Ficção para poucos
Por que ninguém lê a monumental obra de Cláudio César Dias Baptista
Bernardo Esteves | Edição 68, Maio 2012
Ardo é um músico inquieto e inventivo. É o motor criativo de Os Atlantes, banda que ele integra ao lado do irmão, Sérias, e da mulher, Ree. Apreciado por sua originalidade, o conjunto acabou precocemente depois que os músicos começaram a tomar uma droga lisérgica chamada KSE. Após a dissolução do grupo e um salto suicida no vazio, Ardo acabou internado numa clínica psiquiátrica, por “abuso na ingestão de alucinógenos e conflito afetivo irresoluto”.
A semelhança com a trajetória de Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee, que formaram Os Mutantes nos anos 60 e 70, não é fortuita. Os Atlantes são um grupo fictício criado por Cláudio César Dias Baptista, irmão mais velho de Arnaldo e Sérgio e cofundador do grupo que deu origem aos Mutantes. Luthier autodidata, construiu vários instrumentos usados pela banda e foi em parte o responsável pela sonoridade única de faixas como Dia 36, Bat Macumba e 2001.
A história dos Atlantes aparece no Livro Sexto de Géa, saga em doze volumes escrita por Baptista, que o público desconhece. Géa é uma obra de números superlativos: são 1 267 personagens apresentados em 3 712 páginas. O autor gosta de chamar a atenção para sua diversidade lexical: ele estima ter usado 30 mil palavras diferentes (“Mais do que em Os Lusíadas”). Muitas são neologismos e termos de idiomas extraterrestres – por isso o autor fez também o Livro Treze, um glossário mais extenso que os outros doze volumes juntos.
O livro conta a jornada espiritual de Clausar, alienígena do planeta Géa e alter ego do autor, como o nome sugere. Na galáxia ficcional criada por ele, não são poucos os personagens, lugares e situações que têm paralelo com os da Terra. Nem poderia ser diferente: “Existe, sim, uma ligação com a minha vida, porque Géa contém uma mensagem e ela só pode ser passada a partir do que aprendi nesta existência”, disse Baptista.
Os personagens de Géa se deslocam em 78 tipos diferentes de naves. A obra apresenta ainda uma profusão de engenhocas imaginadas pelo autor, como o psicoaudiossintetizador alfa, instrumento musical operado pela mente, e o ionomag, sistema propulsor de naves “que poderá quiçá funcionar, se testado em laboratório e com o devido investimento de capital”. Apesar desses elementos, o autor fica pouco à vontade ao ver sua obra rotulada. “Meus livros são bem mais que ficção científica”, afirmou. “Géa não cabe em estilo algum conhecido.”
Afisionomia de Cláudio César Dias Baptista lembra a de seus irmãos mais conhecidos. Mas ele se indispõe com a forma como a semelhança costuma ser apontada. Sendo o primogênito, raciocina, seria mais adequado dizer que Arnaldo e Sérgio é que se parecem com ele.
Baptista gosta de se identificar com as iniciais CCDB, que ele registrou como marca. Mora com a mulher e o filho num sobrado branco de dois andares nos arredores de Rio das Ostras, no litoral norte-fluminense. Mudou-se para lá no fim dos anos 90 e ali concluiu a redação de Géa. Leva uma vida austera, rodeado de poucos livros, filmes em DVD e VHS e aparelhos de som.
O luthier não produz mais instrumentos musicais e equipamentos de áudio. Dedica-se hoje ao trabalho virtualmente sem fim de revisão de sua obra e atualização da versão online do Livro Treze, que lançou no fim de 2011 e já está na sexta revisão. Passa boa parte do tempo em seu Q.G., no 2º andar da casa, um espaço amplo que lhe serve de quarto e ambiente de trabalho, sem paredes internas para delimitar os ambientes.
CCDB tem sua obra no mais alto juízo. “É um trabalho perene e um passo brilhante para a literatura do Brasil, para o nosso povo e para o nosso idioma”, afirmou. “O tempo dirá se exagero.” Não obstante, ele ainda não conseguiu convencer nenhuma editora a publicá-lo. De acordo com suas contas, já sondou cerca de “600 editoras brasileiras e 400 portuguesas”, conforme disse numa entrevista a piauí em sua casa, numa tarde de março. Ele não abre mão de publicar a obra na íntegra, com os doze volumes e o glossário, se possível com as capas e ilustrações também feitas por ele. As tentativas fracassadas não chegam a ser motivo de frustração. “Escritores como Cervantes e Monteiro Lobato tiveram dificuldades imensas para ser publicados”, disse CCDB. “Minhas dificuldades são mínimas.”
Enquanto o autor não as supera, Géa segue disponível apenas numa plataforma de leitura desenvolvida pelo próprio CCDB em seu site. Os interessados não podem ter uma cópia impressa ou eletrônica dos livros: é possível apenas comprar tempo de acesso às obras. Por 15 reais, ganha-se o direito a trinta dias de acesso ao ambiente de leitura, que oferece também outros livros escritos por Baptista, inclusive os doze volumes de Geínha, aventura para o público infantil ambientada no universo ficcional.
Pouquíssimos leitores encararam Géa na íntegra. Baptista sabe quantos são, mas prefere não revelar (o número “mal dá para manter o site no ar”). Como os livros só estão disponíveis no site, as estatísticas de acesso permitem ao autor monitorar o andamento da leitura dos usuários – eventualmente, ele manda e-mails para comentar a fruição de seus escritos.
A plataforma fechada é sintomática do verdadeiro pavor que CCDB tem da perspectiva de ter seus livros e inventos pirateados. Ele nem cogita disponibilizar sua obra na internet para que alcance um público maior e, quem sabe, acabe convencendo algum editor a publicá-la em papel. “O fato de ser lançada de graça significaria que não tem valor”, avaliou. “Seria um desdouro para a obra. Prefiro esperar mais.”
Os usuários dispostos a enfrentar os doze volumes têm ainda um obstáculo adicional: a organização do site é anárquica – um emaranhado de páginas de navegação confusa, desprovido de ordem aparente. CCDB vê isso como uma barreira iniciática para selecionar seus leitores. “O caos força a pessoa desinteressada a fugir do site.”