No círculo, o colégio isolado, longe do conjunto habitacional Cidade do Povo cujas obras nunca foram concluídas: “A ideia era misturar as pessoas no bairro. Vê esse tanto de terreno baldio? Era para a classe média. Mas restaram só os pobres”, lamenta o padre Mássimo Lombardi CREDITO: REPRODUÇÃO GOOGLE MAPS
Fogo cruzado
Uma escola pública do Acre entre a pandemia, a pobreza e a facção
Luigi Mazza | Edição 184, Janeiro 2022
“Vou dar outra palavra para vocês: PI-PO-CA. Pipoca tem quantas sílabas?”, perguntou a professora Aline de Moura aos alunos em setembro de 2021. Ela passou de carteira em carteira distribuindo papeizinhos que continham as sílabas do substantivo, para que as crianças – todas com idade entre 7 e 8 anos – as pusessem na ordem certa. Em seguida, se deteve na frente de uma aluna, que olhava os papéis como se estivesse diante de um enigma indecifrável. Ao alinhá-los, a menina colocou a última sílaba de cabeça para baixo e escreveu PI-PO-ⱯƆ. “Isso aqui é um C?”, indagou a professora enquanto sinalizava o erro. Confusa, a garota ficou em silêncio. “Olha lá o alfabeto”, disse Moura, indicando o abecedário colado numa das paredes da sala de aula. Nada. A professora precisou, ela mesma, girar o papel e corrigir a sílaba. A seu lado, outra menina, que vestia uma máscara com estampa de oncinha, enfileirava os papéis em sua carteira para escrever LI-OX em vez de LI-XO.
Quando a professora fez as perguntas de matemática, o desempenho não foi mais animador. “Vamos lá: que número vem antes do vinte?”, questionou. Com o cabelo preso num elástico, a docente de 31 anos trajava calça jeans e um top azul-claro. Enquanto caminhava pela sala, agitava as mãos freneticamente para se abanar. Naquela quarta-feira, embora ainda fossem nove da manhã, a temperatura em Rio Branco (AC) já passava dos 30ºC e o ar-condicionado da classe produzia mais barulho do que frescor. A professora parou diante de uma das alunas e repetiu a pergunta: “Que número vem antes do vinte?” A menina pensou por alguns segundos e murmurou: “Três”. Nenhum dos outros estudantes conseguiu responder corretamente.
Essa cena soaria trivial se as crianças cursassem o primeiro ano do ensino fundamental, quando ainda não sabem ler, escrever e contar direito. Mas os alunos da professora Moura estavam no segundo ano, a poucos meses de avançar para o terceiro. Seria esperado que já se mostrassem capazes de interpretar textos e formular frases inteiras por escrito. Também deveriam dominar contas de soma e subtração.
Eles estudavam no colégio estadual Marcio Bestene Koury, que oferece as cinco primeiras séries do ensino fundamental. Situada na Cidade do Povo, um bairro periférico de Rio Branco, a escola abriga 122 crianças e leva o nome do médico morto em novembro de 2016, com outras setenta pessoas, no acidente de avião que vitimou o time da Chapecoense. Embora fosse paraense, Koury se formou em medicina no Acre, onde passou boa parte da vida, e trabalhava como médico do time de Santa Catarina. Logo na entrada do colégio – uma edificação térrea, pintada de verde e branco –, há uma foto dele, colada numa janela, em que aparece sorrindo e vestindo o uniforme do clube catarinense.
Em setembro do ano passado, o Acre ainda não tinha retomado o ensino presencial nas escolas públicas, que se encontravam fechadas havia dezessete meses, desde o começo da pandemia. Somente em outubro os colégios adotaram o regime híbrido por decisão do governo estadual. Um mês depois, retomaram as aulas 100% presenciais. Na Bestene Koury, porém, o cenário foi um pouco diferente. Percebendo que as crianças não lidavam bem com o ensino a distância – várias delas nem sequer acessavam os grupos de WhatsApp nos quais os conteúdos eram repassados –, a direção do colégio resolveu abrir as portas em maio de 2021 para oferecer aulas de reforço. Foi implantado um rodízio: metade dos estudantes aparecia nas manhãs de segunda, quarta e sexta-feira; a outra metade, nas manhãs de terça, quinta e sábado.
Os professores já sabiam que a situação era crítica, mas só puderam ter a real dimensão do estrago quando voltaram às classes. A primeira coisa que fizeram foi aplicar uma prova, com a intenção de avaliar o nível dos estudantes. O teste constatou que 15 dos 17 alunos de Moura continuavam na fase pré-silábica – termo usado pelos educadores para se referir ao grau zero da alfabetização, quando a criança ainda não compreende que as letras equivalem a sons. Descompassos desse tipo se repetiram em todas as séries.
“Meus alunos estão no segundo ano, mas parece que ainda não aprenderam coisas do primeiro ano e da creche”, lamentou Moura, visivelmente frustrada. Pedagoga de formação, a professora trabalhou em três colégios de Rio Branco antes de ser contratada pela Bestene Koury, em agosto de 2021. Ela mora com o marido e um filho de poucos meses numa casa na Cidade do Povo. “Eu nunca vi nada assim. Nenhum deles sabe ler ou escrever o próprio nome. Outro dia nós fomos contar até dez e alguns não lembraram que existia o três. Fiquei pasma.”
A Bestene Koury, um dos seis colégios públicos existentes na Cidade do Povo, se encontra numa área mais isolada do bairro, localizado dentro do Segundo Distrito de Rio Branco, a região menos urbanizada da cidade. O estabelecimento foi construído num amplo terreno desmatado, onde só restam algumas castanheiras – que, por estarem em extinção, não podem ser derrubadas sem aval do Ibama. Com exceção dessas árvores imponentes, a paisagem ao redor do colégio é quase desértica. Ainda assim, os moradores da redondeza apelidaram a Bestene Koury de “escola do mato”, já que fica longe das ruas principais e é acessada apenas por meio de uma estrada de cascalho.
A Cidade do Povo nasceu como um conjunto habitacional e cresceu tanto que acabou ganhando o status de bairro. É composta por 3 348 casas térreas, agrupadas em pares geminados, onde moram 15 mil pessoas. Antes de se transferir para lá, a maioria delas ocupava áreas de risco perto do Rio Acre, que corta a capital do estado. Na cidade, ao contrário do que acontece em outros lugares, as favelas não se erguem sobre morros ou no nível do asfalto, mas abaixo dele, quase invisíveis, em zonas ribeirinhas. Por décadas isso acarretou um problema crônico para os trabalhadores que viviam à beira do Rio Acre: todo verão, quando as águas subiam em razão das chuvas, as moradias alagavam.
O reassentamento de grande parte dessa população na Cidade do Povo teve início em 2013. À época, o governo estadual propagandeou a iniciativa como o maior investimento imobiliário da história acreana. Por meio do programa Minha Casa Minha Vida, lançado no segundo mandato do presidente Lula, as residências foram doadas sem contrapartida para os moradores. O empreendimento se tornou, assim, uma vitrine das gestões petistas. Em março de 2015, a presidente Dilma Rousseff discursou na entrega de novas casas, ao lado do então governador Tião Viana (PT).
Se antes os desalojados pelas enchentes anuais do Rio Acre eram milhares, agora passaram a ser centenas ou mesmo dezenas. Para as famílias reassentadas, a melhora na qualidade de vida foi incontestável. “A gente não podia ter moto nem carro porque as cheias destruíam tudo. Meu sonho era deixar a beira do rio”, diz Francisco Pereira, porteiro da escola. Ele se mudou para a Cidade do Povo em 2014. Até então, se espremia num barraco; hoje, mora com a família numa casa de alvenaria, com saneamento e água aquecida.
O bairro, porém, está inacabado. Originalmente, o governo pretendia construir 10 mil imóveis para mais de 60 mil pessoas – população maior que a de quase todos os municípios do Acre. Depois de alojar famílias pobres no novo conjunto habitacional, o estado tentaria atrair servidores públicos e outras famílias da classe média, oferecendo-lhes terrenos com preços acessíveis. A ideia era dinamizar a área e evitar a segregação da antiga população ribeirinha. O governo também almejava implantar um polo logístico vizinho à Cidade do Povo – na verdade, um agrupamento de galpões onde os caminhões que chegam a Rio Branco poderiam descarregar, o que geraria empregos para os moradores dali.
Os planos começaram a naufragar já em 2013, quando uma investigação da Polícia Federal detectou indícios de fraude em licitações para a construção do conjunto habitacional. Espalhafatosa, a operação prendeu quinze pessoas, entre empresários e membros do governo estadual. O caso não deu em nada: até hoje ninguém foi condenado. Em 2017, a Justiça Federal absolveu quase todos os réus por inconsistência das provas. Mas o constrangimento político trazido pelo escândalo emperrou a publicação de novos editais durante um bom tempo.
Outro problema foi a burocracia. Parte dos terrenos que formariam a Cidade do Povo pertencia a um fundo de previdência do estado. Ao contrário do governo, que não almeja lucros e, por isso, pode ceder lotes a empreiteiras sem cobrar nada, a instituição tinha regras mais rígidas: para não sair no prejuízo, precisava vender os terrenos pelo mesmo valor que pagou ou por um valor maior. Tais condições não agradavam as construtoras. A crise econômica que despontou em 2014 só fez piorar a situação, e as empreiteiras desistiram de assumir riscos. Quando o governo conseguiu publicar os editais referentes àqueles lotes, não houve empresa que se interessasse pelo negócio. Para complicar, o polo logístico também encalhou. O estado providenciou toda a infraestrutura da área, mas nenhuma companhia topou erguer os galpões.
Resumo da ópera: a Cidade do Povo se transformou num gueto – o avesso do que desejavam seus criadores. Famílias pobres de Rio Branco deixaram as margens dos rios, mas foram jogadas para longe do Centro, numa região com pouco comércio, pouca indústria e, consequentemente, pouco trabalho. O desemprego se tornou endêmico. Por tabela, o bairro virou terreno fértil para o crime organizado, que vem se alastrando pelo Acre – e pela Amazônia, de maneira mais ampla – desde o começo dos anos 2000.
A inauguração da Bestene Koury ocorreu em dezembro de 2019, alguns dias antes do Natal. O governador do Acre, Gladson Cameli (PP), e toda uma comitiva de políticos locais participaram da cerimônia. Havia certa ansiedade em torno do evento, já que a escola é a primeira em tempo integral do estado a atender alunos do ensino fundamental. Esse tipo de colégio tem grande importância em bairros de periferia porque cuida das crianças durante a manhã e a tarde, permitindo que os pais trabalhem sem precisar de alguém para tomar conta dos filhos. Na escola, os alunos se banham, tiram cochilos e, o mais relevante, tomam café, almoçam, merendam.
No dia 2 de março de 2020, uma segunda-feira, a Bestene Koury abriu as portas pela primeira vez. Por ser nova e distante do resto do bairro, recebeu apenas 67 crianças das 270 possíveis. As matrículas praticamente dobraram em 2021, mas até hoje o colégio só tem alunos do primeiro ao terceiro ano. Ainda não conseguiu preencher as vagas das quarta e quinta séries.
Os professores decidiram pesar os estudantes logo na primeira semana de março de 2020. O resultado: 80% estavam abaixo do peso ideal. A equipe do colégio notou que, na hora das refeições, a meninada repetia pratos sem parar. “Os bichinhos chegaram tudo magrinho, com a costela de fora”, lembra Maria Simone Mesquita, cozinheira da escola. A partir de então, as crianças foram pesadas regularmente. Em questão de dias, algumas já tinham engordado até 3 kg.
Também houve certo progresso nas salas de aula. A maioria dos alunos ingressou na Bestene Koury com buracos no aprendizado, mas em pouco tempo deu sinais de que poderia se aprumar. Como o colégio é integral, as crianças aprendem seis disciplinas que extrapolam o currículo básico, a exemplo de artes, inglês e “projeto de vida”, sobre profissões e cidadania. A equipe de professores, composta só de mulheres, rapidamente se afeiçoou aos estudantes.
No entanto, em 17 de março, exatos quinze dias depois de abrir as portas, a escola teve de fechá-las para cumprir o decreto do governo estadual que buscava conter a pandemia. Naquela mesma data, o Acre registrou o primeiro caso de Covid-19. As professoras resolveram, então, imprimir o conteúdo das aulas e deixá-lo no colégio. A ideia era que os pais buscassem o material e o devolvessem na semana seguinte, com as tarefas feitas pelos filhos. Paralelamente, a direção da escola criou um grupo de WhatsApp para cada turma. Todo dia, as professoras mandavam um vídeo curto pelo aplicativo, apresentando o tema das aulas. Em seguida, davam explicações por meio de áudios e imagens.
Não demorou para as dificuldades aparecerem. O colégio perdeu contato com parte significativa dos alunos, seja porque as famílias não tinham internet, seja porque precisavam trabalhar e só lhes restou levar as crianças para a zona rural, onde outros parentes as acolheram sem necessariamente zelar pelo aprendizado delas. Havia ainda problemas de horário. “A gente iniciava as aulas virtuais às sete da manhã, como acontecia no presencial. Mas aí percebemos que várias crianças não participavam. Elas só apareciam por volta das seis da tarde. Depois entendemos a razão: era a hora em que o pai ou a mãe chegava do trabalho com o celular”, conta Inácio Moreira, coordenador de ensino da escola. Quando finalmente abriam o grupo de WhatsApp, os pais atrasados às vezes se deparavam com mais de oitocentas mensagens acumuladas, tanto das professoras quanto dos alunos que tinham assistido às aulas. “Por causa disso, muitas famílias desistiram de acompanhar o aplicativo”, afirma Moreira. Na esperança de estancar o problema, as professoras se dispuseram a responder às dúvidas que chegavam de noite ou nos fins de semana. Não adiantou.
A adesão ao ensino remoto acabou sendo baixíssima. Em 2020, na turma do primeiro ano, em que as crianças aprendem o alfabeto e os números, só 20% dos alunos deram as caras no WhatsApp. Levando em conta os estudantes que faziam as tarefas no papel, mas não estavam no grupo virtual, apenas metade da turma usufruiu de algum tipo de educação a distância. “Foi um ano de trevas”, sintetiza a professora Maria Vilma da Silva. “Acho que nós, da alfabetização, sofremos o maior impacto – não só na Bestene Koury, mas no Brasil inteiro. Criança muito pequena exige ajuda contínua. A gente precisa apontar para as palavras, repetir as sílabas, mostrar o movimento da boca, olhar na carinha de cada aluno. Senão ele não aprende.”
A rotina online também maltratou as professoras mais velhas. Silva, uma paranaense bem-humorada de 57 anos, se acabrunha quando toca no assunto. Ela não tinha nenhuma familiaridade com ferramentas digitais: não sabia gravar e enviar vídeos, nem copiar imagens do Google, nem preencher virtualmente a “pagela”, termo que os acreanos usam para se referir à lista de presença. “As outras professoras conversavam sobre tudo isso, e eu ficava igual aos meus aluninhos do primeiro ano quando boiam nas aulas. Era como se eu estivesse num mundo totalmente…”, ela diz, sem concluir o raciocínio e com os olhos marejados. “Você se sente fracassada.”
As professoras assumiram todos os gastos domésticos gerados pelo ensino remoto. O colégio não tinha – e continua sem ter – uma rede de wi-fi. Quando a crise sanitária estourou, o governo estadual não ajudou os docentes da rede pública a pagar as contas pessoais de celular e internet. Só em agosto de 2021, após dezesseis meses de escolas fechadas, o governador Gladson Cameli, pressionado por uma greve dos trabalhadores da área de educação, apresentou um projeto de lei que previa a compra de computadores e pacotes de dados para os professores. O texto foi aprovado na Assembleia Legislativa em setembro, e apenas em outubro – quando a maioria dos colégios já se preparava para retomar o ensino presencial – os benefícios começaram a ser pagos. Os docentes foram reembolsados pelos meses de julho, agosto e setembro. Os estudantes da Bestene Koury, por sua vez, não receberam ajuda financeira durante a pandemia.
O governo do Acre alegou razões orçamentárias para não bancar os gastos extras de professores. Nas palavras da secretária de Educação, Cultura e Esportes, Socorro Neri, os estados tiveram “cautela com as despesas” ao longo da quarentena por temerem uma queda na arrecadação. “Nós priorizamos as videoaulas na tevê e a entrega de material impresso nas escolas”, explicou. Para Neri – ex-prefeita de Rio Branco, hoje filiada ao PSB –, os docentes do Acre não deviam reclamar. “Tem estado que não pagou a internet até hoje…”
Dados colhidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) revelam que, em 2020, só 6,6% das escolas públicas no Brasil financiaram a internet de seus alunos, enquanto 5,3% patrocinaram a dos professores. O Acre exibiu índices ainda piores: 1,5% e 3%, respectivamente. A realidade poderia ter sido menos precária. Em fevereiro de 2021, o Congresso Nacional aprovou uma lei obrigando o governo federal a comprar pacotes de dados para os alunos das escolas públicas. O presidente Jair Bolsonaro vetou o projeto. O Congresso derrubou o veto, e Bolsonaro recorreu ao Supremo Tribunal Federal alegando que não tinha verba para pagá-lo. O STF deu prazo de 25 dias para que o governo começasse a desembolsar o dinheiro. Para se safar, Bolsonaro voltou atrás e sancionou a lei, mas retirou dela a previsão de quando o dinheiro deveria ser repassado – se eximindo, com isso, de realmente colocá-lo em prática. O Congresso contestou a medida, em vão. Em dezembro passado, Bolsonaro criou um programa semelhante ao aprovado originalmente pelo Congresso, mas sem previsão de prazo ou valores. As artimanhas, que duraram onze meses, deixaram os alunos sem assistência até agora.
Todas as 67 crianças da Bestene Koury foram aprovadas no fim de 2020. No caso dos alunos do primeiro ano do ensino fundamental, a aprovação já era automática na rede estadual do Acre mesmo antes da pandemia. Como a regra não se aplica às demais séries, a Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esportes (SEE) recomendou o abrandamento geral das avaliações durante a crise sanitária, com o objetivo de evitar reprovações e o consequente abandono escolar.
Essa política, no entanto, não valerá para sempre. Por isso, os professores vivem hoje uma corrida contra o tempo. Precisam conseguir que seus alunos superem o quanto antes o déficit de aprendizado decorrente da pandemia. Do contrário, restarão duas alternativas nada auspiciosas: ou os docentes farão vista grossa e aprovarão os estudantes defasados, empurrando o problema para frente, ou os reprovarão – o que, em última instância, pode romper o frágil elo que ainda os mantém na escola.
Todo dia, Inácio Moreira dirige um Honda City empoeirado até a Bestene Koury. O trajeto entre a casa dele e a Cidade do Povo dura cerca de meia hora. O coordenador de ensino percorre a BR-364 em direção a Porto Velho (RO), passa pelo novo distrito industrial de Rio Branco e, quando se aproxima do bairro onde fica o colégio, abre imediatamente os vidros do carro. Faz isso por puro reflexo, sem pensar. Caso se esquecesse, as pichações espalhadas pela Cidade do Povo tratariam de lembrá-lo. “ABAIXA OS VIDROS SENÃO LEVA BALA”, ordena uma delas, em letras garrafais, no muro de um terreno abandonado.
Hoje quem manda no bairro é o B13 – o Bonde dos 13, facção que surgiu nos presídios do Acre e se aliou ao PCC (Primeiro Comando da Capital) para traficar as drogas que vêm da Bolívia e do Peru. A Cidade do Povo se tornou, assim, uma espécie de ilha, já que praticamente todo o resto de Rio Branco está sob o domínio do Comando Vermelho (CV). Os grupos rivais vivem em guerra, o que transforma o bairro numa zona conflagrada. É comum haver tiroteios e execuções por ali. Em quase todas as ruas se veem pichações com as siglas B13 ou PCC. Além dos avisos para que os motoristas abaixem os vidros e deixem o interior dos veículos à mostra, paredes e muros exibem recados como “ÁREA DE RISCO” e “PROIBIDO ROUBA MORADOR” (sic).
O B13 não costuma interferir na rotina da Bestene Koury. “São eles lá e nós aqui”, resume Simone Queiroz, diretora da escola. Às vezes, porém, a regra é quebrada. Em 2020, o funcionário de uma empresa terceirizada que presta serviços ao colégio roubou um bebedouro, um botijão de gás, facas de cozinha, panelas e alguns objetos do almoxarifado da escola, como canetas. De início, temendo que o ladrão fosse ligado ao B13, os gestores da escola não fizeram nada. Até que Queiroz relatou o ocorrido para outro funcionário terceirizado, que conhecia um dos chefes locais do tráfico. Os traficantes logo souberam do episódio e tomaram providências. Ordenaram a demissão do homem que furtara o colégio. “Também deram uma ‘correção’ nele: dezenove ripadas”, conta Queiroz. Ripadas são pancadas com uma ripa de madeira.
Curiosamente, numa enquete que os professores fizeram com 81 alunos da Bestene Koury, 23 deles afirmaram que querem ser policiais quando crescerem. As duas outras profissões mais mencionadas foram médico (18 citações) e jogador de futebol (10). Em setembro de 2021, diante desse resultado, a direção da escola convidou um tenente da Polícia Militar para discorrer sobre sua carreira. Uma aluna particularmente empolgada compareceu à palestra usando coturnos e uma calça verde camuflada.
Com um revólver no coldre, quepe e o uniforme de passeio da PM, o tenente João Jácome falou por cerca de uma hora para vinte crianças de 6 a 8 anos, acomodadas na sala de artes. Ele estava acompanhado de um sargento igualmente armado, que ficou postado na porta da classe. Para agitar os pequenos, Jácome – um homem alto de 50 anos – lhes ensinou um grito de guerra: “Luz, câmera, ação! Drogas não!” Logo depois, resumiu sua trajetória militar e passou a defender a corporação. “Não é para ninguém ter medo de policial. É para confiar. Se vocês ouvirem notícias ruins sobre a polícia, observem que isso não é a regra entre os policiais.”
Quando uma das crianças dispersava, a professora de artes lhe chamava imediatamente a atenção. Jácome prosseguia: “Vocês podem me perguntar se já matei alguém. Não, não matei! O trabalho do policial não é matar. Se uma pessoa resolver matar essa menina aqui, por exemplo, o papel do policial é proteger a vida dela.” A garotinha de 8 anos, em cujo ombro o tenente pôs a mão, arregalou os olhos e não disse nada.
Desde o início de 2020, o colégio busca contratar professores para cuidar dos alunos considerados especiais. Dezesseis das 122 crianças matriculadas na Bestene Koury têm autismo, déficit de atenção, epilepsia, incontinência urinária ou outros tipos de distúrbio que requerem a atenção de especialistas. Para esse pequeno grupo, o ensino remoto se mostrou ainda mais cruel. Na esperança de atendê-lo melhor, a SEE procura engrossar o corpo docente da escola com profissionais que tiraram notas altas num concurso de 2019. Entretanto, assim que são informados sobre a localização do colégio, todos recusam o convite. O motivo é sempre o mesmo: morrem de medo daquele bairro.
“Quando começamos a construir a Cidade do Povo, já sabíamos do que havia acontecido em Manaus. Lá o Minha Casa Minha Vida ergueu quase 10 mil moradias populares sem nenhum planejamento social ou preocupação urbanística. Era justamente o que queríamos evitar em Rio Branco. Não por acaso, também construímos escolas, creches e postos de saúde no conjunto habitacional. Mas aí apareceram todos aqueles problemas”, relembra o engenheiro Leonardo Neder, que foi secretário estadual de Infraestrutura e Obras Públicas entre 2013 e 2016. Olhando para trás, ele reconhece que o projeto tinha deficiências já na largada. A principal delas: estar a mais de 10 km do Centro, numa área desprestigiada e que ainda hoje oferece poucas opções de transporte público.
Por outro lado, pondera Neder, dificilmente seria possível fazer diferente. A segunda fase do Minha Casa Minha Vida, implantada em 2011, priorizou conjuntos habitacionais de grande porte – e é sempre complicado adquirir terrenos extensos nas áreas mais centrais dos municípios. “A preocupação de construir moradias em larga escala se sobrepôs à de construir cidades melhores”, lamenta o engenheiro.
O ex-governador Tião Viana acha que há uma dose de exagero nas críticas desferidas contra o bairro de Rio Branco: “Defendo o projeto com a maior tranquilidade. Nós melhoramos a vida das pessoas.” Ele admite, no entanto, que a Cidade do Povo foi se desfigurando, embora não assuma nenhuma responsabilidade pela situação. Prefere culpar o setor privado (“os empresários do Acre são imaturos, nunca querem correr riscos”), o governo federal (“alertei várias vezes para o descontrole das fronteiras e o crescimento do narcotráfico, mas não fizeram nada”) e seu sucessor, Gladson Cameli (“faltou ousadia para continuar uma iniciativa linda, que poderia servir de exemplo a todo o país”).
De acordo com a proposta original, a Bestene Koury ficaria no coração do bairro, rodeada de casas e comércio. Como dois terços do projeto nunca saíram do papel, o colégio acabou isolado num espaço vazio.
Em julho de 2021, os funcionários da escola decidiram fazer uma vaquinha e bancar do próprio bolso uma rede de wi-fi. Contrataram uma provedora, mas a empresa largou o trabalho quando soube que precisaria instalar pelo menos 500 metros de fibra óptica para conectar a Bestene Koury à fiação mais próxima. O custo elevado da operação desanimou a companhia. Já os técnicos de outra provedora toparam viabilizar a conexão, desde que não se responsabilizassem pela manutenção da rede e que o colégio pagasse toda a fiação. Dessa vez, foram os funcionários da escola que desistiram do serviço.
“Aí você vê como a iniciativa privada se comporta. Mesmo os caras vendo que é um colégio, com crianças e tal, não tem negócio. E ainda tem quem defenda o Estado mínimo…”, desabafa Inácio Moreira. Natural de Rio Branco, o coordenador de ensino tem 51 anos e leciona em escolas públicas há quase trinta. Eloquente, sempre se refere a seu interlocutor como “professor” ou “professora”. “Tem áreas que não podem ser privatizadas, professor.”
O bisavô dele, Hipólito Moreira, comandou tropas na Revolução Acreana, que eclodiu em julho de 1899. Na ocasião, seringalistas declararam guerra à Bolívia com o intuito de proclamar a independência do Acre, que ainda fazia parte do país vizinho. Conseguiram. Quando a República do Acre nasceu, Hipólito virou ministro da Justiça. Mas a aventura durou pouco: em 1903, no auge do ciclo da borracha, o governo brasileiro se interessou pela jovem nação, pródiga em seringais, e a comprou, transformando-a numa unidade federativa.
Talvez por causa da herança familiar, o coordenador é um acreano ufanista. Conhece toda a história do estado e costuma vestir as criações de uma grife local. Made in Acre, alardeia a estampa de uma de suas camisetas. Na parte de trás da roupa, outra inscrição pergunta: “Ainda duvida que ele existe?” É uma referência à velha piada de que o Acre, na verdade, não passa de uma ficção.
Contratado pela Bestene Koury no começo de 2020, Moreira é o braço direito da diretora Simone Queiroz. Na pandemia, o coordenador se tornou o principal articulador da “busca ativa”, o processo de atrair novamente para a escola os alunos que se afastaram. Foi um trabalho de formiguinha: quando notava que um estudante parava de ver as mensagens das professoras no WhatsApp ou de cumprir as tarefas propostas, Moreira telefonava para os responsáveis pela criança. Em geral, os pais relatavam que não conseguiam baixar todo o conteúdo das aulas porque tinham um pacote de internet insuficiente. Ou então alegavam falta de tempo para auxiliar os filhos. “Eu dizia: ‘Tudo bem, o menino não precisa fazer essa tarefa aqui. Mas dê um jeito de ele fazer pelo menos aquela ali”, explica o coordenador. Se a barganha não funcionasse – ou se o responsável não atendesse o celular –, a escola formava um comboio, ia até a residência do aluno e conversava pessoalmente com a família dele.
O esforço surtiu efeito e impediu que as crianças deixassem a Bestene Koury em definitivo. Historicamente, no Brasil, o abandono escolar é menor no ensino fundamental do que no ensino médio, quando os estudantes se tornam aptos para trabalhar. Mesmo assim, o risco de evasão assombrava o colégio. Embora ainda não haja um levantamento consolidado sobre o número de alunos que largaram os estudos no país durante a pandemia, é consenso que a crise sanitária fez o índice aumentar. Em maio de 2021, uma pesquisa do Datafolha encomendada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, Itaú Social e Fundação Lemann revelou que 40% dos estudantes da rede pública, com idades entre 6 e 18 anos, não estavam evoluindo nos estudos e, por isso, seus pais cogitavam que eles pudessem abandonar a escola. Um ano antes, eram 26% os alunos nessas condições.
“Nós estamos numa operação de guerra para garantir que as crianças aprendam, no mínimo, a ler, escrever e contar”, afirma Moreira. Quando o aprendizado tarda, os estudantes perdem a motivação e as famílias ficam céticas. “O pai do menino começa a pensar: ‘Está todo mundo desempregado em casa. Por que vou deixar meu filho estudando? Melhor botar o moleque para vender bombom no sinal.’”
Numa tarde de setembro do ano passado, Inácio Moreira embarcou no seu velho sedã e dirigiu pela Cidade do Povo com a diretora Simone Queiroz e a professora Maria Vilma da Silva. Às tantas, estacionou diante de uma casa bege, cuja fachada exibia manchas de infiltração. Num pequeno quintal atravessado por um varal de arame, três irmãos brincavam com um filhotinho de cachorro. O caçula de 7 anos era motivo de preocupação. Aluno de Silva, ele raramente aparecia no WhatsApp e tinha dificuldades enormes para se alfabetizar, embora frequentasse as aulas de reforço presenciais. Em sua casa, há apenas um celular. O aparelho é da mãe, que sai às seis da manhã e só volta às sete da noite. Durante o dia, as três crianças ficavam à toa, sob a supervisão da irmã mais velha, de 14 anos.
Quando avistou os funcionários da escola, o menino abriu um sorriso tímido. “Davi, você não está estudando, né?”, recriminou Silva, carinhosamente. O garoto respondeu que não conseguia usar o celular, pois os irmãos o monopolizavam. “Ó, aqui é igual a quartel: a sua irmã mais velha é o general, os outros dois são os tenentes e você é o soldado”, comparou Moreira, provocando algumas risadinhas. “Um tem que obedecer ao outro, e vocês precisam saber dividir. Cada hora, um estuda.” Todos concordaram.
A mãe, Dayane Rodrigues, de 30 anos, cuida sozinha dos quatro filhos e trabalha seis dias por semana como atendente da Havan, rede de megalojas do empresário bolsonarista Luciano Hang. Antes da pandemia, ela entrava às sete da manhã e terminava o expediente às três da tarde. Mas quando a loja deixou a quarentena e reabriu, em outubro de 2020, os empregados tiveram que fazer pelo menos uma hora extra por dia para compensar o tempo que ficaram em casa. Essa dívida de trabalho foi inventada por uma medida provisória, a MP 927, que o governo federal baixou no início da crise sanitária com o objetivo de socorrer o empresariado.
Às vezes, Rodrigues faz uma hora extra; outras vezes, faz duas. Como o custo de vida disparou, ela resolveu engordar o orçamento nos dias de folga e arranjou um bico de garçonete. “Antes eu tinha algum tempo para educar, mas agora… Meus filhos não aprenderam nada na pandemia”, lastima. O caçula, que já soube pegar com firmeza no lápis e escrever as vogais, regrediu nos últimos meses. A filha de 9 anos se saía bem na tabuada de adição e estava começando a ler com fluência. Hoje, prestes a concluir o terceiro ano, não lembra mais a tabuada e titubeia na leitura.
A atendente da Havan vive na Cidade do Povo desde 2015, quando ganhou uma casa do governo estadual e pôde deixar o barraco onde morava. Com a retomada das aulas presenciais, espera que o prejuízo na educação de seus filhos possa ser revertido. “Se eles não se recuperarem, vão ter dificuldade quando começarem a trabalhar ou fizerem um concurso. Podem acabar ficando para trás”, prevê, desanimada.
Durante a “busca ativa”, os funcionários da Bestene Koury nem sempre foram bem acolhidos. Naquela mesma tarde de setembro, o comboio da escola visitou um aluno do segundo ano que não acessava o grupo de WhatsApp nem fazia as tarefas impressas. A mãe dele tampouco atendia os telefonemas do colégio. Professora do menino, Aline de Moura se uniu aos três colegas para ir à casa do estudante. Ela entrou sozinha e permaneceu ali por apenas um minuto. “A mãe não quer receber a gente”, avisou, assim que saiu. “Na semana passada, ela até me recebeu, mas com cara de poucos amigos”, contou Inácio Moreira. “Falou que estava de saco cheio e que o filho só vai voltar aos estudos quando a escola retomar as aulas presenciais.”
Muitas vezes, em situações desse tipo, os funcionários recorriam a outra estratégia: apareciam nas casas dos alunos munidos de cestas básicas – os sacolões, como dizem os acreanos. Tão logo notavam que as visitas traziam alimentos, as famílias relutantes baixavam a guarda. “A relação melhorava. A gente oferecia algo, em vez de ficar só cobrando, com aquele tom policialesco”, recorda Moreira. Em outras ocasiões, os gestores da Bestene Koury deixavam os sacolões na portaria do colégio. Quando os responsáveis pelas crianças iam buscá-los, também recebiam o conteúdo impresso das aulas e as lições de casa. “Pense numa coisa que deu certo”, se gaba o coordenador de ensino.
Na quarentena, os alunos pararam de comer na escola. Sem emprego nem dinheiro, inúmeros pais não conseguiam suprir por conta própria as necessidades nutricionais dos filhos. Daí o sucesso da estratégia adotada pela Bestene Koury. Somente uma vez, em abril de 2020, a SEE doou cestas básicas no colégio – uma por família. Moreira estima que os funcionários da escola entregaram noventa sacolões desde o começo da pandemia, graças a vaquinhas que eles mesmos promoveram. Quando a instituição reabriu para oferecer aulas de reforço, também foram os docentes que bancaram o lanche das crianças.
Ouvida pela piauí, a secretária Socorro Neri não esclareceu por que o colégio deixou de fornecer alimentos às famílias. Ela disse não saber o que se passou na gestão anterior, pois assumiu o cargo em maio de 2021. Também não explicou por que, a partir de maio, nada mudou. Ressaltou apenas que, em outubro, o governo voltou a distribuir merenda na Bestene Koury e nas demais escolas públicas. Durante as primeiras semanas daquele mês, porém, a secretaria entregou somente parte do necessário para fazer os almoços. Com a inflação galopante, os fornecedores de alimentos exigiram reformular os contratos com o estado antes de normalizarem as remessas. A pendenga só foi resolvida no final de outubro.
Diariamente, uma fila se forma em frente ao Centro Comunitário São Marcos. Pintada de amarelo e vermelho, a construção retangular fica num dos extremos da Cidade do Povo, a 3 km da Bestene Koury. É uma ilha católica em meio a um mar de templos evangélicos, quase todos pentecostais ou neopentecostais. Desde o começo da pandemia, às 16 horas, a entidade doa oitenta potes diários de sopa. Também distribui outros 160 potes em mais dois pontos do bairro. Nunca faltaram interessados. Às três da tarde, os moradores da região vão se aglomerando na porta do centro. Em geral, são mulheres, muitas acompanhadas de filhos pequenos. Algumas vêm de longe e deixam as bicicletas encostadas no meio-fio.
Caminhando lentamente, de lá para cá, o padre Mássimo Lombardi supervisiona as doações. Nascido em Luca, na Toscana, o italiano de 76 anos desembarcou no Brasil durante a ditadura militar. Foi direto para a Amazônia. Adepto da Teologia da Libertação, corrente progressista da Igreja Católica, chegou com outros clérigos e determinado a apoiar os seringalistas nos conflitos de terra. Passou muito tempo embrenhado em localidades rurais do Acre, onde ajudou a fundar cooperativas. Numa delas, Xapuri, conheceu o ativista Chico Mendes, assassinado por fazendeiros há quatro décadas. Mais tarde, depois de acompanhar de perto a criação da Cidade do Povo, assumiu a Comunidade de São Marcos.
Como Lombardi é uma figura respeitada no bairro, Inácio Moreira lhe pediu auxílio no processo de “busca ativa”. O pároco fez o que pôde. Juntos, os dois gravaram um vídeo em que frisavam a importância de as crianças assistirem às aulas online. “Isso é para você, mãe e pai, procurar um futuro para os seus filhos. Você tem que soniar!”, exortou o padre, ainda com um forte sotaque italiano, que conferia uma sonoridade engraçada ao verbo “sonhar”. O vídeo circulou pelos grupos de WhatsApp da escola.
“Sinceramente, não sei como as crianças fizeram para aprender alguma coisa na pandemia”, disse Lombardi, numa quarta-feira à tarde, dentro do centro comunitário – um espaço amplo, que conta com um altar improvisado, uma cozinha e uma mesa de plástico no meio do salão principal. Despojado, o pároco usava uma calça preta com o símbolo da Nike e uma camisa vermelha, que exibia a imagem de São Jorge. O suor abundante colava seus cabelos brancos à testa. Do lado de fora, algumas assistentes entregavam as sopas. “Antes de vir para cá, o pessoal do bairro lavava roupa ou vendia salgadinho no Centro de Rio Branco. Eles sabiam a quem vender. Mas aqui…”, prosseguiu o sacerdote. “Como todo mundo é pobre, ficou complicado. Aquele trabalho, aquele biscatezinho, não dá mais para fazer. Alguns ainda fazem, mas têm que pegar dois ônibus e sair do bairro. A ideia era misturar as pessoas na Cidade do Povo. Vê esse tanto de terreno baldio? Era tudo para a classe média. Mas restaram só os pobres.”
Na primeira semana de novembro, quando a Bestene Koury reabriu em tempo integral, Inácio Moreira gravou outro vídeo, agora com os representantes de cada classe. Eles pediam que os amiguinhos voltassem para a escola. Espontaneamente, recorreram à comida como argumento. “A aula já começou presencial. Lanche está bom, tudo aqui está legal”, disse o representante do segundo ano, vestindo o uniforme dos colégios estaduais do Acre – uma camiseta branca com detalhes amarelos e azuis. “Aqueles que estão faltando é para vir para a escola, que está muito boa, tem lanche, hora do almoço…”, convocou o representante do terceiro ano. A divulgação ajudou. Crianças que sumiram durante a quarentena reapareceram.
É legítimo supor que outros colégios públicos do Acre vivenciam dramas semelhantes aos da Bestene Koury ou até piores. Mas faltam informações oficiais: após 21 meses de pandemia, a SEE ainda não apresentou um levantamento sobre o déficit de aprendizado dos alunos. “Tão logo efetivarmos o retorno das turmas, faremos o diagnóstico”, afirmou Socorro Neri no final de outubro. Na primeira semana de dezembro, indagada mais uma vez, a secretaria deu nova versão: por meio de nota, disse que uma análise já tinha sido realizada nas escolas em abril, embora ainda não houvesse “uma avaliação concreta” dos dados porque o ano letivo só terminará em fevereiro de 2022. “Tivemos, sim, prejuízos na aprendizagem, mas por enquanto não dá para quantificá-los”, resumiu Neri, voltando a comparar o desempenho dos estados: “O que posso dizer é que a situação do Acre não difere muito da situação dos demais estados.”
O retorno à normalidade despertou algum otimismo entre os professores da Bestene Koury. No dia 3 de novembro, data em que a escola pôs fim à quarentena, não houve aulas. Os docentes preferiram organizar uma festa de Halloween para recepcionar as crianças. Confeccionaram máscaras e fantasiaram a garotada de bruxa, monstro, zumbi. Distribuídas nos grupos de WhatsApp, as imagens dos alunos mascarados entusiasmaram os pais. Alguns deles, que quase não acessavam o aplicativo, apareceram para pedir aos professores que enviassem fotos e vídeos de seus filhos. “Teve criança que chorou de felicidade. Elas sentiam falta da escola. Foi muita excitação, como se todas estivessem num bailezinho de Carnaval. Brincaram o dia inteiro”, recorda Moreira. “Agora é botar a mão na massa.”
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