ILUSTRAÇÃO: JACKIE MORRIS_WWW.JACKIEMORRIS.CO.UK
Gatografia
Ana Martins Marques | Edição 88, Janeiro 2014
LIVRO DAS SEMELHANÇAS
O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara
e como ele se esquenta de dentro para fora
o modo como a palma das suas mãos se parece com porcelana trincada
o modo como ao levantar-se você lembra um grande felino
mas ao caminhar já não se parece com um animal mas com uma máquina rápida
e de costas sempre me lembra um navio partindo
embora de frente nunca pareça um navio chegando
o modo como dita por você a palavra “sim” parece uma palavra
que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas
o modo como dita por você a palavra “não” parece uma palavra
que você acabou de inventar
o parentesco entre as fotografias rasgadas os brinquedos esquecidos na chuva cartas
que deixamos de enviar produtos em liquidação frases escritas entre parênteses
papel de presente as toalhas que acabamos de usar e massa de pão
e, mais importante, o parentesco de tudo isso
com o modo como você chama o táxi por telefone
a camisa branca que você acabou de despir sempre me lembra um livro aberto ao sol
seus sapatos deixados na sala sempre me parecem ensaiar os primeiros passos de dança
numa versão musical para o cinema do seu livro preferido
o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa
e você sempre parece estar de visita
e como você pede licença à penteadeira para chorar
o modo como as nossas conversas me lembram bilhetes interceptados cardápios de restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes documentos comidos nas bordas por filhotes de cão
o modo como os seus cabelos parecem as linhas de um livro lido por uma criança que ainda não sabe ler
ou apenas desenhos que alguém por equívoco tomasse por escrita
o modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram a um desastre de avião
parecem as lembranças de um ex-boxeador apaixonado
parecem os contos de fadas preferidos de ditadores sanguinários
parecem os projetos de futuro de crianças muito pequenas
os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de armar as primeiras viagens sem
os pais os países coloridos de vermelho no mapa-múndi pessoas que sempre esquecem
as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a disposição para usar a violência
o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém
a não ser talvez com certas coisas
similares a nada
O BEIJO
Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca
Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?
É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim
POEMA DE TRÁS PARA FRENTE
A memória lê o dia
de trás para frente
acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro
que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?
somos cada vez mais jovens
nas fotografias
de trás para frente
a memória lê o dia
NÃO SEI FAZER POEMAS SOBRE GATOS
Não sei gatografia.
Ana Cristina Cesar
Não sei fazer poemas sobre gatos
se tento logo fogem
furtivas
as palavras
soltam-se ou
saltam
não captam do gato
nem a cauda
sobre a mesa
quieta e quente
a folha recém-impressa
página branca com manchas negras:
eis o meu poema sobre gatos