CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Feitiço do templo
A Igreja Positivista tenta restaurar sua sede no Rio
Wilson Tosta | Edição 207, Dezembro 2023
Em 2019, a advogada Christiane Martins Pereira de Souza, de 55 anos, diretora de patrimônio da Igreja Positivista do Brasil (IPB), estava fazendo um levantamento do acervo da entidade e percebeu que alguns itens citados na documentação haviam sumido. Desconfiou que pudessem estar em um cofre de cimento mantido na Sala de Relíquias da sede da IPB, no Rio de Janeiro, e mandou arrombá-lo. Nele encontrou muito mais do que esperava.
Uma das surpresas foi uma cópia da Sentença aos homens mais desconhecidos e os mais rebeldes de Minas Geraes no anno de 1792, feita na época do documento original, com as penas decretadas pela Coroa de Portugal aos inconfidentes mineiros – inclusive a morte na forca para Tiradentes. Havia também no cofre um conjunto de papéis com assinaturas do herói da Inconfidência, de Simón Bolívar e de José Bonifácio de Andrada e Silva. Fora isso, Souza achou alguns objetos com jeito de fetiche, como um autógrafo e uma mecha de cabelo do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), o fundador do positivismo, e um pedaço de roupa de Clotilde de Vaux (1815-46), a mulher por quem ele nutriu uma paixão não correspondida.
Os objetos do cofre de cimento não são as únicas preciosidades reunidas pelos primeiros positivistas no Templo da Humanidade, como é chamada a sede da IPB. Outras peças valiosas haviam sido transferidas em 2009 para o Museu da República, também no Rio, depois que um pedaço do telhado ruiu. Em 2015, algumas seções da biblioteca foram declaradas de valor excepcional pela Unesco. Mas a primeira Bandeira Nacional com o desenho atual desapareceu: foi surrupiada do templo em 2010.
O Templo da Humanidade é um prédio neoclássico que imita em dimensões muito reduzidas o Panthéon, o local em Paris onde estão sepultadas grandes personalidades da história francesa. Foi inaugurado em 1897 no bairro da Glória e sua deterioração se acentuou nas últimas décadas. Isso, porém, deve mudar. Em fevereiro, a entidade contratou o Instituto Pedra, que atua na área de conservação e renovação de patrimônio, para realizar um projeto de reforma do templo. “A Igreja nunca esteve em um momento tão bom”, diz a advogada, que garante que os objetos encontrados no cofre estão agora em lugar seguro.
Doutrina filosófica criada por Comte, o positivismo floresceu com vigor no Brasil, espalhando sua influência não só nos meios intelectual e artístico, mas também político e militar. Teve particular importância no movimento republicano, tanto que as palavras da Bandeira Nacional vêm de uma máxima de Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por objetivo, tal é […] o caráter fundamental do regime definitivo que o positivismo acaba de inaugurar” (a primeira parte da sentença está inscrita no friso da entrada do Templo da Humanidade no Rio).
Embora colocasse a ciência no centro de seu ideário, o positivismo resultou em uma religião, que, em vez de uma entidade transcendental, idolatrava a humanidade e buscava seu aprimoramento moral e científico progressivo. Vivido de maneira intensa no Brasil no fim do século XIX e início do XX, esse culto racionalista, entretanto, não conseguiu atravessar bem as décadas seguintes. Pouco a pouco, foi definhando – até ser jogado no escaninho da história.
Há mais de uma década, a Igreja Positivista e a Associação dos Amigos do Templo da Humanidade (AATH) buscam patrocínio para revitalizar o prédio. Os custos são altos. Só o restauro de uma das mais de sessenta telas do acervo – Humanidade, de Décio Villares – foi orçado em 66 mil reais. Em 2016, Alexandre Martins Pereira de Souza, de 57 anos, irmão de Christiane e presidente da ipb, levantou fundos para o conserto do telhado com a venda de um imóvel da igreja no bairro do Marais, em Paris. Tratava-se de um apartamento em um prédio comprado pela IPB em 1903, no qual foi criada a Chapelle de l’Humanité, um templo positivista. Lá vivera Clotilde de Vaux, a mulher casada e católica que Comte endeusava, literalmente: no culto positivista, as estátuas da deusa Humanidade ganharam o rosto dela.
O Instituto Pedra tem agora como tarefa preparar um projeto para viabilizar a captação de recursos por leis de incentivo para a reforma integral do templo, que foi tombado três vezes: pelo patrimônio histórico federal, estadual e municipal. Ainda há muito a definir, mas o objetivo é transformar o prédio em um centro histórico-cultural, aberto a pesquisadores e visitantes. “A recuperação tem que ser material e simbólica”, diz o presidente do instituto, o arquiteto Luiz Fernando de Almeida. Ele explica que o trabalho terá duas vertentes: a catalogação do acervo e um projeto básico de reforma do prédio.
A prioridade é o prédio. Para os envolvidos na tarefa, reavivar o próprio culto positivista é uma esperança mais distante. “A religião católica oferece a vida eterna; os neopentecostais, a prosperidade neste mundo; a religião da Humanidade não promete nada, é uma religião só de deveres”, diz o engenheiro e professor Luiz Edmundo Costa Leite, de 79 anos, presidente da AATH.
O telhado do Templo da Humanidade já foi consertado, mas ainda restam muitos problemas, como a piauí constatou ao visitar o local, na Rua Benjamin Constant (nome do engenheiro e político que introduziu o positivismo no meio militar). Construído de pedras cimentadas com óleo de baleia, o prédio está com as paredes descascadas, os letreiros danificados e o piso deteriorado. Não faz jus às ambições intelectuais expressas nos sete degraus da entrada, cada um deles com o nome de um saber – desde o mais básico (a matemática) até o mais complexo (a moral), na hierarquia de Comte.
Boa parte das pessoas que tentam revitalizar o prédio tem antepassados positivistas. Christiane e Alexandre são filhos de Danton Voltaire Pereira de Souza, líder da igreja por duas décadas, falecido em 2014. Costa Leite é bisneto do general Luiz Bueno Horta Barbosa, também positivista. O vice-presidente da AATH, Sipriano Teixeira Mendes, descende de Raimundo Teixeira Mendes, um dos fundadores do Apostolado Positivista do Brasil.
Essas credenciais familiares não impressionam o músico e museólogo Érlon Jacques de Oliveira, de 51 anos, guardião do Templo Positivista de Porto Alegre, o único no mundo, segundo ele, que ainda mantém atividade religiosa presencial. Ele acredita que a busca por um patrocinador compromete a integridade do positivismo. “Quando se fala de uma doutrina religiosa, a gente não pode inverter as prioridades”, diz. Ou seja, a doutrina deve vir antes do prédio.
Embora não tenha ligações formais com a direção da IPB, Oliveira teve a chance de externar suas críticas no templo carioca, em uma prédica que causou mal-estar entre os dirigentes locais. Sua aspiração é revitalizar a religião de Comte, o que tenta fazer com transmissões pelas redes sociais, aos domingos, a partir de Porto Alegre. Os dirigentes da IPB não descartam a atividade religiosa, mas dizem que, sem patrocínio, será inviável fazer qualquer coisa no templo da Glória. “Sem prédio, não tem prédica”, diz Christiane de Souza.
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