Incêndio provocado pela expansão da pecuária numa área de floresta, em imagem feita em setembro de 2019: “Há uma nuvem de fumaça parada sobre nós. O sol saiu, mas a fumaça o está encobrindo. Estou me sentindo no maior churrasco do mundo, e a Amazônia está virando carvão à minha volta” CREDITO: VICTOR MORIYAMA_2019
A floresta em chamas
A época das queimadas na Amazônia está chegando. O que virá?
Joice Ferreira | Edição 180, Setembro 2021
“Funai ‘importa’ índios para dança da chuva.” Essa era uma das manchetes de página interna de uma edição da Folha de S.Paulo, em março de 1998, quando eu ainda fazia mestrado em ecologia, na Universidade de Brasília (UnB). A notícia se referia à decisão da Fundação Nacional do Índio de levar índios caiapós ao estado de Roraima para que fizessem o “ritual da chuva” numa região então assolada por megaincêndios. Segundo a tradição dos pajés, o ritual consiste em atrair a chuva batendo na água do rio com galhos de árvore ou com cipós que possuem água em seu interior. Na manhã seguinte à cerimônia, desabou um forte aguaceiro sobre Roraima. Mas, segundo os jornais, a meteorologia já fazia essa previsão e, dois dias antes do ritual, chovera um pouco em alguns lugares. Para além do fato lamentável de importar lideranças espirituais caiapós para fazer chover em terras yanomamis, o fato demonstrava a aflição das autoridades em conter os incêndios devastadores. A Folha informa que o Exército também ajudou com suas “técnicas científicas” de bombardeamento de nuvens. Professores da UnB que atuavam em pesquisas sobre fogo também foram convidados a participar do esforço de combate à grande tragédia ambiental que se instalara em Roraima. As chamas acabaram extintas pelas chuvas, em abril de 1998, mas os três meses ininterruptos de incêndios destruíram quase 3,5 milhões de hectares, dos quais mais de 1 milhão era de florestas úmidas. O fogo queimou 15% do estado de Roraima, atingindo inclusive a Terra Indígena Yanomami.
Os megaincêndios de Roraima foram resultado de uma seca prolongada, ocorrida entre 1997 e 1998, induzida por um forte El Niño – fenômeno climático que promove aquecimento anômalo das águas do Oceano Pacífico, reduzindo a força dos ventos e a entrada de umidade no interior da região amazônica. A seca extrema ressecou as florestas a tal ponto que elas se tornaram inflamáveis e começaram a pegar fogo. Se a catástrofe era consequência de um fenômeno natural, se poderia então entender que os incêndios eram inevitáveis? Um trio de autores – Ane Alencar, Adriana Moreira e Daniel Nepstad – elucidou a questão com a publicação de A Floresta em Chamas, em 1999. O livro atenta para a singularidade desses fenômenos: embora secas severas e incêndios tenham ocorrido nos últimos 2 mil anos na Amazônia, eles aconteciam em intervalos tão longos quanto quatrocentos a setecentos anos. Estudos com registros de carvão confirmam que, mesmo durante o período pré-colombiano, incêndios eram pouco frequentes na Amazônia.
Era sinal, portanto, de que algo novo vinha acontecendo. Em 1985, o biólogo Christopher Uhl e o ecólogo Robert Buschbacher, ambos norte-americanos, foram os primeiros a falar de um tal “sinergismo perturbador” entre as queimadas promovidas pela pecuária e a exploração madeireira nas florestas de Paragominas, no estado do Pará. Alguns anos depois, dois outros pesquisadores, Mark Cochrane e Daniel Nepstad, também norte-americanos, junto a uma equipe de pesquisadores, se debruçaram sobre imagens de satélite da Amazônia para comprovar suas suspeitas: o pico de “desmatamento”, registrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em 1995 – 30 mil km2 de florestas devastadas, a maior extensão da série histórica até hoje – era, em grande parte, produto do fogo. As florestas foram descaracterizadas de tal forma que apareciam como áreas abertas nas imagens. Os incêndios avançaram floresta adentro, facilitados pelo clima seco, em razão do El Niño de 1992, e pela perda de umidade florestal decorrente da exploração de madeira. Os pesquisadores concluíram que “mais da metade” do que se chamou de “desmatamento” ocorreu, na verdade, devido ao escape acidental do fogo dos pastos para as florestas.
Os grandes incêndios florestais são sempre produto de uma interação entre vários elementos. O clima é um fator importante, mas não o único. As fagulhas das queimadas intencionais para limpar uma área ou renovar um pasto são essenciais para o fogo começar. Se a floresta continuasse intacta e úmida, como sempre foi desde os seus primórdios, o fogo não avançaria sobre ela. A explicação de Uhl e Buschbacher era simples: a exploração de madeira fazia fissuras no chão e no teto da floresta, o que tornava as florestas menos úmidas e, portanto, propícias ao fogo. “O resultado é um fogo de ocorrência tão comum que raramente encontramos uma floresta explorada em Paragominas que escapou dos incêndios nos últimos anos”, escreveram eles. Os autores ressalvaram que a exploração de madeira em si não seria grande motivo para preocupação, se fosse feita de forma seletiva e cuidadosa. Mas a prática se apresentava tão desmazelada que o estrago era enorme. “As motosserras derrubavam todas as árvores passíveis de colheita, cortando muito mais do que era realmente colhido […]. O resultado final são milhares de quilômetros quadrados de floresta cicatrizados com trilhas de correntão e carregados de madeira morta no chão que vai virar combustível.” Essa era a sinergia perturbadora revelada por eles. Mesmo que a intenção fosse explorar apenas as árvores com madeira de valor comercial, mantendo a floresta “em pé”, elas terminavam muito modificadas.
Durante os megaincêndios de 1998, tive aulas canceladas na UnB porque os pesquisadores de Brasília, que estudavam o fogo no Cerrado do Brasil Central, viajaram em socorro da Amazônia. A professora Heloísa Miranda, do Departamento de Ecologia da UnB, coordenava (e ainda coordena) o Projeto Fogo, idealizado em 1985, com a colaboração do biólogo Leopoldo Magno Coutinho, professor da Universidade de São Paulo (USP), um pioneiro em estudos de fogo no país. O projeto se somou a um esforço que pretendia entender os impactos do fogo em savanas mundo afora. Num trabalho minucioso, a equipe esquadrinhou centenas de hectares de Cerrado, tal qual um papel milimetrado. Cada quadrado foi submetido à queima em frequência e épocas distintas, e uma parte ficou intocada, para permitir a comparação científica.
Lembro-me vividamente da experiência de ter participado como observadora de uma queimada experimental do Projeto Fogo. O sol a pino castigava todos nós, estudantes de pós-graduação, enquanto contemplávamos a explosão de cores das chamas que ardiam no tapete de capim alto e ressecado, salpicado pelas árvores contorcidas do Cerrado que, aos poucos, iam ficando chamuscadas. A certa altura, no meio do calor infernal, percebi uma inquietação no nosso grupo com a altura vultosa das chamas. Começamos a nos abrigar como podíamos nas ferragens de uma torre de pesquisa próxima do experimento. Porém, a calma dos bombeiros paramentados e com equipamentos de segurança a postos sinalizava que não havia motivos para grande preocupação.
A colaboração de estudiosos do Cerrado com os da Amazônia, que eram então em número reduzido, é um intercâmbio rico porque os incêndios têm significados muito diferentes em cada região. Quem nasceu e cresceu em paisagens de Cerrado como eu, sabe bem que, pouco tempo depois do fogo, a vegetação queimada ressuscita das cinzas. Em plena seca, árvores como o pequi e “paus de todo nome” (pau-terra, pau-santo) puxam água das profundezas da terra, expandindo suas folhas brilhantes recém-nascidas e explodindo em flores – amarelas, roxas, de muitos coloridos intensos. É um ato de resistência ao castigo da seca. A vegetação típica de Cerrado é classificada como “dependente do fogo”. Seus ecossistemas evoluíram de forma que a ocorrência do fogo, de tempos em tempos, contribui para a manutenção de sua estrutura característica – aquele tapete de gramíneas salpicado por árvores – e uma biodiversidade surpreendente. No Cerrado, os incêndios ocorrem há milhares de anos provavelmente com intervalos menores que uma década. As árvores são conhecidas por sua casca grossa, com aparência de cortiça, que promove isolamento térmico e lhes confere proteção às altas temperaturas. Muitas espécies florescem sob estímulo do fogo.
A Amazônia, ao contrário, não evoluiu com o fogo. Por isso, não tem estratégias adaptativas para lidar com o tremendo estresse que envolve ser agredida por temperaturas próximas a 100°C dentro dos caules. A maioria das árvores amazônicas tem cascas tão finas que não ultrapassam 5 mm. Essa característica morfológica explica a alta mortalidade das árvores quando são submetidas aos incêndios. O próprio fogo nas florestas amazônicas é diferente: é baixo, suas chamas geralmente não ultrapassam 30 cm de altura, e a lentidão com que elas se propagam promove uma espécie de sofrimento lento aos ecossistemas. A vegetação amazônica, em oposição à do Cerrado, é classificada pelos ecólogos como “sensível ao fogo”.
É fundamental levar em conta essa distinção quando se comparam regiões distintas do planeta, como os ecossistemas savânicos e florestais do Brasil, ou entre nossos ecossistemas e regiões distantes, como a Califórnia ou Portugal. Os ecossistemas tolerantes às chamas, como é o caso do Cerrado, do Pantanal e da vegetação mediterrânea, podem se ressentir da ausência total do fogo – se simplificam, perdem diversidade biológica e, quando o fogo volta depois de um longo tempo, sofrem mais ainda, pois as chamas, alimentadas pelo combustível acumulado no chão, terão maior intensidade. Porém, o aumento na frequência e intensidade do fogo em várias partes do planeta, decorrentes das mudanças nas atividades humanas e das alterações no clima, têm afetado todos os ecossistemas, mesmo aqueles tolerantes ao fogo. Em uma publicação recente, um grupo de cientistas brasileiros demonstrou que o impacto catastrófico dos incêndios vem ocorrendo em todos os biomas do Brasil. No ano passado, as cenas mais chocantes surgiram do Pantanal, quando um incêndio de proporções inéditas consumiu quase 30% da região.
Em 2006, oito anos depois dos megaincêndios em Roraima, eu já tinha concluído minhas pesquisas de doutorado em Cerrado e na transição Cerrado-Amazônia, no laboratório da professora Mercedes Bustamante, e estava começando a trabalhar como pesquisadora da Embrapa, a maior instituição de pesquisa agropecuária do país. Era na Amazônia, em Belém. No trabalho, pude interagir com vários pesquisadores que dedicavam suas vidas à Amazônia.
Na mesma época, tive oportunidade de participar de uma conferência em Oxford, na Inglaterra, para discutir o futuro da Amazônia à luz das mudanças climáticas. As discussões ocorriam em prédios com paredes escurecidas pelo tempo e museus de história natural que exibiam enormes esqueletos de dinossauros e baleias pré-históricos suspensos por fios presos no teto. Lá, encontrei o pesquisador inglês Jos Barlow, que estivera no Brasil pouco depois dos megaincêndios em Roraima decidido a estudar os impactos ecológicos do fogo na então recém-criada Resex Tapajós-Arapiuns, uma das reservas extrativistas de uso sustentável mais populosas da Amazônia. Participavam da conferência estrangeiros e brasileiros, muitos dos quais faziam parte do programa de pesquisa LBA, fruto de uma parceria entre a Nasa e o governo brasileiro, um marco histórico que permitiu uma ascensão vertiginosa das pesquisas ambientais na região amazônica. (A sigla LBA – que significa Experimento de Larga Escala na Biosfera-Atmosfera na Amazônia – dá nome ao maior programa de cooperação científica internacional criado no país, cujo propósito era investigar as interações entre a Floresta Amazônica e as condições atmosféricas e climáticas em escala regional e global. Muitos jovens cientistas brasileiros, como eu, se beneficiaram do intercâmbio científico promovido pelo LBA.)
Em Oxford, entre números, modelos matemáticos, mapas coloridos e gráficos mostrados pelos colegas cientistas, discutíamos os riscos para a Amazônia decorrentes de uma gama de fatores – da mudança de uso da terra, do aumento das secas e incêndios, impulsionados pelo desmatamento local e pelo clima global. Tudo tinha ligação com as “sinergias perturbadoras” testemunhadas por Uhl e Buschbacher em Paragominas décadas antes. Agora, porém, o quadro era mais dramático.
Falava-se em uma multiplicidade de pressões combinadas. O termo Amazon dieback – expressão em inglês para se referir à probabilidade de transição da Amazônia para um estado diferente do que ela é atualmente – era usado com frequência. Ainda hoje não há propriamente um consenso sobre qual será esse estado, mas é certo que será muito mais pobre em espécies e em biomassa. Entre uma palestra e outra, as conversas leves e informais amenizavam a pressão que sentíamos pelas catástrofes previstas pelos diferentes grupos de cientistas. Pude ouvir histórias de trabalho de vários colegas. Jos Barlow contou sobre o ano em que residiu na reserva do Tapajós mensurando as mudanças drásticas provocadas pelos incêndios nas plantas e na fauna das florestas amazônicas. A conversa seguia proveitosa, junto com outro colega britânico, o ecólogo Toby Gardner, que também realizava pesquisas no Brasil, quando Barlow nos contou que a vegetação da reserva fora tão transformada pelos incêndios que todas as espécies de plantas normalmente associadas à floresta preservada foram substituídas por bambus, cipós, pequenos arbustos e árvores pioneiras, como são chamadas as que chegam primeiro depois de um distúrbio. (Barlow continua liderando equipes de pesquisa que medem, contam e recontam os impactos do fogo na região, com o objetivo de entender seus efeitos de longo prazo sobre a fauna e a flora, além do próprio funcionamento das florestas.)
Em 2008, um ano após o evento em Oxford, saiu uma edição especial de uma revista científica resumindo o conjunto de temas discutidos durante a conferência. Os artigos eram catastróficos, tal como fora antecipado na conferência, mas havia pelo menos uma boa notícia. Naquela época, as taxas de desmatamento na Amazônia vinham caindo ano após ano – caíram em 2005, 2006, 2007 – embora ainda passassem da marca de 10 mil km2. No mesmo ano de 2008, Barlow, Gardner e eu nos reencontramos em um evento científico em Belém. Dessa vez, as conversas ocorreram no Museu Emílio Goeldi e na Embrapa. O açaí cremoso e brilhante, prova de frescor para os locais, havia substituído o chá preto dos ingleses. Nesses encontros, fomos amalgamando, pouco a pouco, vários projetos de pesquisa, que agregariam cientistas de Norte a Sul do Brasil e de outros países, incluindo o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia “Biodiversidade e Uso da Terra na Amazônia”, coordenado por Ima Vieira, do Museu Goeldi.
Ali surgiram os alicerces da Rede Amazônia Sustentável (RAS), que Barlow, Gardner e eu cofundamos, reunindo cientistas de mais de trinta instituições, com o objetivo de entender com mais profundidade os impactos e a resiliência das florestas amazônicas aos distúrbios provocados pelo ser humano, como desmatamentos, incêndios e extração ilegal de madeira. De lá para cá, temos feito progressos, mas o clima de otimismo não é mais o mesmo. Recentemente, ao assistir ao documentário Jari, de Jorge Bodanzky, realizado em 1979, fui tomada por um certo esmorecimento ao ver que, já naquela época, os cientistas – como José Lutzenberger, da USP – vinham alertando para os riscos de mudanças climáticas, associadas às mudanças de uso da terra na Amazônia. Um pouco mais tarde, nos anos 1990, a equipe de Daniel Nepstad, um dos autores de A Floresta em Chamas, já se referia ao problema do fogo como uma “emergência crônica”.
Quem assiste na tevê às imagens aéreas dos incêndios na Amazônia faz pouca ideia de como o fogo afeta a vida das comunidades, o comportamento, a própria cultura – pois há um fogo que destrói e um fogo que sustenta. Em março de 2019, como parte das atividades de um longo projeto de desenvolvimento, um grupo de pesquisadores da RAS, ao lado de parceiros de diversas instituições, foi checar essa realidade de perto. Passava das 22 horas de uma noite quente quando nos reunimos no cais do Tapajós, em Santarém. Éramos um grupo grande, animado, como nas memoráveis viagens de jogos estudantis da faculdade que todos ali já haviam experimentado um dia. Todos especialistas em estudos de fogo de diversas áreas – ecologia, sociologia, sensoriamento remoto, educação, comunicação – vindos de Belém, de São Paulo, da Inglaterra, para se juntar aos locais, pesquisadores, gestores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e representantes da Tapajoara, a organização das associações comunitárias da Resex.
Do cais, seguimos viagem noite adentro pelas águas tranquilas do Tapajós, embora a calmaria fosse interrompida por ventos que traziam chuva e embalavam o emaranhado de redes dentro da embarcação. Ainda na madrugada, o barco atracou no banco de areia da Vila do Amorim, uma comunidade localizada mais ou menos no meio da Resex, às margens do Tapajós. A vila ficava num ponto equidistante entre Norte e Sul, adequado para receber a visita de moradores de comunidades de ambos os quadrantes. Ali, no galpão da escola comunitária, ocorreria nosso encontro. O sol já batia forte quando o local do evento, cuidadosamente adornado pelos anfitriões com cartazes e cortinas drapeadas, ficou repleto de homens, mulheres e crianças, que chegaram a bordo de voadeiras. A vista das janelas dava para um braço do imenso rio, onde meses antes as areias brancas formavam praias contornadas pelas águas esverdeadas e transparentes.
O biólogo Filipe França, pesquisador da RAS, e eu, que coordenávamos a iniciativa, apresentamos logo aos comunitários a proposta para construirmos em conjunto soluções para os incêndios no âmbito do projeto Sem-Flama, montado pela RAS. Nos anos anteriores, em 2015 e 2017, a região tinha sido, mais uma vez, atingida por megaincêndios. O presidente do sindicato de Santarém, filho da Resex, nos confidenciou com expressão de grande preocupação: “Mais um incêndio desse e não teremos condição de suportar, temos que dar um jeito para não deixar acontecer mais, seria o fim.” Uma de nossas metas é adaptar um sistema de alerta de risco e monitoramento de incêndios para a Resex – uma ação coordenada por Liana Anderson, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
Começamos os diálogos e, pouco a pouco, os participantes foram perdendo a timidez e passaram a compartilhar suas histórias de vida e perspectivas acerca do fogo. Os pesquisadores faziam anotações sobre o que ouviam. Estávamos particularmente interessados em construir um conhecimento coletivo sobre algumas questões fundamentais. Queríamos saber o que estava contribuindo para que os incêndios saíssem do controle, o que poderia evitá-los, como reduzir o impacto dos incêndios sobre a vida das comunidades, quais soluções eles próprios vislumbravam. Foram várias rodadas de diálogos entre grupos de quatro até seis comunitários, separados em mesinhas e mediados por um membro do projeto. O que descobrimos foi preocupante.
Os agricultores tradicionais da Resex vêm sendo fortemente afetados pelos repetidos incêndios florestais. As perdas são diversas. O fogo não só afetou a saúde como também seus meios de vida. Consumiu árvores frutíferas, animais de caça, abelhas nativas, plantas medicinais e até mesmo o alimento em suas roças. Quando realizamos o mesmo encontro na Floresta Nacional do Tapajós (Flona do Tapajós), outra reserva de uso sustentável, separada da Resex apenas pelo Rio Tapajós, nossa equipe de pesquisa ouviu as mesmas preocupações. Seus depoimentos também indicam importantes transformações culturais. Um morador antigo da comunidade de Jamaraquá, dentro da Flona do Tapajós, logo desabafou: “O problema é que os jovens da comunidade não valorizam mais a floresta, como nós valorizamos. Gostaria muito de ter a ajuda de vocês, que vêm de fora, para trazer uns cursos para os nossos jovens e mostrar o valor da floresta para eles.” Uma senhora reclamou: “Antigamente fazíamos o puxirum. Hoje os vizinhos não se juntam como antes para vigiar os roçados uns dos outros, enquanto se faz a queima, nem temos mais pessoas suficientes na família para ajudar. Muitos jovens saíram daqui e os vizinhos estão ocupados, ou alguns não têm mais interesse de se reunir por causa da tevê e do celular.”
Puxirum significa “mutirão”, um costume tradicional, transmitido de geração a geração nas comunidades amazônicas. A ajuda mútua ocorre quando os vizinhos são convidados a colaborar nas atividades de corte e queima dos roçados, produção de mandioca e farinha, e depois restituem o vizinho dando a mesma ajuda. O momento da queima, ensinam os antropólogos, é um evento comunitário de importância sociocultural, mas, como diz a senhora da Flona do Tapajós, parece ser uma tradição em extinção.
Nós sabíamos que, no início dos anos 2000, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) havia iniciado um projeto na Flona do Tapajós realizando oficinas para prevenir incêndios por meio da pactuação de “acordos de manejo de fogo” entre os comunitários. Nesses acordos, os moradores da reserva se comprometiam a seguir regras de conduta, que incluíam, por exemplo, combinar com os vizinhos o dia da queima, realizá-la em horários menos quentes e com menos vento, junto a uma série de outras medidas visando diminuir a chance de o fogo escapar para as florestas vizinhas. Naquela ocasião, porém, nenhum deles fez menção explicitamente aos acordos enquanto buscávamos soluções plausíveis.
Na Flona do Tapajós ou na Resex, todos reconheceram que o fogo está aumentando porque o clima está ficando mais quente e mais seco, e também devido ao aumento contínuo das áreas desmatadas ao redor. A Flona do Tapajós é hoje uma espécie de ilha de floresta, cercada pelo Rio Tapajós de um lado e por cicatrizes de desmatamento em todos os outros. As bordas externas da reserva são queimadas todos os anos. “Hoje não damos conta de ficar na roça depois das dez da manhã, começamos o trabalho cedo pra voltar cedo”, contou outro morador, ao reclamar do calor excessivo.
Há 18 mil habitantes na Resex e 4 mil na Flona do Tapajós. Esses povos têm em comum a formação de roçados para a produção de alimentos essenciais, como mandioca, feijão e arroz. Os cultivos são produzidos, de forma itinerante, em cima da derrubada, seguida da queima, de florestas e capoeiras – palavra que, em tupi, significa “aquilo que já foi mata”. Por isso, a técnica é chamada de agricultura de corte e queima. Produz-se em um lugar, deixa virar capoeira e retorna-se ao mesmo lugar alguns anos depois. A capoeira, portanto, refere-se a uma vegetação que se encontra em regeneração depois que a floresta foi desmatada, cultivada e abandonada.
Os agricultores familiares e tradicionais usam o fogo como principal recurso ancestral para queimar as capoeiras e disponibilizar nutrientes, antes presentes na biomassa vegetal, para adubar o solo dos seus roçados. Sistemas alternativos ao corte e queima vêm sendo adaptados pelas instituições que atuam na região. É o caso do corte e trituração das capoeiras, por meio de tratores próprios para esse fim, método desenvolvido há décadas pelo Projeto Tipitamba, da Embrapa. Porém, para além da produção e manejo agrícola, o fogo também é um elemento central da vida material e espiritual de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais na Amazônia. É usado em rituais, comunicação, caça e abertura de trilhas.
Na Flona do Tapajós e na Resex, como em toda Unidade de Conservação (UC) de uso sustentável, o fogo é regulamentado pelo plano de manejo. Nelas, a área é dividida em zonas, incluindo habitação e uso, manejo florestal comunitário, preservação e amortecimento. A abertura de roçados é permitida apenas na zona de habitação, com o uso do fogo controlado e respeitadas as normas do acordo de gestão. Agricultores familiares fora de UCs também necessitam obter licença de queima e respeitar determinadas normas. Nas UCs, a abertura de roçados é monitorada pelo ICMBio.
A agricultura de corte e queima é frequentemente acusada de ser a principal causa do desmatamento e de incêndios na Amazônia. Entretanto, em praticamente todos os estados amazônicos, a área total desmatada pela agricultura de pequena escala não chega nem perto do desmatamento para grandes pastos. O mesmo acontece com o número de focos de incêndio que, no primeiro semestre de 2020, foi cinco vezes maior nos imóveis rurais mais extensos do que nas pequenas propriedades. Embora muitos considerem a agricultura tradicional uma forma improdutiva e atrasada, sociólogos enfatizam que se trata de uma percepção equivocada, que provoca conflitos socioambientais e insegurança alimentar.
Um projeto de lei em tramitação desde 2018 estabelece uma mudança de paradigma sobre o assunto. Respeitando o conhecimento antropológico, o PL pretende promover uma articulação ampla para “manejo integrado do fogo, redução da incidência dos danos dos incêndios florestais no território nacional e restauração do papel ecológico e cultural do fogo”. A promoção do manejo do fogo substitui a tentativa do seu banimento, objetivo que predominou nas políticas públicas das últimas décadas. Essa mudança deve-se provavelmente ao reconhecimento de que leis para eliminar por completo o fogo nunca funcionariam quando o que está em jogo é o sustento dos agricultores que ainda não têm alternativa viável. Acabar com o problema do fogo só é possível com a distinção dos atores responsáveis por ele e a tomada de medidas diferenciadas de acordo com cada tipo. Pois, como se diz, há fogo que destrói e há fogo que sustenta.
Na região do Tapajós, normalmente as chuvas minguam entre agosto e novembro. É o período seco, conhecido localmente como o “verão amazônico”. Em 2015, porém, esse período começou mais cedo, em junho, e se estendeu até março do ano seguinte. Era o resultado de mais um El Niño de fortes proporções que atingia a América do Sul e cujo epicentro se localizava nessa região da Amazônia. A atmosfera foi ficando progressivamente mais seca e, em outubro, os incêndios começaram a pipocar com força. Nossa equipe da RAS, mais uma vez, estava em campo monitorando as florestas, suas parcelas conservadas e degradadas. Estas últimas são identificadas pelas cicatrizes de fogo e troncos de madeira serrados. Nesse monitoramento, pretendemos entender qual é o grau de resiliência dessas florestas, o que acontece quando elas são retalhadas ou submetidas aos distúrbios, e se (e como) elas se recuperam depois que a fumaça se esvai, a madeira vai embora ou o cultivo agrícola é abandonado.
Foi então que a bióloga Erika Berenguer, pesquisadora da RAS que se encontrava na estação de pesquisa na Flona do Tapajós, disparou a notícia para a equipe espalhada em diversos lugares do Brasil. “Acordei na estação de pesquisa sob uma névoa de fumaça, minha mochila, minhas botas, meu facão – tudo está cheirando a fumaça”, descreveu ela. “Há uma nuvem de fumaça parada sobre nós. O sol saiu, mas a fumaça o está encobrindo. Estou me sentindo no maior churrasco do mundo, e a Amazônia está virando carvão à minha volta.”
Atualmente, a Flona do Tapajós é a unidade de conservação brasileira onde se concentra o maior número de pesquisas científicas da Amazônia. Ela está localizada às margens da BR-163 (Rodovia Cuiabá-Santarém) e tem boa infraestrutura para o desenvolvimento de pesquisas e o avanço do conhecimento sobre a ecologia da região. Nessa reserva também estão localizados os experimentos mais antigos de manejo florestal madeireiro na Amazônia, que foram instalados em 1975 pela Embrapa.
Em meio a tudo isso, a floresta queimava. Berenguer me contou que, no dia do “maior churrasco do mundo”, a equipe cumpriu a rotina de sair cedo para as parcelas de florestas em estudo – que estão espalhadas dentro de uma área de cerca de 1 milhão de hectares – nos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, todos no estado do Pará. Porém, na rotina daquele dia, o pisca-alerta do carro teve que ficar ligado e as janelas fechadas porque a tosse era inevitável com a entrada do ar tóxico. No fim da jornada, tive mais notícias do time de campo, e elas eram desoladoras.
Várias das nossas parcelas de floresta, que vinham sendo rastreadas nos últimos cinco anos, haviam sido consumidas pelo fogo. Berenguer me contou que se sentia no meio de um filme de terror. “A nossa velha conhecida floresta com suas dezenas de tons de verde, a partir dali, tinha só três cores: o preto da madeira carbonizada, o marrom das folhas queimadas e o cinza que cobria o chão. Mas a mudança mais desconcertante era mesmo o silêncio que gritava alto em nossos ouvidos acostumados à cacofonia de cigarras, aves, grilos e macacos.”
A verdade é que essas parcelas de floresta são como o nosso bairro, onde você tem a padaria preferida e tantos outros detalhes que produzem a sensação de pertencimento. Berenguer repetia: “Conhecíamos todas as árvores, tínhamos nossos cantos favoritos para almoçar, para descansar. A gente não estava mais na floresta que tão intimamente conhecíamos, a gente estava nos escombros de um dos lugares mais biodiversos do mundo.” Segundo me contou, dali para a frente, tanto ela quanto os assistentes de campo, todos moradores das comunidades vizinhas, se recolheram em um canto diferente para viver seu luto sozinhos. “Começamos a explorar o que havia sobrado, contabilizar o que havia morrido ou simplesmente nos despedir da nossa árvore favorita.”
Pouco depois desse desastre, em um comentário publicado na revista Nature Climate Change, cientistas cunharam um termo para expressar a tristeza profunda pela perda de ecossistemas: Luto ecológico. A expressão caía como uma luva para retratar o estado de choque dos pesquisadores quando descobriram que dois terços da Grande Barreira de Corais da Austrália, o maior sistema de recifes de coral do mundo, sofreram branqueamento por causa das ondas de calor recordes em 2016 e 2017. O termo também cai como uma luva para retratar a tristeza de todos nós que estudamos e valorizamos as florestas da Amazônia. Quem já viveu o luto sabe que o sentimento continua a assombrar a cada data simbólica.
Recentemente, publicamos um artigo científico, liderado por Berenguer, contabilizando o estrago daquele incêndio provocado pelo El Niño de 2015. Morreram 2,5 bilhões – isso mesmo: bilhões – de árvores no Baixo Tapajós. Após os incêndios, a cada trimestre reavaliávamos cada uma das mais de 6 mil árvores que havíamos marcado na área. Ao final, sabíamos qual tinha sobrevivido e qual tinha morrido. Sabíamos também o quanto de carbono constituía cada um daqueles indivíduos. A árvore que perde a batalha para o fogo libera para a atmosfera, cedo ou tarde, o carbono aprisionado em suas estruturas. O resultado dos megaincêndios na região foi o seguinte: entre 2015 e 2018, houve a emissão de 495 Tg de CO2 (cada Tg, ou teragrama, corresponde a 1 milhão de toneladas). Essa cifra, liberada em uma área de apenas 1,2% da Amazônia brasileira, foi superior a todo o carbono liberado em um ano inteiro de desmatamento na região.
O impacto não se restringe às plantas. Em nossa pesquisa da RAS, liderada pelo meu colega Filipe França, também detectamos que os incêndios nas mesmas florestas haviam feito desaparecer 70% dos besouros chamados de rola-bosta. Esses besouros são importantes indicadores da saúde ambiental. Eles utilizam excrementos de mamíferos em seus ciclos de vida, tanto para fazer ninhos quanto para a alimentação. Também transportam sementes, entre outras funções importantes para o ecossistema que habitam. Seu desaparecimento, portanto, pode tanto resultar diretamente do fogo quanto do desaparecimento dos animais dos quais dependem, como macacos, antas e tantos outros. Em experimentos usando miçangas coloridas para mimetizar sementes, observamos que quase um quarto das “sementes” deixara de ser transportada após o sumiço dos besouros causado pela seca e fogo. Décadas antes, Barlow mostrara, em pesquisa feita na Resex, que a comunidade de aves também muda drasticamente após os incêndios, particularmente quando a floresta sofre com eventos repetidos. O interior da floresta (o chamado sub-bosque) sofre muita mudança no seu microclima, tornando-o inabitável para espécies que não suportam o calor e a diminuição de umidade. Há espécies que simplesmente sucumbem com a falta de recursos alimentares. Ou seja, o fogo atravessando florestas afeta não apenas as plantas e animais, mas também rompe processos, a própria trama da vida que ali se entrelaça.
É comum que o impacto de certos acontecimentos históricos só seja percebido tempos depois. Foi o caso dos incêndios de 2015. A divulgação na mídia foi relativamente modesta, quando se considera a magnitude dos eventos na época e os impactos depois contabilizados. Aliás, esse foi sempre o padrão. Talvez seja pelo fato de que vivemos a chamada emergência crônica que nos assola a cada ano, mas que se amplifica naqueles em que as secas são mais severas. Além da seca de 2015, que resultou de um dos eventos de El Niño mais fortes das últimas décadas, outras secas extremas também ocorreram na Amazônia nos anos de 2005, 2007 e 2010, principalmente decorrentes do El Niño.
Em 2018, meu colega Luiz Aragão, pesquisador do Inpe, publicou, em parceria com outros pesquisadores, um estudo abrangente sobre os incêndios na Amazônia cujo título original em inglês pode ser traduzido como Os Incêndios do Século XXI, Relacionados com as Secas, Neutralizam o Declínio das Emissões de Carbono do Desmatamento da Amazônia. No estudo, eles mostravam que a queda de 76% nos desmatamentos na Amazônia brasileira entre 2003 e 2015 – que resultou numa redução histórica nas emissões de CO2 do Brasil – estava sendo anulada pelo aumento dos incêndios relacionados à seca. A mensagem principal do artigo era clara: não adiantava reduzir só o desmatamento, se os incêndios aumentavam tanto nas secas e consumiam as florestas. Os cientistas contabilizaram que, no período analisado, durante os anos secos as emissões de CO2 pelos incêndios florestais correspondiam a mais de 50% das emissões provocadas pelos desmatamentos.
Em 19 de agosto de 2019, algo incomum aconteceu. Uma camada de nuvem de fumaça gigantesca, que viajava pelo céu do Brasil, chegou a São Paulo e escureceu a cidade em plena tarde. A fumaça consistia em uma massa de ar poluído, gerada por queimadas na Amazônia e outras regiões, e fora empurrada a 5 mil metros de altitude por ventos que sopram do Atlântico para o Pacífico. A Cordilheira dos Andes era o ponto final dessa viagem. Logo começaram a circular imagens de plumas de fumaça cortando os céus da Amazônia, bem diferentes do fogo rasteiro e lento que invade as florestas úmidas da região. A cena causou comoção. Os incêndios na Amazônia viraram, definitivamente, notícia em jornais nacionais e internacionais.
O que mais nos intrigava é que 2019 não era um ano de El Niño, não houve seca como aconteceu em 2005, 2007, 2010 e 2015. Até aquele momento, havia pouca clareza sobre o que exatamente estava queimando. Os satélites poderiam estar capturando o calor emitido de pastos queimados para renovar o capim, assim como de capoeiras queimadas para formar o roçado dos agricultores familiares e tradicionais. Porém, o maior temor era de que florestas primárias estivessem sendo queimadas pelo fogo escapando desses dois últimos. Ou, ainda pior, que as chamas altas fossem apenas a etapa final da incineração da floresta recém-desmatada.
Em um periódico científico, Barlow e um grupo de cientistas publicaram o artigo Esclarecendo a Crise das Queimadas na Amazônia. Explicavam conceitos fundamentais para o entendimento da crise que havia se instalado. Primeiro, há diferentes tipos de fogo. Segundo, cada tipo tem determinantes distintos. Terceiro, os impactos mudam conforme o tipo de fogo. No artigo, os cientistas mostraram que, desde 2010, não havia um mês de agosto com tantos focos de calor.
A coincidência entre o aumento inédito de focos de calor e o aumento de desmatamentos sugeria que a pior hipótese estava em cena: os incêndios estavam ocorrendo predominantemente em florestas recém-desmatadas. Exatamente um ano depois, a ligação intrínseca entre fogo e desmatamento recente voltou a ser feita, dessa vez por um grupo de pesquisadores do Inpe e do Cemaden. Eles mostraram que áreas com indício de fogo tiveram seis vezes mais desmatamento. A constatação confirmava uma reviravolta em relação à causa dos incêndios na Amazônia. Se os incêndios percorrendo florestas “em pé” predominaram entre 2003 e 2015, como mostrou o estudo liderado por Aragão, o fogo consumindo escombros de florestas mortas no chão dobrou nos anos recentes (o chamado “fogo de desmatamento”). Ou seja, a floresta sofre de qualquer jeito.
De fato, o desmatamento teve um ponto de virada a partir de 2017, quando passou a aumentar de forma consistente. A menor taxa histórica de desmatamento fora registrada em 2012. Porém, entre 2013 e 2016, as taxas oscilaram, ora para cima, ora para baixo, até que dispararam de 2017 em diante. É mais uma das “sinergias perturbadoras”, dessa vez entre fogo e desmatamento. O saldo de tais transformações acaba de ser revelado em um artigo de grande repercussão na revista Nature, sob liderança brasileira e feminina da química Luciana Gatti, do Inpe. (Vale registrar: até poucas décadas atrás, as pesquisas realizadas na Amazônia raramente eram lideradas por brasileiros, menos ainda por brasileiras.)
O grupo de Gatti demonstrou que a combinação das secas, incêndios e desmatamentos na porção oriental da Amazônia tem causado importantes emissões de carbono na região. É um alerta de que o fogo e outros distúrbios estão colocando sob ameaça a capacidade excepcional das florestas amazônicas em retirar carbono da atmosfera. Em vez disso, elas estão emitindo o carbono antes aprisionado em suas árvores seculares, conforme mostramos em nossos estudos da RAS. A relação entre saúde humana, queimadas e incêndios florestais também começa a ser demonstrada. Diversas partes da Amazônia, a cada período de incêndios, exibem índices mais altos de material particulado na atmosfera do que o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2019, houve cerca de 2,2 mil hospitalizações provocadas por doenças respiratórias associadas ao fogo de desmatamento na Amazônia, representando um aumento de 65% entre junho e agosto, quando ocorre o pico da seca. Em tempos de pandemia, o conceito de saúde integral – das pessoas e dos ecossistemas – ecoa mais forte do que nunca.
Traçar parte da história do fogo na Amazônia brasileira, nesses últimos trinta anos, revela uma trama complexa e cheia de revezes. O fogo ziguezagueando pelas bordas da floresta já se fez passar por desmatamento, que chegou a diminuir, sem levar o fogo embora, mas depois voltou em volume maior e encorpou o fogo. Tal qual um caleidoscópio, as diversas dimensões do problema se movimentam, ao longo do tempo, e criam reflexos de formatos e cores distintas. O fato é que, a cada década, a estação seca fica uma semana mais longa na região. O grupo de Gatti mostrou que, especialmente nas porções mais desmatadas, as chuvas vêm diminuindo em pelo menos 25%, e a temperatura média tem aumentado mais de 2°C na seca. No recém-publicado relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, mais conhecido pela sigla em inglês IPCC, fica evidente que no futuro o risco e a severidade do fogo serão cada vez maiores em determinadas regiões – a Amazônia incluída – cujas condições climáticas estarão mais propícias aos incêndios devido à combinação de condições quentes, secas e vento. Tais previsões estão classificadas com “alto nível de confiança”, o que significa que dificilmente deixarão de ocorrer. Diante disso, não nos resta alternativa senão reagir em nome de um futuro melhor.
Os desafios científicos à frente não são pequenos. Há muitas perguntas que exigem novas pesquisas. Ainda não sabemos exatamente como criar paisagens inteiras resistentes ao fogo ou como planejar a restauração de florestas para oferecer mais proteção contra os incêndios. Ou, ainda, como as Unidades de Conservação de Uso Sustentável, a exemplo das florestas nacionais e reservas extrativistas, podem ser efetivas para as pessoas e a natureza e, ao mesmo tempo, resistentes às mudanças climáticas. Há dezenas de instituições públicas atuantes na região que, tendo investimentos adequados, exibem grande capacidade para encontrar essas respostas – como Embrapa, Museu Goeldi, Cemaden, Inpe, universidades locais, além de ONGs como Ipam e Imazon. Além de tudo, construir soluções para problemas tão complexos exige muita cooperação em múltiplos níveis. O Painel de Ciência pela Amazônia (SPA, na sigla em inglês), vinculado à Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável, da ONU, é um exemplo de esforço atual sem precedentes pela conservação da região. De forma semelhante ao IPCC, reuniu mais de duzentos cientistas, incluindo todos os países amazônicos, para produzir a maior compilação científica já feita até hoje sobre o estado dos ecossistemas amazônicos e propor soluções para a região.
Os desafios não são apenas científicos, mas principalmente políticos. Só uma sólida governança, que reconheça a sinergia entre as múltiplas causas do problema, e invista com obstinação em todas elas, poderá chegar a uma solução.
Para tanto, é preciso resgatar as dimensões profundas da nossa existência, dos nossos laços primitivos com a natureza e a sua tradução em transformações nas atitudes de uma sociedade. “Somos água, ar, terra e vida do meio ambiente”, escreveu o papa Francisco, no ano passado, em sua exortação Querida Amazônia, referendando uma citação de indígenas guaviare, da Colômbia. É chegado o tempo de evitar, mais do que nunca, a “queda do céu”, profetizada pelo xamã Davi Kopenawa. Tanto o líder da Igreja Católica quanto o líder yanomami vêm alertando para o risco que corremos se a Amazônia parar de resistir à destruição. E mais uma temporada de queimadas está chegando agora na floresta. Ao que tudo indica, mais uma temporada de caos. Não precisamos chegar a ponto de recorrer aos rituais da dança da chuva. Basta garantir a plenitude das florestas amazônicas.