ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Fogareiro explosivo
Preço do gás leva famílias a usar álcool para cozinhar
Tiago Coelho | Edição 181, Outubro 2021
Na manhã do dia 8 de setembro, Josefa Rodrigues Menezes, logo que acordou, foi esquentar a água para passar um cafezinho. Pegou um garrafão com etanol – o álcool combustível vendido nos postos de gasolina – e despejou um pouco do líquido numa lata de leite em pó vazia sobre a pia da cozinha. Na casa de Menezes, a lata de alumínio funciona como um fogareiro. A sergipana de 42 anos acendeu o combustível e pôs o bule com água em cima da lata.
Minutos depois, pareceu-lhe que a chama havia apagado, e Menezes aproximou novamente o garrafão com etanol para reabastecer a lata. Ao contrário do que ela pensava, lá no fundo ainda havia um resto de chama – que, em contato com mais combustível, irradiou-se velozmente até o garrafão. “Só me lembro da explosão. O fogo pulou em cima de mim e lambeu o meu corpo”, conta Menezes, que vive na casa com sua filha de 5 anos. Desesperada, ela se debateu freneticamente para apagar o fogo em sua roupa. Gritou por ajuda e foi socorrida por um vizinho, que a levou às pressas para o Hospital de Urgência de Sergipe Governador João Alves Filho. Por sorte, o hospital fica a cerca de cinco minutos de carro do bairro América, em Aracaju, onde Menezes vive.
Ela foi atendida na Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ), coordenada pelo cirurgião plástico Bruno Cintra. Ficou sete dias internada. No braço, no dorso e na perna direita teve queimaduras de segundo grau. No rosto, em parte da barriga e na perna esquerda, de primeiro grau. Cintra diz que casos como o de Menezes são frequentes na UTQ. Nos primeiros sete meses deste ano houve um aumento de 60% no número de pessoas queimadas atendidas na unidade, em relação ao mesmo período em 2020.
O empobrecimento de parte da população durante a pandemia fez com que muitas famílias passassem a cozinhar com fogareiros, substituindo o gás de cozinha, cujo preço subiu 38% desde o início do ano. Mas o problema não vem de agora, diz Cintra.
O cirurgião e sua equipe médica são autores de um artigo em que relacionam o número de pacientes com queimaduras por álcool e o aumento do preço do gás já em 2017, quando o botijão teve a maior alta em quinze anos. Segundo ele, entre janeiro e novembro daquele ano houve um aumento de 366% no número de pessoas queimadas por álcool, comparado ao mesmo período em 2016.
“O gás sempre foi caro para famílias pobres e, para elas, cozinhar com álcool é algo mais comum do que a gente pensa. Aqui, em Sergipe, o botijão de gás custa em média 115 reais. Para quem ganha salário mínimo [1.045 reais] é muito dinheiro. Se a pessoa não tem como pagar, recorre ao álcool. Entre comprar gás ou feijão, vai optar pelo feijão”, afirma o cirurgião. Ele diz que o etanol – o álcool combustível – é usado também com frequência por ser mais barato que o álcool de limpeza e produzir chamas de duração mais longa.
Os acidentes costumam acontecer de duas formas, explica Bruno Cintra. Ou a pessoa se descuida ao manipular o frasco com álcool na hora de acender o fogo. Ou, o que é mais comum, acha que o álcool colocado no fogareiro não foi suficiente e aproxima o frasco com o líquido inflamável da chama, provocando uma irradiação explosiva. “A pessoa vai encher o fogareiro e recebe aquele ricochete de fogo”, descreve o cirurgião. O etanol é potencialmente mais perigoso porque é feito para produzir com rapidez a combustão do motor do veículo, logo que é dada a partida.
Uma resolução de 2002 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definiu que o álcool 70% só podia ser comercializado em frascos de até 500 ml e na forma de gel, por ser altamente inflamável. Mas em 2020 a resolução foi suspensa, para que esse álcool, mais eficaz contra bactérias e vírus, fosse usado no combate à Covid-19. “Quando foi liberada a comercialização do álcool 70% que, em teoria, era proibido, a população passou a ter mais acesso ao produto em casa. E começou a fazer comida com ele também. E isso gera em 2020 e 2021 um aumento grande de casos de queimaduras por álcool, inclusive de crianças, que passaram a ficar em casa em tempo integral”, conta Cintra.
Ele afirma que os acidentes com álcool costumam causar queimaduras profundas de segundo grau, quando não de terceiro grau, a pior delas. “Como às vezes tem explosão, o fogo acaba por queimar as vestes. Até a pessoa tirar a roupa, fica com uma área queimada considerável.” O cirurgião estima que o número de queimados poderia ser ainda maior se o isolamento social não tivesse reduzido as comemorações e os eventos em que são frequentes os acidentes com fogo, como as festas juninas e churrascadas.
As principais vítimas dos acidentes com álcool costumam ser mulheres com perfil parecido com o de Menezes: pobres, da periferia e responsáveis pelo cuidado da casa e da família. Ela trabalhava como auxiliar de cozinha num restaurante à beira-mar em Sergipe. Não tinha carteira assinada e ganhava um salário mínimo.
O restaurante fechou durante a quarentena, e Menezes passou a sustentar a casa com 41 reais do Programa Bolsa Família e o auxílio emergencial dado pelo governo. Complementava a renda fazendo trabalhos temporários como doméstica e auxiliar de cozinha. Na pandemia, trocou o gás de cozinha pelo etanol, e a carne bovina e o peixe por ovos e linguiça calabresa.
As feridas da queimadura de Menezes já estão melhorando, mas ela lamenta ter ficado com cicatrizes pelo corpo. Ao voltar do hospital, ganhou dos vizinhos um fogão e um botijão de gás, o que lhe trouxe um grande alívio nesse período de recuperação. Ela espera não ter que usar álcool no futuro, mas evitou jogar fora a lata de alumínio que lhe servia de fogareiro. “A gente nunca sabe o dia de amanhã”, diz.
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