A Igreja Matriz de Santa Rosa de Lima era o xodó da população, que exigiu que se construísse uma nova igreja exatamente igual a ela FOTO: ACERVO DO INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE_IMOPEC_2001
Flor de plástico
O que aconteceu quando Jaguaribara foi inundada por um açude e deu origem à primeira cidade planejada do Ceará, com avenidas largas, casas e saneamento para todos
Paula Scarpin | Edição 64, Janeiro 2012
Sempre que um morador de Jaguaribara morria fora da cidade, o povo enlutado percorria os 15 quilômetros da estradinha até o encontro com a rodovia mais próxima para recepcionar o caixão e começar dali mesmo o cortejo. Num fim de tarde, em outubro de 1985, Giovane Araújo voltava de férias e avistou a multidão na entrada da cidade. “Deve ter morrido alguém importante”, pensou. Conforme se aproximava, só ouvia falar do prefeito Francini Guedes. “Tive a certeza de que você tinha morrido, homem”, disse recentemente Araújo em sua sala na Câmara dos Vereadores. Guedes, em visita à cidade, riu e explicou: “Eu tinha mandado avisar à população que estava voltando de Fortaleza com novidades sobre a barragem do Castanhão.”
“Rapaz, ouvi dizer que o Castanhão agora vai sair do papel e sua cidade vai ficar embaixo d’água”, dissera a Guedes outro prefeito da região, Franciné Girão, numa conferência na capital. “Imagina um prefeito saber de uma notícia dessas assim, em porta de travessa”, indignou-se Guedes. Para esclarecer tudo, falou com o governador Gonzaga Mota – que confirmou ter autorizado estudos preliminares para a construção da barragem.
O Castanhão era uma lenda em Jaguaribara, a quase 300 quilômetros de Fortaleza. As crianças aprendiam na escola que, em 1911, o geólogo americano Roderic Crandall, contratado pelo Serviço de Geologia e Mineralogia, havia descoberto no Boqueirão do Cunha um ponto ideal para represar o rio Jaguaribe e aumentar a oferta de água na área. Arquivado, o projeto voltara à baila em 1955, no governo de Juscelino Kubitschek, mas foi logo preterido pela construção da barragem de Orós. O tema ficou então bem menos popular que a morte de Tristão Gonçalves, revolucionário da Confederação do Equador que, segundo consta nos livros, foi morto numa emboscada nas adjacências, em 1825, pondo Jaguaribara no mapa e inspirando um marco de pedra como homenagem.
Trinta anos depois de Juscelino, no entanto, uma enchente do rio Jaguaribe ressuscitou o Castanhão. O governo estadual alardeou um projeto de açude fundamental para o desenvolvimento da região: ele garantiria o abastecimento de mais de 2,5 milhões de pessoas em Fortaleza, além de fornecer água para o complexo industrial e portuário de Pecém, planejado para ser polo siderúrgico e de refino de petróleo. A barragem teria potencial para gerar 22,5 megawatts de energia elétrica e produzir 4 mil toneladas de peixe por ano – sem falar no potencial turístico. Seu volume chegaria a 6,7 bilhões de metros cúbicos, três vezes maior do que Orós, e se justificaria para controlar as inundações: seguraria a água para irrigação nos períodos de seca e conteria as enchentes no baixo Jaguaribe nos anos chuvosos.
Localizada no médio Jaguaribe, Jaguaribara não era castigada por enchentes como a de 1985. A seca também não era um problema: com seus 610 quilômetros de curso, o Jaguaribe já foi o maior rio intermitente do mundo, mas fora perenizado com a construção de Orós. Dentro do limite do Polígono das Secas, a cidadezinha era tão verde que não parecia caatinga. Ficava à beira do rio, e a grande maioria de seus 8 mil habitantes vivia dele: quase todos na pecuária e na agricultura de subsistência nas vazantes, além de lavadeiras e pescadores. O governo alardeava as benesses do açude em panfletos e cartazes. Poucos duvidavam de que o sacrifício de uma cidade tão pequena fosse um mal necessário.
No intervalo de trinta anos entre a construção de Orós e o anúncio dos estudos para a construção do Castanhão, contudo, a “era das grandes barragens” havia passado na maior parte do mundo. Se no começo do século XX o represamento da água para abastecimento e geração de energia simbolizava o domínio do homem sobre a natureza, mais de cem anos depois estudos de impactos socioambientais tiveram peso na preferência pela construção de sequências de pequenas barragens em vez de uma só de grande porte.
Pelo menos em teoria, não era diferente no Brasil. Na enchente de 1985, engenheiros cearenses do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, o DNOCS, apresentaram um projeto defendendo a construção de doze barragens de médio porte na região. O Castanhão poderia ser uma delas, mas com apenas 1,2 bilhão de metros cúbicos – e não 6,7 bilhões. O projeto assinado pelo governo estadual, porém, veio de outra instituição, o Departamento Nacional de Obras de Saneamento, o DNOS, com sede no Rio de Janeiro, e pegou de surpresa os engenheiros cearenses com um plano de Castanhão com quase 7 bilhões de metros cúbicos – o equivalente a 2,5 Baías da Guanabara.
O engenheiro Cássio Borges, que foi diretor de Hidrologia do DNOCS por mais de vinte anos, posicionou-se de imediato contra a ideia da construção da imensa barragem e se tornou a voz mais estridente na luta. Borges compilou estudos e artigos de jornais e publicou em 1999 o livro A Face Oculta da Barragem do Castanhão. Nele, argumenta que o projeto com aquele volume de água seria de uma megalomania sem justificativas técnicas. No exemplar de A Face Oculta disponível na biblioteca municipal de Fortaleza, há uma dedicatória para o governador Tasso Jereissati, assinada pelo então presidente do sindicato dos engenheiros, com os seguintes apelos: “Confiamos na lucidez e no alto senso de responsabilidade de V. Exa.” e “Ainda há tempo.”
A primeira crítica de Cássio Borges dizia respeito à localização do açude: a apenas 150 quilômetros do mar, na área mais irrigada do estado. Segundo ele, o DNOCS nunca projetou uma barragem naquele local porque ela estava longe de ser uma prioridade. “As obras-chave para regularizar o abastecimento do estado deveriam ser Banabuiú, Castanheiro e Aurora”, disse-me Borges. “Esta última seria capaz de distribuir as águas do rio São Francisco pelos estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, além do Ceará, e com um custo de construção até oito vezes menor que o do Castanhão.”
Borges afirmou que o volume ideal de armazenamento do açude é de apenas 1,2 bilhão de metros cúbicos. “Toda barragem acima de sua capacidade ótima de acumulação só serve para evaporar”, escreveu. Segundo ele, um espelho d’água tão grande, numa área tão quente, teria uma evaporação de milhões de hectolitros. Com o volume de 6,7 bilhões de metros cúbicos, o Castanhão perderia 36 metros cúbicos por segundo para a atmosfera – cerca de dezoito caixas d’água por segundo. E o mais importante: se o açude fosse construído com 1,2 bilhão de metros cúbicos, a inundação da cidade de Jaguaribara seria poupada.
O engenheiro estranhou quando o DNOS publicou as informações técnicas do Castanhão, estimando a área do reservatório em quase 300 quilômetros quadrados. Rechecou as projeções com uma equipe e chegou a uma área inferior em mais de 50 quilômetros quadrados. Considerando o erro inadmissível, levou o assunto aos seus superiores, e a informação foi repassada ao DNOS – que se limitou a corrigir o cálculo e pedir sigilo.
O prefeito Francini Guedes usou o erro como argumento contra o projeto numa reunião com o governador Tasso Jereissati e o ministro encarregado da obra, Vicente Fialho. A revelação causou mal-estar e Fialho chegou a propor a punição de Cássio Borges. Guedes protestou e o assunto terminou ali.
A imagem do prefeito Francini Guedes em Jaguaribara, nas eleições municipais de 1982, não era das melhores. Nascido na vizinha Alto Santo, foi viver em Fortaleza, onde veio a cursar economia. Na faculdade, conheceu uma estudante de medicina jaguaribarense, com quem se casou. O pai dela era um médico influente na cidade que, ao saber dos planos do genro de fazer mestrado na França, convenceu Guedes a se candidatar à prefeitura, oferecendo seu apoio.
Ele ganhou por pouco e não tinha maioria na Câmara. Em busca de sustentação, aproximou-se de uma celebridade local, a irmã Bernadete Neves. A freira paraibana, branquinha e mignon, havia chegado a Jaguaribara poucos anos antes. Liderara uma missão da congregação Filhas do Coração Imaculado de Maria, e atuava na Comissão Pastoral da Terra, instituição da Igreja Católica, famosa por aliar a catequização à mobilização política.
O ex-prefeito e a freira são amigos até hoje. Bernadete frequenta a casa de Guedes em Fortaleza e serve de guru emocional para toda a família. Mas quando o assunto é política, o afeto é deixado de lado. A irmã está alinhada ao PT. O político, que já foi eleito duas vezes deputado pelo PSDB e presidiu o diretório estadual do partido, é tão convicto que tem um barco chamado Tucano I.
Na época da barragem, Bernadete e Guedes também tiveram reações opostas. A freira queria mobilizar a população para derrubar o projeto, e o prefeito, que dava a luta como perdida, acreditava que deveria garantir as indenizações da população. Guedes conseguiu uma verba do governo para que um grupo de Jaguaribara visitasse outras cidades que precisaram ser transpostas.
O grupo visitou a barragem de Sobradinho, na Bahia. Souberam que algumas famílias ainda não haviam sido reassentadas e começaram a se preocupar. Conheceram São Rafael, no Rio Grande do Norte, transposta para a construção da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, e a barragem de Itaparica, em Petrolândia, Pernambuco. Encontraram casas mal construídas, rachaduras, esgotos e fossas estourando, moradores que não haviam sido indenizados. A preocupação aumentou.
Bernadete Neves acionou sua rede de contatos e procurou orientação do Movimento dos Atingidos por Barragens. Com aliados também dentro do governo, a irmã e seus adeptos não faltavam a nenhuma reunião em que o assunto fosse o Castanhão. “A gente saía de Jaguaribara às três da madrugada, ia de ônibus ou caminhão, o que desse, levando uma panela de comida”, disse. “Às vezes, as cadeiras estavam todas reservadas, mas a gente fazia de conta que não via, se sentava no chão e exigia a palavra.” Ela abriu um armário de ferro, na casa paroquial de Jaguaribara, e mostrou as prateleiras de pastas etiquetadas em que guarda atas das mais de mil reuniões que frequentou desde o anúncio da construção da barragem.
A Associação de Moradores de Jaguaribara foi fundada em 1989, quando se abriu a concorrência para a construção da barragem. A primeira ação da Associação foi recolher 229 assinaturas apontando a inconstitucionalidade do edital, já que não constava dele o obrigatório Relatório de Impacto Ambiental. Jeso Freitas, o primeiro presidente da entidade, lembrou com saudade desse período crítico: “Era uma cidade onde não acontecia nada, e de repente todo mundo precisou se unir para defender o lugar em que a gente cresceu: era reunião na praça, viagem, peça de teatro, debate.”
Bernadete Neves conheceu as irmãs Célia e Fátima Guabiraba, que trabalhavam na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em Fortaleza e começavam a organizar o Instituto da Memória do Povo Cearense, um misto de museu, biblioteca, editora de livros e produtora de filmes. A convite de Bernadete, elas foram a Jaguaribara e organizaram oficinas de fotografia, teatro e cordel, e fizeram registros de reuniões e festividades. Célia Guabiraba conseguiu uma câmera com um amigo e produziu Castanhão: A Resistência de um Povo. Intercalando cortes bruscos, imagens tremidas de entrevistas e discussões dos moradores, mostraram no vídeo uma entrevista do ministro Vicente Fialho na televisão defendendo a barragem. Ao final, um grupo de jovens cantava o hino de Jaguaribara, que acabara de ser composto: “Estão querendo destruir nossa cidade/ Com a barragem Castanhão/ Adeus, Jaguaribara/ Adeus, meu coração.” Ao violão, com um cabelo vasto, barba e 20 quilos mais magro, Jeso Freitas, o presidente da Associação, lembrava um revolucionário dos anos 60.
Como o governo estadual havia pedido um financiamento de 350 milhões de dólares ao Banco Mundial, a Associação de Moradores convenceu mais de 2 mil pessoas a enviar cartas pedindo que o dinheiro não fosse liberado. Algumas das cartas eram confusas: diziam que a construção do açude contribuiria para a destruição da floresta amazônica. O Banco Mundial reestudou o projeto e julgou o pedido improcedente. Após dez anos de indefinição, no final de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou a ordem de serviço para que fossem iniciadas as obras de construção da barragem.
Olhando para trás, vejo esse período como uma época de contracultura, de tropicália de Jaguaribara, guardadas as proporções”, disse Honorina Queiroz no gramado de sua casa, em nova Jaguaribara, usando a internet sem fio em seu notebook. Professora de geografia e filosofia na rede estadual, ela viveu a agitação na adolescência. “A gente sabia que a cidade ia durar pouco, então aproveitava cada cantinho, não saía de dentro do rio, fazia piquenique, pescava e assava o peixe ali”, contou. “E havia uma preocupação em registrar tudo, todo mundo estava produzindo teatro, poesia, cordel.”
Enquanto a nova cidade ainda estava sendo construída, Honorina foi conhecer as obras e ficou encantada com as casas novas, as ruas largas, a escola, as praças. “Mas, quando a gente voltou à velha Jaguaribara, a ficha caiu”, lembrou. “A gente olhava aquela esquina em que a gente tinha namorado, a casa de nossos avós, e entendeu que logo nada mais daquilo ia existir. Foi o maior chororô.”
Célia Guabiraba convidou um grupo de jovens para organizar a Casa da Memória de Jaguaribara. Os integrantes batiam de porta em porta e perguntavam aos moradores se gostariam de doar algum objeto para o museu da cidade. Entre as relíquias, estão um banco de madeira de mais de 200 anos, a camisa com marca de bala e sangue que o pai de uma moradora vestia quando foi assassinado, uma garrafa de cerâmica que passou por três gerações e a bicicleta colorida de uma criança que quis participar das doações.
O professor de educação física Ivan Bezerra depositou três grandes álbuns de fotografia sobre a mesa de jantar. Preferiu ele mesmo manusear os volumes, abrindo com cuidado as capas aveludadas e virando delicadamente os papéis de seda. Meses antes de o Castanhão cobrir a velha Jaguaribara, ele contratou um fotógrafo profissional e fez questão de acompanhá-lo para orientar uma a uma as 113 edificações que queria registrar.
“Sei que todo mundo sofre, mas a dor de ninguém aqui se compara à minha”, disse, ao fechar o último álbum. E explicou: a história da família Bezerra se confunde com a história de Jaguaribara. O território onde ficava a antiga cidade era originalmente um sítio de propriedade dos avós de Ivan Bezerra. Segundo ele, foi a solidariedade cristã que fez seus parentes doarem parte significativa do território original para a construção de prédios públicos, de moradias humildes, de ruas, da praça principal e da própria igreja matriz.
Nova Jaguaribara começou a ser construída em 1995. Ivan Bezerra achou que receberia uma gorda indenização pelas terras. Mas a maioria delas não era escriturada, ou o usucapião estava valendo havia muito tempo. Restava a alternativa de que as terras escrituradas fossem recompensadas. Quase caiu para trás quando soube qual era o valor da indenização pelo metro quadrado de suas terras: entre 15 centavos e 4 reais, no máximo. Precavido, pesquisara quatro cidades da região, e soube que em Tabuleiro do Norte o metro quadrado valia 90 reais. Quando passou a informação para o grupo encarregado da mudança, riram dele. “Nunca me senti tão humilhado”, disse. “E tanto que a minha família fez por essa cidade.”
Ivan Bezerra foi o último a deixar Jaguaribara. Na cidade nova, passou muito tempo fechado em casa. Toma antidepressivos até hoje e se consulta com um psicólogo em Fortaleza. Dez anos depois, mais forte, pretende se candidatar à prefeitura.
O DNOCS assumiu tanto a construção da barragem quanto a da nova cidade. O Departamento encomendara uma pesquisa de seis alternativas para a relocação a uma empresa de consultoria. Foram estudadas as características físicas, como geologia, relevo, recursos naturais e vegetação dos lugares onde se poderia fazer a nova cidade. Verificou-se também o impacto ambiental e o potencial econômico de cada local para desenvolvimento da população. Os habitantes escolheram a nova localidade. Ela ficava na junção de Jaguaribara com três outros municípios – que também precisaram submeter suas populações a um plebiscito para autorizar a construção.
Falava-se que seria uma cidade moderna, com uma igreja nos moldes da de Brasília ou de Pampulha. Mas a Igreja Matriz de Santa Rosa de Lima era um xodó da população, que exigiu que a nova igreja tivesse os moldes da antiga. O governo do estado assumiu o projeto de reassentamento e formou um grupo com a socióloga Afonsina Lima e os arquitetos Marcelo Colares e Luiza Marilac. Eles praticamente moraram na cidade durante sete anos, tentando envolver a população no projeto. O trio alugou uma casa e passava quase toda a semana ali, frequentando rodinhas de senhoras nas calçadas, botequins, tomando banho de rio com as lavadeiras. “Nunca assisti a tantas missas na minha vida”, disse Colares. Para ele, o projeto do DNOCS “não era ruim, mas desagradava porque tinha sido imposto”.
O modelo da igreja também foi votado num plebiscito. Em seu apartamento na praia de Iracema, em Fortaleza, Afonsina Lima contou que, tentando usar uma linguagem apropriada à população, a pergunta do plebiscito era: “Você prefere que a nova igreja seja: igual / igual, mas maior / ou diferente?” Ela se lembrou às gargalhadas de uma cédula que veio com a observação: “Vocês, doutores, querem parecer inteligentes… mas se é igual, não pode ser maior, se é maior, não é igual!” Ainda assim, essa alternativa foi a que ganhou.
O arquiteto encarregado tentou mudar os altares dos santos, mas a população, revoltada, exigiu que tudo fosse exatamente igual. As imagens sagradas foram transportadas num carro do Corpo de Bombeiros, como numa romaria motorizada, seguida por dezenas de ônibus, carros e motos. Antes da demolição da igreja velha, o altar passou por uma “dessacralização”, feita por um padre.
Marcelo Colares explicou por que os prédios todos tiveram que ser demolidos: “Além de a água do Castanhão ser destinada ao consumo humano, e os prédios juntarem lodo e micro-organismos, eles não foram construídos para se sustentar embaixo d’água. Poderiam acontecer acidentes tanto em embarcações quanto com algum mergulhador gaiato que resolvesse visitar a igreja submersa.”
O Parque da Saudade foi a primeira obra concluída na nova Jaguaribara. O cemitério da cidade velha encerrou suas atividades dois anos antes da mudança. Os que morreram no intervalo foram os primeiros habitantes da nova cidade, construída a 55 quilômetros da original. Os corpos que estavam enterrados no antigo cemitério foram exumados depois da mudança dos vivos, e organizados em gavetas no Parque da Saudade. O solo também foi removido e preenchido com cal virgem – exigência do Relatório de Impacto Ambiental. Como o Castanhão era voltado para consumo humano, não poderia haver vestígios de restos mortais na velha Jaguaribara.
Estagiários e arquitetos desenharam a planta da cidade velha e organizaram uma tabela indenizatória. Havia cinco tamanhos diferentes de casas, de 50 a 150 metros quadrados. Cada morador ganharia uma casa igual ou maior que a antiga. Quem tivesse mais de um imóvel, ou um com mais de 150 metros quadrados, receberia o restante em indenizações. Quem morava de aluguel ou de favor, receberia um imóvel menor, de 36 metros quadrados.
Havia ainda quem preferisse receber apenas o dinheiro da indenização, para reconstruir a vida em outra cidade. Houve um único caso, de uma senhora, que quis o terreno e a indenização da casa em dinheiro, para construir a nova como bem entendesse. Era Luzia Brejeira, a cafetina de Jaguaribara. Vislumbrando o lucro nos peões carentes, foi a primeira a partir, com suas meninas, para a cidade ainda em construção. Dito e feito: no seu terreno, os peões construíram uma mansão em troca de favores.
Para cada tamanho de casa, os arquitetos desenharam três plantas diferentes, “para não ficar parecendo conjunto habitacional”, como explicou Colares. Todos queriam morar perto de seus antigos vizinhos, mas montar essa vizinhança era um quebra-cabeça. Como os imóveis eram maiores, a área urbana da cidade saltou de 50 para 300 hectares. Por causa disso, precisaram aumentar o número de praças, já que as Nações Unidas recomendam 16 metros quadrados de área verde para cada habitante.
Como a população tinha a palavra final, os arquitetos faziam campanhas quando consideravam uma modificação essencial. Foi o que ocorreu com o revestimento de paralelepípedos nas ruas. “É muito mais caro do que o asfalto, mas é muito melhor em termos de drenagem do solo, de dissipação do calor e até de limite de velocidade”, justificou o Colares.
Mas não houve tempo para discutir os novos jardins, e contrataram um técnico da Embrapa para assessorar o plantio de rua. O técnico enfatizou que, por ser uma área virgem, era preciso ter cuidado redobrado: uma vegetação estranha ao ecossistema da região poderia causar o desequilíbrio ecológico. Só se usou mata nativa. E como uma árvore leva anos para crescer, foi necessário trazer 10 mil árvores já grandes da mata para a cidade. “Admito o erro porque aprendi com ele”, disse Colares. “Para retirar cada árvore, foi necessário abrir uma clareira.”
Quando as obras terminaram, em agosto de 2001, foi organizado um cronograma de mudanças rua a rua. Na noite anterior, em cada rua se fazia uma festa de despedida. O cineasta cearense Rosemberg Cariry registrou algumas delas. Em quatro fitas de material bruto, há inúmeras imagens de velhinhos tocando forró em ruas de terra batida, com pouca iluminação, e casais dançando juntinho – tudo em ambiente de velório.
A Granero foi contratada para fazer a mudança. Doentes, idosos, grávidas e mulheres com crianças de colo foram transportados de ambulância. Em 25 de setembro de 2001, o governador Tasso Jereissati inaugurou a cidade de nova Jaguaribara com uma solenidade na praça da Igreja Matriz, seguida de uma missa campal em que o discurso preponderante era uma analogia com a chegada à Terra Prometida. No fim, subiu ao palco o cantor Fagner, que animou a festa madrugada adentro. A freira Bernadete Neves não quis tomar parte. Mas, fã de Fagner, dormiu na casa paroquial para poder escutar o show.
Pouco tempo depois da mudança, Colares foi chamado às pressas para acudir um fenômeno. Hordas de insetos de toda sorte haviam invadido a cidade e consumiam mantimentos, portas e móveis. Como a ideia das plantas nativas não fizera sucesso – alguns moradores não queriam “mato” na frente de casa –, substituíram a árvore da caatinga, sem folhas nove meses por ano, por outras de sombra aconchegante. Foi necessário fazer um bloqueio químico na cidade para acabar com a praga.
A maioria dos moradores da zona rural preferiu não se mudar imediatamente. Circulava o boato de que a barragem levaria mais de dez anos para subir, e eles esperavam a concretização dos projetos de irrigação, pecuária ou pesca antes de abandonar suas casas. Dona Odá e o marido, Chico Moreira, decidiram ficar um pouco mais até venderem os animais e se aposentarem. Dona Odá, no entanto, se sentiu mal e desmaiou. Passou por neurologista, psiquiatra e fez uma batelada de exames em Fortaleza. O diagnóstico foi depressão clínica por medo da mudança. Chico Moreira ficou no sítio, mas começou a ter medo de assaltos. A região estava deserta, muita gente tinha ido embora, as linhas de telefone haviam sido cortadas e ele ouviu dizer que havia saqueadores se aproveitando da situação. Numa noite, ouviu um barulho e encontrou dois homens dentro de sua casa. Ágil aos 70 anos, ele os espantou com uma espingarda. Vendeu o restante dos animais muito abaixo do preço e foi embora no dia seguinte.
Primeira cidade planejada do Ceará, nova Jaguaribara é a única do estado com 100% de saneamento básico – Fortaleza não chega a 60%. Planejada para crescer até 75 mil habitantes, poderia ter sido idealizada pelo barão Haussmann: suas ruas e calçadas são largas e têm canteiros centrais. Não há cruzamentos, apenas retornos e rotatórias. Predominam as vias de mão única. Os novos prédios públicos têm arquitetura moderna e foi construído até um aeroporto com capacidade para voos comerciais. O ponto de encontro da velha Jaguaribara, a pracinha da Igreja Matriz de Santa Rosa de Lima, migrou com o mesmo nome, mas ganhou outras treze concorrentes.
Dez anos depois da mudança, entretanto, a cidade nova continua com os mesmos 8 mil habitantes, em sua maioria aposentados ou desempregados. Os poucos donos de carros na cidade não veem necessidade de obedecer aos retornos e rotatórias, a mão dupla é a regra em todas as faixas. No “perímetro urbano”, não é mais permitido plantar e criar animais para consumo na cidade. A arrecadação de impostos, que já era inexpressiva, diminuiu. Todos na cidade, até a secretária que lhe oferece um cafezinho, tratam o prefeito Edvaldo Almeida Silveira por “Bacurau” – uma ave que dorme pouco e, segundo ele, uma referência ao fato de ser trabalhador. Ele alega que ficou impossível arcar com os gastos do município sem uma contribuição gorda. Até o ano passado, pingava na conta da prefeitura uma cota de 96 mil reais do governo estadual, e a conta não fechava. Bacurau pediu o dobro da cota para janeiro, e a burocracia travou o processo: até a cota de sempre parou de ser depositada. Como solução emergencial, o prefeito optou por cortar gastos.
Sentado numa cadeira de plástico em sua sala, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaguaribara apontou para um vasto terreno seco e cercado em frente à sua casa. “Nosso projeto de irrigação é esse tabuleiro aí, que está assim há oito anos”, disse Francisco Saldanha. “A promessa é que teremos pecuária leiteira, mas ainda nem plantaram o capim – e depois de plantado, ainda leva noventa dias para o gado poder comer.” Aos 76 anos, ele sempre viveu do trabalho de subsistência. “A gente tem uma casa boa, que não tinha lá, mas sempre tinha alguma vaquinha para comer, um açude para ir pescar, ninguém passava necessidade. Nós temos água encanada aqui, mas a gente não tem dinheiro para pagar, então a gente usa pouco. Tem gente que a cada três meses vende um animal para pagar a água.”
Saldanha começou a tirar galões do canal que está sendo construído para transportar a água do Castanhão para o porto de Pecém e a capital. Seguranças armados, que vigiam o canal dia e noite, avisaram que isso não era permitido, mas ele insistiu. Um dia, chegando ao canal, foi cercado por um grupo de seguranças e policiais. “Disseram que ninguém pode mexer na água. Respondi que quando a gente veio para cá a promessa não foi essa. E agora é para servir a Fortaleza e nós aqui sofrendo?” Acuado, vendeu as vacas e hoje só cria galinhas.
“Não tiro uma vírgula do que escrevi no meu livro”, disse Cássio Borges. “Hoje o Castanhão não serve para nada além da piscicultura, função que o rio Jaguaribe já exercia na velha Jaguaribara.” Para o engenheiro, o canal com capacidade de 26 metros cúbicos por segundo que está sendo construído para transportar água do açude para Fortaleza e Pecém é obsoleto. “Pecém só precisaria de 3 metros cúbicos por segundo, e Fortaleza até agora não precisou de uma só gota do Castanhão”, disse. “É possível que no futuro venha a precisar, mas é para isso que está sendo feita a transposição do rio São Francisco.”
Muitas famílias ainda viviam espalhadas pelo campo na região que seria coberta pelo Castanhão em 2004. As comportas haviam sido abertas, mas o açude dependia da chuva para atingir sua capacidade máxima. Naquele ano, a estação chuvosa foi intensa, e muitos moradores foram pegos desprevenidos. Giovane Araújo, presidente da Câmara de Vereadores, foi convocado às pressas para resgatar as famílias com um helicóptero. “Imaginei que ninguém ia querer subir no helicóptero, mas fiz a primeira tentativa”, disse. Não deu outra. Muita gente já estava presa em ilhas formadas pelas áreas mais altas. Araújo não conseguiu resgatar ninguém assim.
Voltou para a terra e seguiu de barco no resgate. Passou 21 dias dormindo no Castanhão, embaixo de chuva, comandando o resgate das famílias. Nenhuma pessoa morreu afogada, mas não foi possível salvar todos os animais. “O jumento, por exemplo, paralisa”, explicou. “Eu fazia uma viagem com uma família e, quando voltava, ele estava com a água na barriga. Mais uma viagem, e ele com água no pescoço. Na terceira, estava morto. Não sei qual é esse instinto dele, de não procurar sobreviver.”
“Eu nunca tive um sonho que se passasse aqui, na cidade nova”, disse a mãe de Giovane Araújo, dona Loló, sentada numa cadeira de balanço no seu alpendre. “Eu gostava daquela vida mais simples. O marido ia pescar no rio que passava atrás de casa, eu cozinhava para as crianças. Quando a gente chegou, o velho adorou a cidade, dizia que isso aqui era o progresso. Mas ele não durou vinte dias, logo morreu de uma barriga d’água que trouxe de lá.”
Na velha Jaguaribara, dona Loló gostava de pôr a cadeira na calçada e ficar até a noite conversando com os vizinhos. Como as casas eram conjugadas, todos moravam perto. “Hoje quase não se vê esse convívio, parece uma cidade-fantasma”, disse. Logo que se mudou, se perdia com frequência nas ruas da nova Jaguaribara. Nas poucas vezes em que saía de casa, para ir à missa, ia para um lado diferente. Quando encontrava um conhecido, tinha vergonha de perguntar para que lado era a própria casa: “Para me prevenir, parei de ir à missa de sandália de salto.”
Além de muitas pessoas se perderem porque as casas eram parecidas, muita gente se incomodava com o fato de os vizinhos passarem por dentro dos quintais para cortar caminho. Não demoraram a subir muros e personalizar os imóveis com cores diferentes e texturatos.
Segunda-feira é dia de missa no cemitério em Jaguaribara. Como os moradores decidiram em plebiscito pelo modelo de cemitério-parque, sem jazigos, o único vestígio simbólico para diferenciar a popularidade dos defuntos (ou o peso do luto dos remanescentes) são os arranjos de flores. Em meio a uma monotonia de crisântemos, murchos ou de plástico, reina soberano um túmulo com um arranjo fresco de rosas brancas no formato de um coração, e a clássica inscrição “Saudades de amigos e familiares”. O corpo de Idelfonso Maia Cunha jaz ali há um ano, mas seu séquito de fãs mantém o túmulo impecável. Ele foi o responsável pelo preenchimento de várias valas no Parque da Saudade.
Matador profissional nascido no município de Alto Santo, mas jaguaribarense de coração, ele esteve na capa de uma revista Isto É de agosto de 1988, sob o título de “O maior matador do Nordeste”. Acusado de mais de quarenta mortes, cumpriu quase vinte anos de pena e vivia entre Jaguaribara, onde deixou três viúvas, e Fortaleza, onde foi morto. “Acho que veio mais gente no enterro dele do que na inauguração da cidade”, lembrou Jeso Freitas durante uma visita ao cemitério. Ex-presidente da Associação de Moradores e coordenador da Casa da Memória de Jaguaribara, Freitas contou que o povo tem certa simpatia pela figura de Cunha, que representava o pistoleiro nordestino à moda antiga: conquistador, vingativo, e justiceiro em muitos casos. “As pessoas o comparam com os traficantes hoje e o veem com nostalgia”, disse.
Poucas horas antes de uma missa no cemitério, a funerária Anjo da Guarda preparou uma festa de inauguração no centro de nova Jaguaribara, com sorteios de brindes e música alta. A três quadras dali, um rapaz entrou correndo numa barbearia, seguido por um homem armado que atirou nele, no barbeiro e em um cliente. O rapaz morreu na hora, mas os ferimentos no barbeiro e no cliente não foram graves. Segundo se espalhou rapidamente, o rapaz vendia cocaína para um traficante rival, e foi morto para servir de exemplo. Mortes como essas são comuns na nova Jaguaribara, e houve quem brincasse que o dono da funerária era, na verdade, o traficante. Uma semana antes, os moradores vizinhos ao cemitério ouviram gritos de socorro e barulhos de tiros vindos do terreno ao lado. Na manhã seguinte, encontraram o corpo de um rapaz. “Essa escuridão também facilita”, acredita Jeso Freitas.
No ano passado, a Companhia Energética do Ceará ganhou o direito de cortar a iluminação pública de Jaguaribara, depois de sete meses de inadimplência geral. O prefeito Bacurau explicou a situação assim: “Pensa num jovem que ganha um carrão do pai, mas não tem nenhuma renda. O pai precisa pagar as prestações, pôr gasolina e pagar também o estudo do filho até ele poder se manter e manter o carro sozinho.” O prefeito está no final de seu terceiro mandato, o primeiro deles na cidade nova. O carrão a que ele se refere é a nova Jaguaribara, o caprichado prêmio de consolação que os habitantes da cidade original ganharam quando ela foi condenada pela construção do açude Castanhão.
Jeso Freitas critica o fato de o prefeito passar por cima de resoluções do plano-piloto da cidade, autorizando a liberação de quiosques nas praças e as casas populares com a metragem inferior à mínima de 75 metros quadrados, e até sem saneamento básico. Para Bacurau, não há conflito em liberar o comércio numa cidade em que o desemprego é o maior problema. “Outros grandes comerciantes também desobedeceram ao plano-piloto e construíram um 2º andar na loja, mas disso ninguém fala”, disse. “Só o pobre é criticado porque é visto como estorvo.”
Segundo ele, a companhia de água deve providenciar em breve o saneamento das casinhas, e não houve precipitação porque era uma urgência, “até mesmo porque na outra cidade não existia saneamento básico e todo mundo vivia bem”. Para ele, “o plano diretor foi rasgado há muito tempo – e tinha que ser rasgado, porque era um sonho”.