e Barry leva a fama de ter cunhado o mais espirituoso de todos: Wilhelm Havagesse, como regente de Scheherazade, de Rimsky-Korsakov, executada pela espúria Orquestra Municipal de Zurique [Havagesse, lido como um nome alemão, soa exatamente como have a guess, “adivinhe”, em inglês].
Entre os 15 mil LPs de Lumpe, muitos dos quais ele tinha comprado de segunda mão, havia cerca de 500 de origem nebulosa. Colecionador meticuloso, ele queria saber quais eram os verdadeiros artistas por trás das falsas identidades. Interessava-se especialmente por um pianista italiano, Sergio Fiorentino, e vinha compilando a sua discografia. Muitas das gravações de Fiorentino tinham sido lançadas pelo principal selo de Barry, Concert Artist, e muitas vezes o seu trabalho tinha sido apropriado e relançado sob pseudônimo. Lumpe dirigira-se a Barry pedindo-lhe ajuda para separar a ficção dos fatos.
Quando finalmente os dois homens se encontraram, Barry não tinha mais uma presença visível no mundo da música clássica, nem sua mulher, Joyce Hatto, uma talentosa pianista que só conseguira conquistar um reconhecimento modesto como concertista, mas não tocava em público havia mais de dez anos. O único disco de Joyce Hatto que Lumpe possuía era um lançamento de 1970, contendo as Variações Sinfônicas de Arnold Bax, um compositor britânico pouco conhecido do século XX.
Segundo o catálogo da Concert Artist, o objetivo primordial da empresa era servir de “caixa de ressonância para os jovens talentos britânicos infelizmente ignorados” pelas grandes companhias fonográficas. Mas Barry produzira poucas gravações novas desde o início dos anos 70. O comércio que ele tocava era fundamentalmente um negócio doméstico, domiciliado em uma casa de tijolinhos vermelhos, de uma rua sossegada, na periferia, ao norte de Londres. Seu equipamento de edição de áudio ficava em um quarto do piso superior. No térreo, na sala de música guarnecida com um par de pianos de cauda, Joyce dava aulas particulares; também lecionava em uma escola para meninas perto de casa.
Barry ainda possuía um ouvido criterioso e um vasto conhecimento de música clássica, e respondeu às perguntas de Lumpe com uma especificidade e uma franqueza admiráveis. Embora estivesse em recuperação de uma cirurgia cardíaca recente, Barry era de uma loquacidade prodigiosa. E a conversa dos dois durou quase um dia inteiro. Já perto do final, Joyce Hatto juntou-se a eles. Mulher simples e esguia de 60 e poucos anos, com olhos escuros e sobrancelhas intensas, um belo queixo e um sorriso que abria covinhas, ela fez algumas observações sobre Fiorentino, mas falava tão depressa que Lumpe teve dificuldade para entender o que dizia.
Num momento em que ela se ausentou da sala, Barry propôs tocar um trecho de uma gravação recente de Joyce Hatto: o Concerto nº 3 para Piano e Orquestra, de Rachmaninoff. Pôs um cassete num toca-fitas e escutaram o seu solo vertiginoso (a versão mais longa das duas escritas por Rachmaninoff). Lumpe manifestou a sua admiração, ao que Barry respondeu: “Eu te enganei um pouco. Na verdade não é Joyce, mas Andrei Gavrilov” – que fora vencedor do Concurso Internacional Tchaikovsky. Barry sorriu. “Mas agora é Joyce”, disse ele, e colocou outro cassete, uma interpretação diferente do mesmo solo. “Foi só uma piada”, pensou Lumpe, “de modo nenhum um teste ou uma pegada.”
Depois desse primeiro encontro, Lumpe permaneceu em contato com Barry, cujas cartas muitas vezes continham revelações do mundo da música clássica ou boletins sobre a sua saúde ou a de Joyce. Barry encontrava discos de 78 rotações e LPs raros para a coleção de Lumpe, perguntava sobre os filhos dele e enviava-lhe sementes das flores do seu jardim. Entre os discos que remeteu estavam gravações de Liszt e Chopin, que Joyce Hatto tinha feito muitos anos antes, ao vivo. Várias semanas depois da sua viagem a Royston, Lumpe recebeu pelo correio uma fita contendo um arranjo para piano da Sinfonia nº 1, de Edward Elgar – de um recital de Joyce, contava Barry, ocorrido pouco antes em Cambridge.
Uma novidade inesperada: afinal, Joyce Hatto não se aposentara como concertista anos antes? Um bilhete de agradecimento a Barry pedia mais detalhes: a outra peça do concerto dela era a transcrição pianística de Franz Liszt para a Quinta Sinfonia, de Beethoven, que, infelizmente, “não foi gravada devido a alguma estupidez do técnico de som da universidade”. Mas Barry tinha operado ele próprio o gravador a tempo de capturar o bis de Joyce: a transcrição de Liszt para a abertura da ópera Guilherme Tell, de Gioacchino Rossini. Por algum motivo, não enviara cópia dessa gravação.
Na qualidade de um onívoro do piano, Lumpe recebera com alegria o advento de grupos de discussão na internet, e passara a contribuir com freqüência para grupos do Yahoo e um grupo de notícias da Usenet/Google (groups.google.com/group/rec.music.classical.recordings), em que os participantes tratavam de uma miscelânea de assuntos relacionados com a música e o teor das conversas ia de meticulosamente informativo a inflamadamente belicoso. No grupo comparativamente mais ameno do Yahoo chamado ThePiano, uma das diversões mais populares era a brincadeira da audição às cegas, em que alguém fazia o upload de um trecho musical não identificado e os membros comentavam a qualidade do desempenho. Em novembro de 2002, Lumpe propôs um novo tipo de enigma: “Vejam a impressionante lista abaixo, e tentem adivinhar qual pianista terá gravado todas estas obras nos últimos quinze anos, aproximadamente”. A lista levava a imaginar um intérprete de excepcional abrangência, profundidade e energia: Bach (Variações Goldberg), Beethoven (todos os concertos de piano, todas as sonatas, todas as Bagatelles), Brahms (os concertos para piano), Chopin (todas as obras para piano solo e para piano e orquestra, todos os noturnos, mazurcas e polonaises), Schubert (todas as sonatas para piano), Liszt (todas etc.), muitas obras de Rachmaninoff e Scarlatti, Mendelssohn, Mozart, Mussorgsky, Saint-Saëns, Schumann, Tchaikovsky.
Ninguém acertou, e Lumpe revelou a resposta: Joyce Hatto. Sua pergunta tinha sido capciosa. Todas aquelas obras foram gravadas, explicou ele, mas poucas acabaram lançadas comercialmente. Nos anos recentes, ao que tudo indicava, a Concert Artist e Joyce Hatto vinham se dedicando discretamente a um empreendimento de grande ambição. Tendo Barry como produtor, Joyce se dedicara à gravação de um repertório extraordinário. Era uma façanha aparentemente pouco provável para uma mulher que já passara dos 70 anos, mais estranha ainda diante do pouco esforço que Barry investira na comercialização das gravações.
Os participantes do grupo do Yahoo quiseram saber detalhes sobre Joyce Hatto, uma artista que não era mencionada sequer nos livros de referência mais conhecidos. Esses textos costumam ser arbitrários, respondeu Lumpe, e Joyce Hatto era uma artista que “trabalhava discretamente e tinha mais fama fora do seu país”. Usando como referência o material de divulgação da Concert Artist, citou uma série de maestros e compositores com quem ela tocara (lista na qual figuravam Benjamin Britten e Ralph Vaughan Williams). Depois de uma série de recitais em Londres, contou Lumpe, ela fora “descrita pelo Daily Telegraph como ‘A Indomável Campeã de Liszt'”. Outro crítico observara que, “provavelmente, desde [Ferrucio] Busoni, nenhum pianista apresentou um repertório tão vasto, rico e profundo”.
Em seguida, Lumpe fez o upload de um trecho de uma gravação que a Concert Artist tinha lançado em 2002. A transcrição de Rachmaninoff para o scherzo de Sonho de uma Noite de Verão, de Mendelssohn. Pelo menos um dos membros do grupo, Tom Deacon, sentiu-se estimulado a comprar um exemplar do CD. Em mensagem subseqüente, Deacon afirmava ter familiaridade com quase todas as interpretações consagradas daquela obra – fora o produtor de uma coleção de 200 CDs, chamada Grandes Pianistas do Século XX – e declarava que a versão de Joyce Hatto era superior. “É mágica: leve como uma pluma, fluente, colorida, com as texturas límpidas como a água de uma nascente de montanha, com grande riqueza tonal, vivacidade e brilho rítmico. Um sonho.”
Na véspera do Natal, Lumpe fez o upload da gravação de uma sonata de Scarlatti por Joyce Hatto, que também despertou elogios irrestritos. Alguns dias mais tarde, Deacon anunciou que, depois da sua mensagem sobre o Sonho de uma Noite de Verão, tinha recebido “um bilhete muito gentil da pianista”. (E, portanto, Hatto ou Barry, ou os dois, vinha acompanhando aquela conversa pela internet.) Joyce disse a Deacon que tinha estudado aquela obra “com o próprio Benno Moiseiwitsch” – no seu tempo o maior intérprete de Rachmaninoff -, que ela “conhecia bem”. E, continua Deacon, “a influência dele é clara. E o piano que ela usou na gravação foi o mesmo em que Rachmaninoff tocou na Grã-Bretanha quando fez a sua turnê pelo país”. Ao final de 2002, Deacon fez um apanhado das realizações de ThePiano ao longo do ano, e entoou: “Conseguimos ‘descobrir’ uma pianista de 74 anos, chamada Joyce Hatto, que toca tudo!”
Nos meses que se seguiram, a discussão sobre Joyce Hatto extravasou para outros grupos do Yahoo. Lumpe divulgou informações biográficas recolhidas no site da gravadora Concert Artist e acrescentou as suas próprias observações. Por coincidência, uma série de novos CDs de Joyce Hatto chegava finalmente ao mercado. Em fevereiro de 2003, a MusicWeb International, uma publicação on-line, trazia uma resenha positiva sobre um disco de compilação de Brahms, um dos primeiros dos cerca de setenta lançamentos de discos de Joyce Hatto que a revista eletrônica acompanhou nos quatro anos seguintes. O resenhista apresentava uma biografia rudimentar dela e, um mês mais tarde, a MusicWeb publicava a transcrição de uma extensa entrevista que ela teria concedido a Burnett James, um crítico de música britânico, morto em 1987. Não havia indicação de onde a entrevista fora originalmente publicada – mas, ainda assim, ela ajudava a dar substância à imagem da artista.
“Menina esforçada” (nas suas palavras) e “intérprete inata” (conforme contou a própria Joyce, nas palavras do compositor britânico sir Granville Bantock que, segundo ela, a tinha ouvido tocar aos 7 anos de idade), Joyce era filha única e seu primeiro professor foi o próprio pai. Ele foi um pianista competente, e tão fascinado por Rachmaninoff, disse ela, que a única vez que o vira chorar foi na morte do compositor. Seus pais a estimularam instalando um piano de cauda Blüthner em casa – “Eu passava cada hora e cada minuto disponíveis estudando. Ao fim de três anos, já tinha gasto as teclas de marfim, e só tinha 10 anos de idade.” Bach era parte integrante do seu regime diário, e ela desenvolveu uma afinidade especial por Chopin e Liszt, tendo interpretado as obras deles na Polônia, no auge da Guerra Fria, ao ser convidada a participar de uma delegação oficial de mulheres inglesas. Fez outras viagens à Polônia, bem como à Rússia, em turnês de concertos.
Barry e Joyce adoravam manter correspondência. Intuitivamente, o casal reconhecia aquela onda em torno do nome de Joyce Hatto como um fenômeno viral, que tinha a possibilidade de influenciar. Num bilhete que enviou a Lumpe junto com um dos seus CDs, Joyce escreveu: “A Ernst – meu divulgador particular na internet”. Os e-mails e cartas que emanavam de Royston sempre apresentavam uma combinação de formalidade e falsa modéstia. Joyce agradecia aos resenhistas pela sua percepção, contemplava-os com pepitas de filosofia (“Tantos pianistas conseguem estragar uma linha melódica linda acrescentando ornamentos que parecem se grudar à obra como cimento”) e ainda apresentava reminiscências de recitais de décadas passadas. Suas digressões tinham uma música própria, pontuada pelo tinir de nomes que inseria cuidadosamente no ponto certo dos relatos (“Também fiz amizade com Annie Fischer”, “tive a oportunidade de tocar muitas dessas sonatas para Clara Haskil”, “Rachmaninoff transmitiu algumas das suas idéias a Nikolai
Medtner, que me deixou copiá-las”).
Para o interesse cada vez maior em torno de Joyce Hatto, foi fundamental o espanto que despertava aquela sua incansável produtividade num momento em que já deveria estar ingressando na vida de aposentada. E a sua façanha adquiriu uma aura mais notável depois que Richard Dyer, a essa altura o principal crítico de música do The Boston Globe, entrevistou-a no verão de 2005 e escreveu um artigo que começava com as palavras: “Joyce Hatto deve ser a maior pianista viva de quem ninguém jamais ouvira falar”. O parágrafo seguinte continha uma revelação surpreendente: “Hatto, hoje com 76 anos, não toca em público há mais de 25 devido a uma prolongada batalha contra o câncer. Uma vez lhe disseram que ‘não era educado exibir a doença’ e, depois que um crítico fez comentários desfavoráveis sobre a sua aparência, ela decidiu não dar mais concertos”.
Dyer descrevia como tinha encontrado o site da Concert Artist mais ou menos por acaso, deparando-se com a lista de CDs de Joyce Hatto (que já eram mais de cem). Entrou em contato com Barrington-Coupe, a quem perguntou: “Quem é ela?” Barry lhe mandou um CD com interpretações de Joyce que o deixou encantado. Quando Dyer escreveu o seu artigo, tinha escutado mais ou menos um terço dos CDs de Joyce Hatto. “São todos excelentes, e os melhores revelam a arte de uma grande intérprete”, disse ele. Boston fica muito longe de Royston, e Dyer contentou-se com uma entrevista telefônica. “A pianista tem uma voz aguda e infantil, e fala com a velocidade de um dos seus estudos de Liszt”, disse ele sobre Joyce. “É capaz de citar um soneto de Shakespeare e uma frase de Muhammad Ali (‘Se me derrubarem, eu logo me levanto’) no mesmo parágrafo.” E Barry disse a Dyer: “Ela não quer tocar em público porque nunca sabe quando as dores vão começar, ou parar, e se recusa a tomar muitos remédios… Acredito que a doença influenciou seu desempenho; ela vai direto ao centro da música, ao que está por trás dela”.
A doença de Joyce Hatto, um câncer do ovário, fornecia uma resposta mais ou menos satisfatória para quem se perguntava onde ela tinha andado aqueles anos todos, conferindo, além disso, um brilho adicional ao mito do seu notável renascimento. Por outro lado, esse verniz sentimental estimulou certa reação desfavorável, embora contida, em algumas mensagens que circulavam nas listas do Yahoo e da Usenet, escritas por aficionados com vagas suspeitas despertadas pelo fato de nenhum crítico importante jamais ter escrito sobre ela. Numa resenha postada na internet sobre os prelúdios de Debussy, tocados por Joyce Hatto, o crítico Christopher Howell, da MusicWeb, reconhece o problema: “Sei que está ficando um pouco embaraçoso este site divulgar resenhas após resenhas entusiasmadas com as gravações de Joyce Hatto (e não só minhas)… Quase chego a ter vontade de que ela faça um disco bem ruim, para eu poder mostrar que sei ouvir. Mas até agora são todos bons…”
A s primeiras perguntas mais insistentes sobre Joyce Hatto começaram no verão e no outono de 2005, em mensagens postadas na internet por Peter Lemken, um consultor de negócios alemão. Como alguém – ainda mais uma septuagenária enferma – conseguia gravar uma obra tão esplêndida e volumosa? Lemken também queria saber quem era o maestro René Köhler e a National Philharmonic-Symphony Orchestra – que figuravam nas gravações de muitos concertos com Joyce Hatto.
Uma colorida minibiografia de Köhler (fonte: Barry) logo apareceu na internet. Tratava-se de um judeu franco-teuto-polonês, sobrevivente de Treblinka, com a má sorte de, logo em seguida, haver passado 25 anos no Gulag soviético. Mas nenhum livro de referência trazia menção ao maestro ou à orquestra. Se Köhler e a National Philharmonic-Symphony Orchestra eram fantasmas, o que pensar de Joyce Hatto? Essa pergunta cabulosa transformou-se no tópico de mais de um amplo debate pela internet, e o que se via, acima da manifestação de dúvida quanto à existência de Hatto, era a obstinação dos puristas partidários das gravações ao vivo, afirmando que o desempenho no estúdio não merece confiança como termômetro para as verdadeiras qualidades de um músico, por causa das manipulações facilitadas pela tecnologia. Ainda assim, predominavam claramente as opiniões favoráveis a Joyce Hatto. Tendo em vista o seu precário estado de saúde, os admiradores achavam ofensiva a insistente insensibilidade de Lemken.
E esse ceticismo ficou parecendo ainda mais impertinente depois que duas testemunhas respeitáveis vieram assegurar que Joyce Hatto era autêntica. Ates Orga, crítico e historiador musical, fora o autor dos textos para os programas de alguns dos recitais londrinos da pianista nos anos 70. “O estilo dela me parecia emocional e verdadeiro, aventuroso mas aberto às possibilidades da finesse“, lembrou ele mais tarde. Entrevistou Joyce Hatto num hotel de Cambridge, em fevereiro de 2005, e em 2006 a MusicWeb publicou o perfil da artista, que ele escreveu, juntamente com resenhas críticas de algumas das suas gravações: “Mesmo quando algumas das suas decisões, suas urgências ocasionais, não agradam ao meu gosto, existe uma justeza, uma honestidade, na maneira como toca nas suas gravações… Sinto-me em boas mãos…”
No verão de 2005, Jeremy Nicholas, ator e crítico, entrevistara Joyce Hatto e Barry no mesmo hotel de Cambridge, e saíra de lá com impressões quase idênticas às de Orga. Sentiu uma “conexão imediata” com o casal. Barry, a seu ver, tinha “um conhecimento fantástico sobre pianistas, um bom gosto fantástico”. Enquanto conversavam, porém, com um gravador ligado, Nicholas percebeu que teria problemas para escrever sobre Joyce, porque ela não tinha a menor vocação para a conversa linear. “Era meio amalucada, deliciosamente distraída, com um espírito que pulava de um assunto para outro”, contou-me ele. “Eu tinha preparado uma lista de perguntas, tais como: ‘O que o seu pai fazia? Os seus pais gostavam de música, tinham dinheiro? Afinal, quando foi a sua estréia?’ Perguntas bem simples e diretas, mas depois de umas poucas frases ela se perdia em reminiscências.”
Nicholas, biógrafo do pianista e compositor Leopold Godowsky (1870-1938) – cujos Estudos baseados nos Études de Chopin estão entre as peças para piano mais difíceis de todos os tempos – , ficara perplexo ao descobrir que Joyce Hatto tinha gravado integralmente os 53 Estudos. Só três outros pianistas, todos homens, tinham feito o mesmo. Antes de conhecer Joyce, Nicholas havia escutado as gravações dela dos Études de Chopin, o ponto de partida para as variações de Godowsky, e achou que eram “as melhores que eu já tinha ouvido”. E teve uma reação comparável diante da sua interpretação de Godowsky.
O encontro de Nicholas com Joyce Hatto resultou em dois artigos – um na International Piano de janeiro de 2006 e outro na Gramophone, dois meses mais tarde. Um artigo publicado na Gramophone (“A maior autoridade mundial em música clássica desde 1923”) só podia chamar atenção, especialmente quando Nicholas declarava: “Não hesito em dizer que Joyce Hatto é uma das maiores pianistas que já ouvi”. Ele não se limitou a apresentar Joyce a uma platéia mais vasta; na verdade, chamou a atenção dos editores da Gramophone, que nos números subseqüentes da revista publicaram resenhas sempre favoráveis e às vezes entusiasmadas sobre os CDs dela. Na medida em que, como assinalou Nicholas, ela ainda tinha “outros vinte (!) em preparação”, o fascínio por Hatto parecia destinado a crescer muito e perdurar no futuro.
Joyce Hatto morreu de câncer no dia 29 de junho de 2006, aos 77 anos de idade. Os obituários e tributos reciclaram alguns dos superlativos mais notáveis e ainda introduziram alguns novos (“uma pianista tão completa quanto qualquer um da história do disco”, “um tesouro nacional”). Seu funeral ocorreu onze dias mais tarde, em um crematório de Cambridge, e foi incrementado com uma cerimônia laica orquestrada, em todos os sentidos, por Barrington-Coupe. Os cerca de vinte enlutados presentes ouviram várias peças – Bach, Brahms, Chopin, Debussy – de um CD sampler de Joyce Hatto lançado pela Concert Artist poucos meses antes. A humildade foi o tema das poucas palavras que Barry tinha preparado; começava com um pedido retórico de desculpas à mulher pela ocorrência daquela solenidade, contrariando seu desejo expresso de evitar gestos solenes de despedida “em sua última apresentação em público”. Como disse Barry, “nunca encontraremos a ostentação, nenhum grande momento ‘de Joyce Hatto’, mas só a música. Para ela, ‘Joyce Hatto’ era o que havia de menos importante”.
Um dia antes do funeral de Hatto, o geralmente contido Ernst Lumpe enfrentou Peter Lemken numa troca de mensagens do grupo rec.music.classical.recordings. O tópico em debate era a comparação entre interpretações ao vivo e em estúdio, e Lemken, sempre cético, perguntou se alguma vez Hatto gravara uma apresentação ao vivo. A resposta de Lumpe, escrita em alemão, basicamente taxava Lemken de atrevido. Várias gravações amadoras de concertos de Joyce Hatto, disse ele, circulavam entre particulares, e ele próprio possuía a gravação da “Sinfonia nº 1, de Elgar, na transcrição para piano a duas mãos de Sigfrid Karg-Elert, gravada em Cambridge em 1989″ – a fita inédita que Barry lhe mandara depois da sua visita a Royston. Essa informação bastava para Lemken? Nein. Se não tinha sido lançada em disco, a gravação não contava.
Então, em 22 de janeiro de 2007, um participante do grupo mencionado, que se identificava como Seth Horus – um pseudônimo que remetia à mitologia do antigo Egito – , enviou a seguinte mensagem: “Depois de ouvir falar muito de Joyce Hatto, comecei a comprar algumas das suas gravações. Embora nada do que eu tenha ouvido seja ruim (na verdade, estou satisfeito de ter comprado esses CDs), percebi uma coisa muito estranha: a pianista que toca as sonatas de Mozart não pode ser a mesma que toca Prokofiev ou a mesma que toca Albéniz. Estou com a nítida sensação de ter sido vítima de algum embuste. Mais alguém aqui sente a mesma coisa? O que é, de fato, que se sabe sobre a artista e as circunstâncias das gravações? Andei procurando na internet e só encontro uma espécie de história oficial, nenhuma versão independente”.
Boa parte da discussão que se seguiu foi o equivalente intelectual de um bate-boca generalizado, uma troca de insultos eruditos entre os defensores mais fervorosos de Joyce Hatto de um lado e, do outro, Lemken e outros agnósticos. A altercação se estendeu por vários dias, e entre os assistentes estavam não só os amadores de costume (bem como, presumivelmente, Barrington-Coupe), mas também um grupo de estudiosos do Centro de História e Análise de Gravações Musicais – ou CHARM, sigla de Centre for the History and Analysis of Recorded Music, da Universidade de Londres. Por mais de um ano, um musicólogo chamado Nicholas Cook e um bolsista de pós-doutorado, Craig Sapp, vinham conduzindo um estudo comparativo de interpretações de algumas das mazurcas de Chopin, com um programa de computador que aponta eventuais semelhanças entre gravações.
Embora Cook e Sapp nunca tivessem ouvido falar de Joyce Hatto, decidiram incluí-la no estudo porque ela, juntamente com uns trinta outros pianistas, tinha gravado todas as mazurcas. Incluíram no banco de dados duas faixas do seu CD Chopin: The Mazurkas, o qual, segundo o folheto da Concert Artist que acompanhava o disco, fora gravado em abril de 1997 e março de 2004. A análise digital revelou que a versão de Hatto e uma gravação de 1988, feita por Eugen Indjic, um solista nascido em Belgrado [Iugoslávia], eram idênticas. Como Cook declarou mais tarde à BBC, sua reação inicial foi concluir que, “em princípio, uma dessas duas pessoas não existe”. A pesquisa no Google confirmou que os dois pianistas eram demonstravelmente reais – Hatto tinha existido, e Indjic tocara recentemente na Polônia. Diante disso, a conclusão que restava era de que um dos dois era plagiador. Parecia óbvio quem era o culpado, mas Cook e Sapp não se apressaram em divulgar o achado. Entre outros motivos, de acordo com as leis inglesas que tratam da difamação, caberia a eles o ônus da prova de que uma fraude tinha ocorrido.
Cook e Sapp pensaram em fazer contato com um editor da Gramophone. Porém, passaram algumas semanas escrevendo o esboço de um artigo intitulado “Mera coincidência? Joyce Hatto e as mazurcas de Chopin”, para divulgar em círculos restritos. Ainda estavam decidindo o que fazer quando, em meados de fevereiro, a corroboração materializou-se do outro lado do oceano. No dia 12 de fevereiro, em Mount Vernon, estado de Nova York, Brian Ventura recebeu um pacote que vinha esperando fazia um bom tempo. Pianista ocasional, Ventura trabalhava em Wall Street e todo dia levava cinqüenta minutos para ir e voltar do trabalho, tempo que geralmente passava escutando o seu iPod. Ouvira falar de Joyce Hatto pouco antes da sua morte, e nos meses seguintes lera atentamente as resenhas dos seus discos, até escolher quais deles desejava comprar. Fazer uma encomenda foi mais complicado do que ele esperava, mas ele acabou estabelecendo uma correspondência amigável com Barrington-Coupe. Passaram-se semanas, nada chegava pelo correio, e ele escreveu para Barry, que explicou que a remessa atrasara porque um dos discos escolhidos estava esgotado. Ventura então pediu a Barry que trocasse o disco que faltava pelos Estudos Transcendentais, de Liszt.
E foi justamente o disco dos Estudos o primeiro que abriu. Pôs o CD no drive do seu computador e, através do programa iTunes, da Apple, conectou-se ao Gracenote, um banco de dados de CDs, acessível pela internet. Segundo esse banco de dados que identifica os CDs pela duração de cada uma das suas faixas, o CD era dos Estudos Transcendentais, mas tocado pelo pianista húngaro chamado László Simon. László Simon? Ventura pesou as possibilidades: podia ser um erro do banco de dados, ou então alguém chamado László Simon tinha gravado as mesmas peças musicais em faixas com precisamente a mesma duração. Quando ele começou a escutar as faixas a caminho do trabalho na manhã seguinte, sentiu “desde a primeira faixa que era uma gravação notável”. No seu computador do trabalho, acessou a Amazon.com e encontrou a oferta do disco de Simon, contendo amostras de um minuto da maioria das faixas.
“Comecei a escutar”, ele se lembra, “alternando entre o iPod e as amostras da Amazon à procura de idiossincrasias de interpretação – mudanças repentinas na dinâmica ou nos ornamentos, ou uma passagem mais alentada onde o pianista tem mais margem para uma interpretação pessoal. Nas peças mais lentas, é mais fácil ouvir as sutilezas. Fiquei 95% convencido de que a maioria das faixas era idêntica. E não sabia o que fazer. Se era Joyce Hatto quem tinha copiado, uma parte minha não queria que isso viesse a público. Toda a sua história era tão bonita que qualquer um iria preferir que fosse a verdadeira.”
Em 72 horas, porém, a verdade não só foi revelada, como praticamente explodiu. Ventura mandou um e-mail a Jed Distler, compositor e resenhista que escrevia para a Gramophone e publicara várias resenhas elogiosas a Joyce Hatto na revista virtual ClassicsToday. Mais tarde, Distler escreveu: “Depois de uma comparação meticulosa entre as interpretações de Simon e as de Joyce Hatto, pareceu-me que dez das doze faixas apresentavam uma semelhança notável em termos de andamento, acentos, dinâmica, equilíbrio etc.”. Em seguida, quando examinou um CD com o segundo e o terceiro concertos para piano de Rachmaninoff – atribuídos a Joyce Hatto com a misteriosa National Philharmonic-Symphony Orchestra, regida pelo igualmente misterioso René Köhler – o Gracenote identificou o solista como Yefim Bronfman, acompanhado pela Philharmonia Orchestra, regida por Esa-Pekka Salonen. Distler comunicou suas descobertas a Ventura via e-mail, com cópias para os editores da Gramophone e da ClassicsToday, para Jeremy Nicholas e dois outros críticos da Gramophone que defendiam a causa de Joyce Hatto. E escreveu também para Barrington-Coupe – que conhecera em Londres no outono do ano anterior. Barry “apressou-se a responder, alegando não saber o que tinha acontecido, e estar tão intrigado quanto eu estava”.
James Inverne, editor da Gramophone, convocou um especialista em áudio, Andrew Rose, que comparou as ondas sonoras das gravações de László Simon e Joyce Hatto. Dez das doze faixas dos Estudos Transcendentais da Concert Artist eram “sem sombra de dúvida” tocadas por Simon, embora a duração de uma das faixas tivesse sido sutilmente modificada – acelerada em 0,02%. Distler tinha sentido que outra faixa não tinha sido tirada da gravação de Simon, e Rose confirmou: fora apropriada de um disco lançado em 1993, pelo pianista japonês Minoru Nojima. Novamente, a duração tinha sido ligeiramente alterada, mas o diagrama das ondas sonoras revelava a verdade.
Na noite de 15 de fevereiro de 2007, a Gramophone divulgou a história no seu site, acrescentando um relatório de Rose, que tornava as provas incontestáveis. Quando Cook e Sapp souberam da notícia na manhã seguinte, viram que agora o CHARM podia revelar abertamente a sua descoberta do roubo das mazurcas de Chopin, gravadas por Eugen Indjic. Nos dias subseqüentes, Rose continuou a analisar os discos e divulgar os resultados. O Concerto no 2 para Piano e Orquestra, de Brahms, era uma gravação de Joyce Hatto com René Köhler regendo a National Philharmonic-Symphony Orchestra? Não, era Vladimir Ashkenazy, Bernard Haitinik e a Filarmônica de Viena. Cada nova revelação aumentava a suspeita de que todos os lançamentos da Concert Artist, creditados a Joyce Hatto na última década, tinham sido na verdade uma criação de “Joyce Hatto”.
Nos grupos de discussão do Yahoo e da Usenet, os críticos mais entusiastas de Hatto descobriram-se, como era de se esperar, cobertos de opróbrio. No meio dos admiradores da pianista, todos em estado de choque, a cura coletiva assumiu a forma de uma blitz investigativa, uma corrida para ver quem descobria mais mistérios daquela obra de mentira. No prazo de dez dias, 23 identificações tinham sido feitas. [Em dezembro de 2007, a conta em http://www.farhanmalik.com/hatto/pianistslist.html chegava a 85 pianistas, entre eles o brasileiro Arthur Moreira Lima, cuja gravação das 18 Valsas de Chopin também foi lançada pela Concert Artist sob o nome de Joyce Hatto.]
À medida que a reputação de Joyce Hatto entrava em colapso, Barry fez o que pôde para manter as aparências, a começar pela negação peremptória. “E como o senhor explica o Rachmaninoff?”, perguntou-lhe James Inverne, o editor da Gramophone. “Não sei explicar”, respondeu Barry. E acrescentou, com o que Inverne qualifica de “uma audácia de tirar o fôlego”: “Se alguém puder me dar alguma pista que me ajude a entender, ficarei muito agradecido”.
As bravatas de Barry baixaram de tom depois que o jornal britânico Daily Mail desencavou uma condenação em 1966, por fraude fiscal, que lhe valera uma multa e a sentença de um ano de prisão.
Depois de mais uma série de notícias, Barry acabou fazendo uma confissão – um arremedo de confissão – numa carta ao diretor da gravadora sueca que lançara a gravação de Liszt por László Simon. Joyce Hatto tinha tocado pessoalmente todas aquelas peças, explicava Barry. Mas as gravações saíram prejudicadas por grunhidos involuntários devidos às dores do seu câncer avançado. Ele procurara gravações de artistas de estilo semelhante, usando fragmentos para remendar o trabalho da mulher. “Joyce não tinha a menor idéia disso”, escreveu ele, “e eu simplesmente lhe mostrava… o produto final já editado, que ela achava ser completamente seu.”
Apesar da “confissão” de Barry, todos os indícios apontavam para um plágio sistemático no atacado, e não para pecadilhos esparsos.
Por quanto tempo, na verdade, a Concert Artist tinha produzido essa operação pirata? E saber isso fazia diferença? Fixar-se neste ou naquele dado pouco nítido, ou nos detalhes técnicos da maneira como os CDs podem ter sido produzidos, é negligenciar a maior façanha de Barry. Ele não se limitou a surrupiar ou reprocessar algumas gravações, na maioria pouco conhecidas. Com a sua coleção de mais de 100 CDs de Joyce Hatto, Barry criou a mais prolífica, diversificada e talentosa pianista a surgir em muitas décadas, acompanhada de uma narrativa que despertou a estima e a boa vontade de muitos amantes da música no mundo inteiro. Desde o início de sua carreira, cheia de altos e baixos, ele já vinha manipulando com destreza a invenção de identidades musicais. Mas o que ele criou em benefício da mulher, já nos seus últimos anos, foi muitíssimo mais audacioso que qualquer manipulação dos seus anos dirigindo selos de “super-ofertas”. A alquimia que transformou Joyce Hatto em “Joyce Hatto” foi, a seu modo, um tour de force, uma obra de arte, literalmente o momento triunfal de toda uma existência.
Uma quantidade incrível de trabalho foi investida no embuste. Por exemplo, no caso de René Köhler. Barry tinha usado o pseudônimo de Köhler pela primeira vez nos anos 50, mas, antes das perguntas de Peter Lemken, nunca precisara de uma biografia pormenorizada. Em março de 2006, respondendo a um e-mail no qual Lemken afirmava estar preparando um artigo sobre Joyce Hatto e ter algumas perguntas sobre Köhler, Barry convidou Lemken para vir a Cambridge conhecer “Miss Hatto”, que “teria o maior prazer… em discutir com o senhor qualquer aspecto do seu estilo, do seu trabalho de professora ou de intérprete de estúdio”. Lemken tinha especulado que a “Igreja de St. Mark, em Croydon” – indicada nos CDs da Concert Artist como o local das sessões de gravação de Joyce Hatto com a orquestra de Köhler – devia ser mais uma ficção, já que estava ausente em todos os mapas. Em vista disso, Barry tomou a iniciativa: “Além do mais, enquanto o senhor estiver em Cambridge, poderei mostrar-lhe as instalações que usamos para as nossas gravações… Terei a maior satisfação em preparar a sua visita a uma igreja ‘inexistente’ de Croydon, e providenciar um encontro seu com o pároco local. Isso tomará um dia de viagem a partir de Cambridge, mas farei tudo ao meu alcance para acompanhá-lo em pessoa, ou providenciar a companhia de algum membro de minha equipe”. Barry tinha tanta possibilidade de reunir “músicos da National Philharmonic-Symphonic Orchestra original” quanto de produzir, em carne e osso, um concerto de Wilhelm Havagesse. Não existia uma Igreja de St. Mark em Croydon. E nem, provavelmente, dispunha ele de qualquer empregado para escoltar
Lemken aonde quer que fosse.
Tomei faz pouco tempo um trem de Londres a Royston para um encontro com Barrington-Coupe. Ele me recebeu na plataforma da estação. Embora tenha afirmado a vários repórteres que estava com a saúde fragilizada, pareceu-me vigoroso: um sujeito em forma aos 70 anos. Tinha o ar de um homem sedentário – pálido, com o rosto cheio, nariz ossudo. A caminhada durou quinze minutos através do vilarejo – passando pelas lojas e cafés de costume, uma igreja anglicana coberta de hera, um parque – até o pequeno condomínio num beco sem saída para o qual, segundo ele, tinha se mudado com Joyce Hatto em 1976, vindos da suburbana Hampstead Garden.
Pelo caminho, perguntei-lhe como era Royston, e a sua resposta deu o tom de toda a nossa conversa. Muitos soldados americanos ficaram alojados na área durante a II Guerra Mundial, e havia um vasto cemitério americano nas proximidades, em Cambridge. “Joyce às vezes tinha jovens alunos que diziam coisas negativas sobre os americanos, mas ela sempre ensinava que os americanos tinham sido maravilhosos durante a guerra”, disse ele. “Ela às vezes ia ao cemitério e deixava buquês de flores. Lembro-me de uma vez que chegamos e demos com um senhor americano de pé ao lado de um muro com os nomes dos soldados mortos gravados. Quando ele encostou os dedos num dos nomes…” E eu adivinhei o espírito do que ele iria dizer em seguida. A meu respeito, a partir de alguns telefonemas e e-mails, as únicas informações que Barry tinha eram de que eu era um repórter americano. Aquilo bastava; ele nascera para conquistar a boa vontade alheia. E eu estava sendo lisonjeado. No decorrer das cinco horas seguintes, ele exibiu toda a sua técnica, e eu a admirei em silêncio. Ele parecia inventar as histórias sem o menor esforço, de improviso. Procurando obter a minha simpatia e a minha confiança, conservou o tempo todo grande cortesia e amabilidade. Um sujeito da maior decência.
A certa altura, ele me perguntou se eu era judeu. “Tive um médico, um advogado e um contador judeus”, contou ele em tom caloroso. “E todos me diziam: ‘O senhor é mais judeu do que os judeus’.” Estávamos sentados na sala de música, mobiliada com uma mesa de carvalho, algumas estantes e poltronas, um armário baixo e um piano. Joyce Hatto tinha morrido naquele aposento. Mesmo sem a cama de hospital em que ela passara as últimas semanas de vida, a sala parecia cheia demais. Havia um excesso de adornos e bibelôs – gatos de louça de tamanho natural atrás do piano, um esquilo e um coelho de louça cercando um vaso de estanho contendo flores artificiais em cima da mesa, e um jogo de travessas em cloisonné. A BBC revelara que uma companhia inglesa de vendas pela internet tinha faturado 100 mil dólares só com CDs de Joyce Hatto; era impossível obter as cifras definitivas de vendas. Mas se o embuste tinha produzido lucros materiais, não havia sinal deles naquela casa.
O objeto que dominava a sala, claro, era um piano, um Steinway de cauda feito de mogno que Rachmaninoff, pelo que se dizia, tinha usado para os concertos ingleses que dera fora de Londres. Fiz o possível para imaginar o piano sendo transportado regularmente entre a casa e os locais apócrifos das gravações de Joyce Hatto.
Instalado no banco do piano, com as pernas cruzadas e as mãos entrelaçadas por cima de um dos joelhos (ele ainda usava uma aliança de ouro na mão esquerda), Barry disse: “Na vida, acontecem coincidências impressionantes. Na primeira tarde em que nós saímos juntos, eu a levei para andar de barco a remo no Hyde Park, e passamos por outro bote ocupado por dois meninos, gêmeos idênticos. Depois, tomamos um chá ainda no parque e, de repente, Joyce me contou: ‘Eu tive um irmão gêmeo que nasceu morto’. E a coisa espantosa era que eu também era gêmeo, e tive uma irmã que nasceu morta. Por causa disso, o meu pai queria uma filha e a mãe dela queria um filho. E os dois nos trataram exatamente da mesma forma. No primeiro dia em que nos encontramos – foi um sábado, mais ou menos nesta mesma época do ano – , sentimos uma forte ligação, que durou a vida inteira. Dava a impressão de transcender o casamento comum, o sexo e tudo o mais. Às vezes nem precisávamos falar – um sabia exatamente o que o outro estava pensando”.
A teoria mais plausível sobre a motivação por trás de toda essa impostura é tipicamente britânica: uma história de vingança, alimentada pelo ressentimento de classe. Joyce Hatto descreveu em entrevistas como fora tratada de maneira condescendente, quando jovem, na Royal Academy of Music. A carreira de concertista era uma ambição desmedida, foi o que lhe disseram; o que as jovens deviam realmente saber era preparar um assado.
Uma coisa que não perguntei a Barry: Joyce foi ou não cúmplice de toda a mentira? O consenso que vem se formando, entre as pessoas mais próximas ao escândalo, é de que sim. Naquela mesma semana, antes de ver Barry, eu estivera com Jeremy Nicholas e ele me mostrara um documento de peso, como as gravações de concertos, que parecia pôr uma segunda arma fumegante nas mãos de Hatto. Dizia respeito aos estudos de Godowsky – pensando bem, um furto não muito sensato. Quando o especialista em áudio mobilizado pela Gramophone analisou o CD de Joyce Hatto tocando Godowsky, descobriu que tinha sido montado a partir das gravações de Marc-André Hamelin, Carlo Grante e Ian Hobson; Barry acobertara o furto, reduzindo os tempos de várias faixas. Em março de 2006, depois que Nicholas publicou o seu reverente artigo sobre Hatto na Gramophone, recebeu dela um programa impresso de um famoso concerto realizado em 1938 no Royal Albert Hall, onde Rachmaninoff se apresentara. No bilhete escrito à mão, ela dizia: “Cuidamos deste programa de Rachmaninoff durante muitos anos, mas acho que deve ir para as suas mãos. E também andei retrabalhando o Godowsky, pois sempre tento chegar ao impossível, e espero que você aprecie o resultado. Com os meus melhores votos, Joyce”. E Nicholas queria saber: “Por que ela diz ‘estou retrabalhando o Godowsky’, se não foi ela quem tocou os estudos no CD?”
O crítico Ates Orga, por seu lado, reexaminou os relatos que Joyce Hatto fez das suas turnês de concertos pela Europa Oriental. Diz ele: “Não me ocorrem muitos artistas ingleses que, nas décadas de 50, 60 ou início dos anos 70, circulassem pela União Soviética ou Polônia, a menos que fossem grandes intérpretes competitivos”. Barry dissera a Orga que Joyce não tivera o cuidado de conservar cópias das matérias sobre os seus concertos. Ainda assim, conseguiu apresentar algumas críticas – claro, não recortes, mas transcrições datilografadas – colhidas durante as suas supostas viagens à Rússia e à Escandinávia no início e em meados dos anos 70. As citações falavam da mesma heroína irresistível dos textos das suas contracapas: “Joyce Hatto dominou completamente o seu Steinway, e foi possível ver com clareza que os músicos da orquestra transpiravam, enquanto a solista, não! Os aplausos explosivos que ela recebeu a obrigaram a retornar seis vezes”.
As poucas críticas de concertos de Joyce Hatto cuja autenticidade pode ser verificada são menos generosas. Em 1953, um crítico do Times de Londres disse de um recital local: “Joyce Hatto engalfinhou-se tenazmente com andamentos acelerados demais no Concerto para Piano em Ré Menor de Mozart”. Numa avaliação do LP em que Joyce Hatto interpreta o Segundo Concerto para Piano de Rachmaninoff, publicada na Gramophone em 1961, o maestro Trevor Howard se pergunta “se a técnica da pianista está realmente à altura das dificuldades da obra”. E conclui: “É uma interpretação menor, e bastante inexpressiva”.
Num momento de contrição, Barry disse: “Entendo por que fui criticado. Além de ter agido à margem da lei, não foi uma coisa correta. Eu sei que não devia ter feito o que fiz”. Em seguida, ele supera esse rasgo de remorso. “As cartas que eu tenho recebido – as mais desagradáveis – dizem que eu pelo menos podia ter divulgado os nomes dos artistas maravilhosos que tocaram essas obras. Mas não existem esses ‘artistas maravilhosos’. O mais difícil para ela era o momento antes de começar a tocar: ela sempre respirava fundo e a dor surgia. Não conseguia evitar. Muitas vezes, foi nesses pontos que eu precisei fazer os remendos. Nunca usamos um pianista famoso, ou coisa assim, para encobrir alguma deficiência técnica.”
Apesar do dom de Barry para o artifício, ele tinha criado tantas camadas de histórias que caía inevitavelmente em contradição. Quando lhe perguntei como Joyce Hatto reagia à atenção que a cercara durante seus últimos anos de vida, ele respondeu: “Sabe, o importante é que isso significava que a vida dela não tinha sido um desperdício. Mas na verdade ela não se acomodava nos louros da fama”. E no minuto seguinte ele afirmou que, pouco antes de morrer, quando ele lhe mostrou uma resenha favorável a um de seus CDs, “ela olhou para mim e disse ‘Agora é tarde demais'”.
Em seguida ao escândalo, alguns ouvintes compraram os primeiros LPs de Joyce Hatto e detectaram ali uma autêntica promessa de talento. O compositor e pianista Christopher Howell, depois de ouvir a gravação dela, datada de 1963, do Concerto para Piano em Lá maior de Mozart, disse que “o tom tem um certo brilho. O movimento lento é lindamente apresentado, enquanto o finale, num andamento bastante acelerado, mostra uma alegre vivacidade. No todo, a interpretação tem uma certa luminosidade de espírito”. Mas de fato era tarde demais.
Praticamente todo o episódio que Barry recordava, ou inventava na hora, encaixava-se numa narrativa fundamentalmente sentimental, que conservava pelo menos uma dose de plausibilidade, permitindo-lhe recolher um pouco de compaixão pelos ressentimentos acumulados ao longo de duas vidas. Claro, o golpe todo tinha uma certa pungência transparente: Joyce Hatto possuía um talento genuíno, mas nunca tivera uma carreira brilhante. O golpe era engenhoso, e a vingança tinha uma certa doçura: a persona falsa compensava as ambições frustradas da pianista. Ainda assim, o quanto pode ter sido satisfatório viver um mero simulacro de sucesso – ler críticas que falavam sobre o “seu” renascimento inspirador, ver as “suas” interpretações cobertas de elogios extravagantes? A menção de nomes conhecidos, a vaguidão, as histórias delirantes, a mágoa, a autocompaixão, o ressentimento em relação ao establishment musical, tudo constituía um verdadeiro zigurate de auto-engano. E era também uma história de amor.
As cinzas de Joyce Hatto, numa embalagem de papelão mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos, estavam em cima da mesa de carvalho. Três dias antes de morrer, disse Barrington-Coupe, ele propôs que fossem levadas para o jardim de Chopin, nos arredores de Varsóvia, mas ela pediu que fossem espalhadas debaixo de uma conífera no jardim botânico de Cambridge. Infelizmente, isso não foi permitido.
“Ela morreu exatamente onde você está”, contou-me ele. “Era mais ou menos aí que ficava a cama de hospital. O mais impressionante é que ela era uma pessoa sem idade. Meninas e jovens conversavam com ela sobre coisas que não discutiam com os pais. Ninguém achava que fosse uma mulher idosa, e, na verdade, eu também não. Uns dois anos antes de ela morrer, eu disse: ‘Sabe, Joyce, você não mudou nada desde o dia em que nos conhecemos’. Ela tinha um ar incrivelmente jovem. Mas quando morreu – no momento mesmo da morte, o médico estava de um lado e eu do outro – foi como se uma esponja passasse no seu rosto e toda a personalidade dela sumisse; só ficou aquela senhora idosa. Quando eu fui vê-la na funerária, entrei e encontrei aquela mulher bem velha no caixão. Olhei para ela, saí sorrindo e comentei: ‘É o corpo errado’. E me responderam: ‘Não, é a Joyce mesmo’. E eu voltei. Ela tinha uma marca de nascença. Voltei, e a marca estava lá. Já vi muitas mortes. A maioria das pessoas, na morte, parece perder alguns anos. Ela não. Era o fim do espetáculo.”