ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
A farda e o fardo
Um militar macumbeiro, muçulmano e antibolsonarista
João Batista Jr. | Edição 173, Fevereiro 2021
Militar convertido ao islã e muçulmano praticante. Sacerdote de terreiro de umbanda. Pacifista com mestrado em ciência da religião. Ferrenho opositor de Jair Bolsonaro. Por essas e outras características antagônicas, a palavra que Mário Alves da Silva Filho mais escuta ao contar sua história é: “Surpreendente.” Tão surpreendente que lhe custou um dos postos mais cobiçados na hierarquia militar, o de diretor da Rota, a tropa de elite da PM de São Paulo. Com 35 anos de carreira, Silva Filho foi afastado do cargo por externar nas redes sociais seu repúdio à forma como Bolsonaro trata a pandemia.
Nascido em família católica, ele pisou pela primeira vez em um terreiro aos 9 anos de idade, acompanhando a mãe, uma enfermeira, que havia ido até lá em busca de solução para a crise no relacionamento com o marido, um coronel da PM. O encantamento pela umbanda foi imediato. Silva Filho continuou a frequentar o terreiro até dar início à carreira profissional, aos 15 anos, na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em Barbacena, Minas Gerais.
Em 1986, quando tinha 19 anos, ele ingressou na PM e retomou suas incursões na umbanda. Em paralelo, resolveu estudar a fundo o cristianismo. Tudo ficou mais embolado em 1997. Durante um retiro num mosteiro jesuíta, ele recebeu um “chamado”. Ainda está bastante vivo em sua memória o diálogo que travou, no sonho, com um muçulmano:
– Meu irmão, o que você está buscando?
– Não sei.
– Você está buscando o sufismo, que vai encontrar no islã.
Em uma semana, Silva Filho estava na Mesquita Brasil, fundada em São Paulo em 1929, pronto para se converter. Foi o primeiro passo. O outro teria a extensão de 10,5 mil km. Como não existem no Brasil líderes muçulmanos aptos a realizar a iniciação sufi, ele embarcou para Istambul, na Turquia, onde se tornou membro da vertente sufista do islamismo.
Dois anos após a conversão, passou por uma série de dificuldades. Recorreu, então, ao seu antigo pai de santo, que decidiu incorporar o Preto Velho para saber o motivo daquela fase ruim. A entidade deu a letra. No passado, ao executar trabalhos para ajudar as almas perdidas em sua passagem para um plano mais elevado, Silva Filho abrira um campo suscetível a ataques espirituais. A solução seria retornar ao terreiro, disse o Preto Velho.
Silva Filho ficou ressabiado, e pediu ao pai de santo para jogar os búzios. A resposta foi mais específica: o militar deveria criar um templo dedicado à entidade Pantera Negra, que em seu site ele descreve como o “chefe de uma linhagem de caboclos índios oriundos de tribos isoladas e desconhecidas”. Durante um ano e meio, o neomuçulmano passou por quatro centros diferentes até abrir o Templo Espiritual Pantera Negra, do qual se tornou sacerdote, sem abrir mão, porém, do islamismo.
A combinação da vida religiosa com a militar não se deu sem conflitos para Silva Filho. Quando ainda estava na Turquia, ele pediu orientação ao seu líder muçulmano a respeito de aspectos de sua atividade profissional que o atormentavam. “O xeique me disse que, como muçulmano, tenho a obrigação de ser misericordioso”, ele conta. “Em um enfretamento, é natural que eu defenda a minha vida. Isso faz parte da misericórdia.”
Religião e vida militar também se encontraram na universidade. Em seu trabalho final de pós-graduação em ciência da religião, ele investigou a intolerância religiosa por parte da PM. Para a pesquisa, enviou um questionário a quatrocentos pais de santo, perguntando se eles haviam sofrido perseguição policial. Apenas 302 responderam, e todos disseram que não. “Reclamaram foi da falta de policiamento em regiões de terreiro em São Paulo, em geral mais afastadas, mas não reclamaram de preconceito. Já no Rio sabemos de ataques em terreiros em áreas controladas pela milícia.” Ele examinou também chamadas telefônicas feitas durante cinco anos (de 2002 a 2006) ao número 190, de emergências policiais, por pessoas que reclamavam do barulho de terreiros de umbanda: de 100 chamadas, apenas 4 viraram boletins de ocorrência.
Silva Filho, 52 anos, tem a voz tranquila e se expressa de maneira didática. Ele sabe nomes iorubás de rituais de umbanda e conhece a fundo a história das divindades. Já esteve na Nigéria para fazer trabalhos para a filha única, Leila, que nasceu com problemas de alergias. Também recita em árabe trechos do Alcorão, cujas passagens conhece em profundidade. Além de ter graduação em teologia e pós-graduação em ciência da religião pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), é mestre e doutor em ciências policiais pelo Centro de Altos Estudos de Segurança, instituição da PM paulista. Na carreira militar, conseguiu o feito de chefiar três das principais corporações: o Comando de Operações Especiais (COE), o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) e as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota).
O ponto final dessa história de sucesso se deu no ano passado, por motivos políticos. Em maio, Silva Filho contraiu Covid-19 e intensificou, em posts nas redes sociais, as críticas ao negacionismo de Bolsonaro. Ao retornar ao quartel, em maio, seu chefe o chamou para conversar. O recado foi curto e grosso. “A versão oficial: disseram que fariam mudanças na hierarquia do comando. A versão real: falaram, sem citar nome nenhum, que os generais estavam descontentes com meus posts”, resume.
Ele deveria deixar a Rota naquele mesmo dia, mas pediu uma semana para poder se despedir da tropa. Foi autorizado, mas com a condição de não postar nada contra o presidente, em cumprimento ao anexo de um decreto federal de 2002 que proíbe militares da ativa de se manifestarem sobre assuntos de natureza político-partidária.
Depois disso, foi, como ele diz, “encostado” no Batalhão de Choque, onde seu trabalho consistia em assinar papéis. “Decidi me aposentar quando vi toda a corporação mobilizada para uma grande operação sem ninguém ali me dirigir a palavra.”
Após a aposentadoria, seu sono ficou mais leve, mas ele conta que se chateou por não receber mais ligações dos colegas de farda. Hoje, é um coronel da reserva e atende em seu terreiro, na Zona Norte de São Paulo, de onde grava vídeos sobre temas variados para seu canal no YouTube. “Nunca deixei de falar nada o que penso, mas agora falo livre de preconceito e perseguição.” Silva Filho está em seu quarto casamento e um de seus orgulhos é a filha de 15 anos. “Leila é antibolsonarista e se preocupa com questões de raça e de igualdade de gênero”, ele se vangloria.