ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Flamenguense palmeirense
Um pontinho verde no sertão rubro-negro do Ceará
Fábio Felice | Edição 184, Janeiro 2022
Quando Gabigol marcou o gol de empate que levou para a prorrogação a final da Copa Libertadores da América de 2021, disputada entre Palmeiras e Flamengo na última semana de novembro, Francisco Ozino Olinda, de 45 anos, estava em casa, com a tevê desligada. Ele percebeu os fogos de artifício espocando no distrito de Flamengo, no Ceará, mas preferiu não se levantar da cama.
Quem nasce em Flamengo, em pleno sertão, é flamenguense. À exceção de poucos, é também flamenguista. Ozino, como é conhecido, faz parte da minoria: é um dos raros palmeirenses do distrito de cerca de 4 mil habitantes. Há um motivo para isso. Ele herdou a paixão do pai, que morou em São Paulo no início dos anos 1970, época em que o Palmeiras contava com craques como Ademir da Guia, Leivinha, Luís Pereira e Emerson Leão.
A casa de três cômodos em que Ozino mora com a mãe e as duas tias é inteiramente decorada com bandeiras, quadros, copos, almofadas, porta-retratos, relógios e uma infinidade de objetos do seu time do coração. Ele também faz questão de vestir, todo dia, a camisa alviverde. “Hoje eu estou de Palmeiras, e amanhã vou estar também. Faz uns três anos que eu não coloco outra roupa. Eu troco um uniforme do Palmeiras por outro”, ele conta.
Num canto da casa, Ozino guarda uma caixa com sete cadernos onde faz anotações de todos os jogos do time desde 2004. Estão lá, detalhados à mão, os nomes dos adversários, dos jogadores, as substituições, os técnicos e os placares de mais de mil partidas. “Temos que respeitar a história de quem fez a história”, diz ele, com orgulho, folheando um dos cadernos. Nem nas épocas de vacas magras sua relação com o time foi estremecida. “Já tive muita raiva de alguns jogadores, mas do time não. Mesmo se o Palmeiras perde feio, mais palmeirense eu fico.”
O professor de matemática José Mozer Viana, que dá aulas na única escola de ensino fundamental de Flamengo, conta que a adoração de Ozino é conhecida de todos no distrito cearense. “Quando o Palmeiras ganha, ele sai pelas ruas chamando os outros de ‘freguês’. É uma figura.” Apesar disso, Ozino nunca assiste aos jogos do time. Ele teve uma arritmia na primeira vez que o Palmeiras venceu a Libertadores, há 22 anos, e foi aconselhado por médicos a não repetir a dose. Quando o time joga, ele evita as emoções fortes – e só depois da partida se informa sobre o que ocorreu e como ficou o placar final.
Até outubro de 2020, Ozino trabalhava como carteiro da cidade, contratado pela prefeitura. A eleição municipal, contudo, encerrou seus oito anos de serviço, e agora ele está desempregado. “Aqui os empregos estão amarrados na eleição. Quando troca o prefeito, eles trocam funcionários”, diz.
“Por amor ao Flamengo” – informa o mosaico feito de pedras portuguesas na praça principal do distrito, que faz parte do município de Saboeiro, localizado a 440 km da capital Fortaleza. A maioria das suas poucas ruas é asfaltada, mas ainda restam algumas de terra batida ou de pedra tosca (espécie de paralelepípedo menos acabado). Dizem os moradores mais velhos que o nome do distrito está relacionado à terra vermelha da região e à cor dominante da população que primeiro se estabeleceu ali, no início dos anos 1930. Rubro no chão, negro na pele. Parafraseando o hino do time carioca, os moradores teriam um desgosto profundo se o nome fosse outro.
O prefeito Marcondes Ferraz (PDT), que governa Saboeiro pela terceira vez, explica que a região vive da agricultura e da agropecuária, mas sofre com a seca. “Faz uns seis anos que não chove direito aqui. Isso castiga muito a cidade e os distritos.” Além de viverem do campo e do gado, os flamenguenses produzem objetos de uso doméstico, de tapetes a panelas, que vendem a crédito em cidades do Maranhão, Piauí e Tocantins. Nessa atividade, os sacoleiros chegam a passar até vinte dias do mês fora do distrito.
E quem não torce pelo Flamengo em Flamengo? “Aí o pessoal pega no pé, não tem jeito”, diz o professor Mozer Viana, flamenguense e flamenguista, que de tão parecido com o jogador José Carlos Nepomuceno Mozer modificou o nome em cartório para incluir a alcunha do sósia. Mozer, o jogador, foi ídolo do Flamengo e zagueiro da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1990.
Nos últimos anos, Palmeiras e Flamengo dividiram os holofotes do futebol no país, com conquistas nacionais e continentais para os dois lados. Nesse período, a rivalidade entre os times cresceu nas redes sociais, até chegar aos jogadores, que frequentemente trocam provocações em músicas e dancinhas na comemoração dos títulos.
A alguns milhares de quilômetros de distância do embate travado no Sudeste, Ozino desdenha do adversário carioca. “Para mim, rival tem que ser da mesma cidade”, avalia. “O do Palmeiras é o Corinthians, mas, como o Vasco está mal, o Flamengo veio querer ser rival da gente. Só que eles são nossos fregueses!”
Alviverdes e rubro-negros decidiram a Libertadores de 2021 com final em jogo único, disputado no Estádio Centenário, em Montevidéu, no Uruguai. O distrito de Flamengo se preparou com pompa para a partida, com um telão na praça e um carro de som. Para decepção dos flamenguenses flamenguistas, o Palmeiras venceu na prorrogação por 2 a 1, sagrando-se tricampeão do torneio. O flamenguense palmeirense Ozino evitou desafiar a arritmia e se refugiou em sua cama, com o coração na mão. Mas vestido de verde, claro.