ANDRÉS SANDOVAL_2011
Formiga romântica
O autor dos versos que abismam os passageiros do metrô carioca
Paula Scarpin | Edição 58, Julho 2011
Na estação de metrô da praça General Osório, em Ipanema, um homem grisalho observava o movimento dos passageiros na plataforma. Usava camisa polo vermelha, calça jeans e um brinco de argola na orelha esquerda. Não estava interessado nos que se acotovelavam para embarcar no trem prestes a zarpar rumo à Zona Norte. Sua atenção se concentrava num monitor de televisão pendurado no teto da plataforma. E, disfarçadamente, às vezes percorria a estação com os olhos, em busca de um cúmplice que também estivesse prestando atenção ao vídeo.
Sobre a tela fúcsia, um letreiro bruxuleante anunciou a atração que começava: Poesia Clipe. A imagem cortou para a tomada de pés masculinos caminhando na areia. E vieram os versos:
Tenho saudade de tantas coisas
E de tontas coisas.
Aí o homem constatou, desconsolado, que apenas uma senhorinha olhava para a tevê, com a mão no queixo e uma inequívoca expressão de enfado. O poema prosseguia:
Refaço as rotas de minha vivência
Numa agradável via-crúcis de mim
mesmo.
Por pouco José Antônio Gatti – o homem de vermelho – não abordou a senhora. “Sinto vontade de cutucar as pessoas para olharem o vídeo, de perguntar depois o que elas acharam”, admitiu. Pura insegurança de autor estreante: tinham origem na sua dilatada veia lírica os versos que os passageiros de Ipanema ignoravam. É Gatti, um publicitário de 46 anos com especialização em psicanálise e mestrando em literatura portuguesa, o bardo amador que cinzela as delicadas pepitas poéticas que dardejam no circuito interno do metrô carioca.
A cinco paradas dali, na estação Flamengo, outro poema de Gatti foi recebido com menos indiferença, num fim de tarde de setembro. Gabriela Ventura, uma moça de cachos castanhos, teve seu olhar fisgado pela tela que exibia um entardecer no cais da Urca, como pano de fundo para os seguintes versos:
Sou retalho de lembranças
Tecidas, torcidas, não tolhidas.
Na sequência, quando da tomada de uma gaivota sobre uma pedra, Gabriela leu:
Necessito da costura
Dos pedaços que revivo.
Quando a câmera voltou-se para a praia, acompanhada dos versos:
Numa teia que incendeia
E me norteia
… a estudante quedou-se, muito justificadamente, estática. O metrô chegou e os outros passageiros entraram, mas ela não arredou pé da plataforma. Aquela não era uma experiência que se abandona, assim, pela metade: era preciso ir até o fim.
Como Gatti, Gabriela Ventura faz pós-graduação em literatura portuguesa. Mas não é por ter sido arrebatada pelo poema que ela decidiu ficar. Precisava, absolutamente, saber quem compusera aqueles versos. “Fazer literatura ruim é fácil”, escreveu a doutoranda em seu blog, ainda naquela noite. “Difícil mesmo é fazer literatura muito ruim.” Agastada, ela narrou sua experiência no metrô e deu seu veredicto: “Aquele verso é, provavelmente, a opus magna de um tal José Antônio Gatti. Ou será que ele consegue se superar? Duvido!”
Outros leitores reverberaram as críticas da blogueira na caixa de comentários; alguns até saíram em defesa do poeta. Gabriela Ventura não imaginava que esse seria um de seus posts com maior repercussão. O barulho fez do texto a primeira referência no Google quando se procura pelo nome de José Antônio Gatti. O próprio poeta não demorou a encontrar o debate motivado por sua obra e decidiu acrescentar seus dois centavos. “Confesso que adorei todos os comentários que li por aqui”, escreveu. “Um barato!”
Num almoço na Cinelândia, no Centro do Rio, Gatti se disse satisfeito com a repercussão de sua poesia. “Me diverti muito lendo aquilo”, contou, com aparente sinceridade. “Não existe consenso, a ideia é tocar as pessoas, e isso está acontecendo.”
É bem verdade que o publicitário e psicanalista não tem seus versos em muito alta conta. “Não é nada muito pretensioso”, reconheceu. “São alguns jogos de palavras com afeto. Mas alguns são bem viscerais.”
A obra de Gatti foi parar no metrô meio por acaso, como plano B para um projeto idealizado pelo amigo Azamor Serrão Neto. Sua ideia era veicular conteúdo cultural nos monitores das plataformas do metrô, que geralmente só exibem notícias. “No meio da confusão do dia a dia, queríamos oferecer um oásis, uma pausa para a reflexão”, explicou o autor. O projeto inicial de veicular trechos de canções da MPB, com textos e imagens “bonitas”, revelou-se um fracasso: a música se perdia no burburinho do metrô, e eles nem sequer haviam atinado para a questão dos direitos autorais. No meio da frustração, Gatti lembrou-se de alguns poemas que rabiscara anos antes, e que acumulavam pó em sua gaveta. Mostrou sua obra aos sócios – Azamor e o fotógrafo Paulo Sallorenzo –, que aprovaram de pronto.
Os poemas começaram a ser difundidos no fim de 2008 – os passageiros já foram brindados com dezessete deles desde então. Para ilustrá-los, Sallorenzo se incumbiu de encontrar imagens que casassem com os versos. Num espasmo de criatividade, também começou a trazer vídeos seus, mais autorais, para inspirar a poesia de Gatti. Com baixo orçamento, amigos e parentes foram intimados a atuar nos clipes. Até o poeta entrou na dança, emprestando os pés no vídeo da praia.
Gatti, Azamor e Sallorenzo mandam as imagens diretamente para os monitores das plataformas, sem qualquer filtro do metrô. Censura mesmo, só houve uma vez. Sallorenzo havia filmado a estátua de mármore de uma mulher nua, segurando um seio. Gatti assumiu o desafio de traduzir as imagens em versos. O poema abria com versos sugestivos – “Impávida te vi/ imperiosamente desfrutável” – e terminava de forma bem visceral: “Na tua existência sólida/ fui levado aos mais fluidos sonhos.” A direção do metrô considerou o conteúdo impróprio e pediu que se interrompesse a exibição.
Quando idealizou o projeto, Azamor ofereceu ao metrô metade do lucro dos anunciantes – que, ele estava convicto, viriam com o tempo. Dois anos e meio depois, os sócios ainda não cobriram sequer os gastos iniciais. O retorno financeiro parece uma utopia distante. “Estamos tentando não nos dobrar à pressão do mercado. Somos formiguinhas românticas no meio de tubarões”, resigna-se o vate.