ILUSTRAÇÃO: LES MAINS LIBRES, L'ATENTE_1937 © MAN RAY TRUST_ADAGP/ARS_TELIMAGE_2015
Fazer
Sylvio Fraga | Edição 108, Setembro 2015
ARTE POÉTICA
Soprei as quatro velas
certo de alcançar
muitas coisas novas.
A EMINÊNCIA PARDA
Flora vai à cozinha fumar,
Panda choraminga na porta,
desiste, volta ao sofá como um tatu.
São as meninas da casa, unidas.
Na mesa da sala espio meu coração,
é um cardume transparente, denso.
Às vezes fulge quando não penso.
Flora sai da cozinha, não tirei o lixo,
deita com Panda, retomam a tarde.
Meu coração descansa na teia
daquela aranha que nem desconfia,
cosendo para seus mortos.
Panda lambe a pata e pausa.
Escuta.
Meu coração também vive
sem notícias do mundo.
OLHANDO O RIO DE JANEIRO NO MAPA DO TELEFONE
Quando eu me livrar de todas as superstições,
só quando, serei não feliz
mas o azul do céu, vermelho do morango.
Adormeci folheando a Renascença
e acordei no escuro, nuvens noturnas
atiçando minhas cortinas brancas.
‘‘Entre uma arte voltada ao conhecimento do objeto
e uma arte voltada à expressão do sujeito”
imagino a rota dos vassoureiros
em relação às arapongas,
o fluxo milenar dos mendigos,
caminhões de legumes cortando névoa.
Janeiro cintila como um peixe
flutuando na baía.
Quarteirões da orla em curva suave
entre morros e mar,
ondas voltam noivas arrastando caudas para o fundo.
Ventania atravessa a cidade
para chegar aonde não há mais vento,
aonde misturo palavras para encontrar a cura,
o rosto aceso na sala apagada.
Em ato rebelde vou à África e volto.
Quem triste a dias do suicídio?
Podemos salvá-los com um pouco de quê?
Astronautas viram a linha do escuro devagar
calando os pássaros.
A evolução me treinou severamente a insistir
sob as copas das árvores.
Aqui em cima silêncio de vento.
Gaviões devem ser isso, pensamentos puros,
na mente um céu de gaviões.
Penso nos ex-amores, neve cai
dos meus olhos mas derrete muito antes
de chegar às ruas cintilando,
muito antes de vê-las nuas só mais uma vez.
UMA HISTÓRIA
Fui rendido por um jovem negro.
Eu só tinha dez reais então
fomos ao banco tirar duzentos
olhando um para o pé do outro.
Eu era assistente de eletricista.
E agora, vai assaltar para sempre?
Só por um tempo, ajudar minha avó,
fazer curso de eletricista.
Estávamos chegando perto do banco.
Qual é seu nome?
Manuel.
Ó pá! (rimos) Manuel, pago um curso
desses pra você, que tal?
Então paguei o curso de dois anos
e ficamos em contato.
Sua avó morreu. Ele se formou
e se mudou para um subúrbio mais
calmo, casou com uma negra linda
chamada Irene que trabalha
em telecomunicações, fui ao casamento.
Ela enchia o rosto de maquiagem
como quem mergulha em adjetivos.
Manuel e Irene tiveram dois filhos
e sou padrinho de ambos,
o menino é Silvio.
Manuel comprou um carro,
na avenida Brasil foi assaltado,
reagiu, morreu.
Dei ajuda financeira para Irene.
Eu e Irene chorávamos pelo Manuel
transando loucamente.
UMA NOITE
Fomos tomar uísque no puteiro,
só de onda e no vai que.
Chegamos lá e vestimos o robe
ou quimono.
Na boate Michelle veio falar comigo.
De longe ela mostrou a bunda e oh!
me senti tão vivo.
Ela veio de Minas.
Disse a ela que estava só
acompanhando o pessoal e com ardência
na uretra, ela me deu um beijo na boca
e voltou para o colo de um senhor.
Em casa eu e Lydia Davis cansamos
da imaginação dos outros.
Gosto quando grandes escritores erram
e a gente fica sem saber.
Queria passear num prado
com doze anos segurando Michelle,
queria morar entre as nádegas dela
dentro do coração da amada
mas não posso então durmo.
Esse remédio deixa o xixi laranja,
parece Fanta despejada na privada
porque alguém do churrasco jogou uma guimba.
Alguém da família da Michelle.
—
Poemas selecionados do livro Fazer, a ser lançado pela editora 7Letras em outubro.