CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Favelacore
Famosos tratam como novidade moda consagrada na periferia
Emily Almeida | Edição 195, Dezembro 2022
Nas ruas da comunidade Jardim Catarina, em São Gonçalo, município do Rio de Janeiro, andar trajado é, para os rapazes, sair vestido com camisa de time de futebol. Chinelo Kenner (de faixas e solado grossos) e uma bermuda completam o visual masculino. Para as meninas, uma blusa cropped (cortada acima da cintura), shorts, o piercing no umbigo à mostra, uma sandália – e pronto. “É uma estética nossa, da comunidade, que existe desde que eu era pequena. Sempre fez sucesso”, diz a barbeira Gabriele Duarte, de 27 anos, que mora e trabalha no Jardim Catarina, considerada a maior favela plana da América Latina.
Ela conta que os rapazes vestem a camiseta de time no dia a dia. Inclusive a da Seleção Brasileira, em qualquer época – na comunidade, essa peça de roupa não é um emblema bolsonarista. “Agora, inclusive, enquanto eu falo com você, estou vendo na rua um menino descarregando caminhão, e ele está com a camiseta do Brasil”, conta a barbeira, em uma conversa por telefone.
Com os mesmos elementos – chinelos, camiseta de time, blusa cropped e piercing no umbigo –, um novo estilo se propagou há pouco: o chamado brazilcore ou brazilian aesthetic. Nas redes sociais, aparece como a última palavra da moda. A única novidade, porém, é que foi adotado por pessoas que não vivem nas periferias. “O branco, quando usa a nossa estética, é estiloso. Fala que está criando moda”, diz Duarte. “Essa moda sempre existiu, e ela é nossa, mas infelizmente tudo que é da favela é criminalizado.”
Por vezes, um estilo surgido nas comunidades só tem seu valor reconhecido depois que pessoas de fora delas passam a adotá-lo. Foi o caso, também, do “disfarçado”, um corte de cabelo hoje popular entre meninos e rapazes de todas as classes sociais, caracterizado por um volume maior no alto da cabeça e uma redução progressiva do tamanho dos fios até a nuca, onde é passada a máquina zero. “Quando o disfarçado era associado às favelas, as pessoas sofriam preconceito ao levar esse estilo para o asfalto”, afirma o antropólogo e diretor de cinema Emílio Domingos, que realizou os documentários Favela é Moda e Deixa na Régua. “Hoje é considerado bonito e há barbearias com toda uma estética padronizada, mais gourmet, em que o tipo de corte que impera é o disfarçado. Existe uma apropriação.”
Uma busca pelo termo brazilcore no Google retorna sobretudo as imagens de duas pessoas: a influenciadora Malu Borges, vestida com um casaco esportivo verde e amarelo, e a modelo norte-americana Alex Consani, exibindo a barriguinha pálida sob uma regata amarela curta estampada com a palavra Brazil em verde. Além das madeixas loiras e da fama no universo fashionista, as duas têm outra coisa em comum: são usuárias assíduas do TikTok, rede que tem pautado a moda jovem.
No TikTok, nunca se sabe o que nasce primeiro: se a tendência ou se os vídeos que dizem que algo virou tendência. Foi na rede social chinesa que os primeiros vídeos indicando a existência do brazilcore bombaram a partir de agosto, competindo com outros estilos core, como o barbiecore, moda com muito rosa e glitter inspirada pela boneca da Mattel.
Nessa rede social, os vídeos sobre o brazilcore passam ao largo do uso político das cores nacionais, o que talvez indique que o verde-amarelo vai deixando de ser associado aos seguidores de Jair Bolsonaro. Algumas contas do TikTok, sobretudo de anônimos, exaltam a suposta novidade do estilo e promovem marcas e lojas que entraram nessa onda, impulsionadas pela Copa do Mundo. Outras criticam o fato de que só se tornou glamouroso após ser adotado por pessoas brancas e estrangeiras. A discussão chegou também ao Twitter, onde uma usuária queixou-se em agosto: “Brazilcore sendo tão comentado como uma tendência é a prova de que o povo ama enaltecer quando a burguesia branca usa tudo o que o preto pobre usa há anos.”
A tendência que hoje se espalha nas redes sociais tem como base a chamada “estética de cria”, visual dos jovens de periferia que por décadas foi rejeitado pela indústria da moda. Essa estética inclui não só roupas, mas o estilo de cabelo. “Tem a questão de ir ao salão toda semana”, explica Domingos. “Várias músicas falam, por exemplo, do ‘bigodinho fininho, cabelinho na régua’.” O antropólogo ressalta que esse estilo tem a ver com questões tanto de autoestima quanto de pertença a uma coletividade, de conexão com os códigos locais. “É um problema as pessoas só começarem a debater isso a partir de blogueiras brancas que apresentam o estilo como algo novo na internet.”
Em ano de Copa do Mundo, com o Brasil em busca de seu sexto título, as cores da bandeira nacional ganharam impulso na moda. Celebridades como a cantora inglesa Dua Lipa, a modelo e influencer norte-americana Hailey Bieber e a cantora Ludmilla já fizeram sucesso com looks em verde e amarelo. Bem longe dos holofotes, no Jardim Catarina, as ruas foram pintadas nessas cores, e bandeirinhas, penduradas para animar a torcida.
A politização das cores nacionais também continua em debate, pois o verde e amarelo ainda é dominante nos protestos dos inconformados com o resultado da eleição presidencial, os mesmos que pedem aos militares um golpe de Estado no Brasil.
Os artistas da periferia têm reagido há tempos contra esse tipo de apropriação. Foi o que fez, por exemplo, o rapper mineiro Djonga, em abril, durante um festival de música no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte. O público entoava palavras de ordem contra Bolsonaro quando ele subiu ao palco com a camisa da Seleção. “Com essa camisa aqui é mais gostoso ainda ouvir vocês gritando isso”, disse Djonga. “Os caras se apropriam dos nossos símbolos, os caras se apropriam de tudo. Mas é o seguinte: é tudo nosso, e nada deles.”
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