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    Thomson-DeVeaux, com suas ferramentas: um termo – macróbios – levou a tradutora até uma tribo etíope descrita por Heródoto, mas a resposta estava nos jornais cariocas do século XIX CREDITO: CAIO BORGES_2020

questões vernaculares

A gestação do menino diabo

Como traduzir Memórias Póstumas de Brás Cubas para o inglês com dicionários frágeis e bases de dados gigantescas

Flora Thomson-DeVeaux | Edição 165, Junho 2020

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O selo Penguin Classics lançou nos Estados Unidos, na última terça-feira, dia 2, a nova tradução para o inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas, feita pela escritora e tradutora Flora Thomson-DeVeaux. A edição em brochura esgotou no mesmo dia do lançamento e colocou o romance de Machado de Assis no topo dos livros mais vendidos na categoria “literatura caribenha e latino-americana”, na Amazon norte-americana. A edição em e-book é a única disponível até que seja feita a reposição do estoque nas livrarias dos Estados Unidos, o que deve ocorrer nos próximos dias.

Com o título The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, a edição traz prefácio do escritor Dave Eggers, que diz, a respeito da tradução: “É um presente glorioso para o mundo, porque brilha, porque canta, porque é muito engraçado e consegue capturar o tom inimitável de Machado, ao mesmo tempo mordaz e melancólico, autodilacerante e romântico.”

No texto a seguir, publicado na edição deste mês da piauí, Thomson-DeVeaux, que é colaboradora da revista e diretora de pesquisa da Rádio Novelo, conta como foi a gestação de cinco anos da tradução.

*

O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.

BRÁS CUBAS

Minha tradução para o inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas foi lançada neste mês nos Estados Unidos, pelo selo Penguin Classics, o que já causa certo frisson entre os que ansiavam por ver Joaquim Maria Machado de Assis na prateleira dessa famosa coleção de obras da “literatura universal”. Por coincidência, a data de lançamento é bem próxima do 151º aniversário da morte de Brás Cubas, ocorrida “às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869”, nas palavras do romance. Durante quase cinco anos eu me dediquei a esse livro, pesquisando sobre ele, traduzindo-o e revisando a versão em inglês, que fez parte da minha tese de doutorado na Universidade Brown. O processo de tradução nada tem de extraordinário, e conhecer suas minúcias ajuda pouco no entendimento da obra. Se o leitor não é dado à contemplação dos fenômenos tradutórios, pode perfeitamente saltar este ensaio e voltar a se divertir com o BolsozApp. Mas, aqui, faço eco às palavras de Brás Cubas citadas na epígrafe acima: traduzir é um processo ao menos curioso e pode ser interessante saber o que se passou ao longo de alguns anos na cabeça de uma tradutora do Bruxo do Cosme Velho.

Antes de eu preparar a mesa branca para tentar me comunicar com os espíritos de Machado de Assis e Brás Cubas, tive de me dirigir a algumas presenças desconfortáveis que rondavam a sala: meus colegas tradutores, todos eles igualmente mortos. O norte-americano William Grossman publicou em 1952 a primeira tradução de Memórias Póstumas para o inglês, com o título Epitaph of a Small Winner (Epitáfio de um pequeno vencedor). Na mesma época, o inglês Percy Ellis foi contratado para traduzir o romance para uma série do Instituto Nacional do Livro (posteriormente extinto), e a sua versão publicada em 1955 chamou-se Posthumous Reminiscences of Braz Cubas (Reminiscências póstumas de Braz Cubas). O norte-americano Gregory Rabassa, renomado tradutor de ficção latino-americana para o inglês, publicou a terceira em 1997, com o título The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (As memórias póstumas de Brás Cubas). Nunca considerei uma solução radicalmente diferente da de Rabassa para o título e acabei optando pela mesma formulação, apesar de ter vivido alguns meses de agonia, com a dúvida infrutífera sobre se deveria ou não usar o artigo the.

Eu li Memórias Póstumas de Brás Cubas pela primeira vez em português, quando estava no segundo ano de graduação na Universidade Princeton. Até que decidisse traduzir o livro, meu contato com as versões em inglês fora limitado. Quando iniciei o trabalho, pensei em pegar emprestada a estratégia do tradutor e brasilianista britânico John Gledson, cuja tradução meticulosa de Dom Casmurro eu admiro. Ele descreveu assim o seu processo: traduzia um trecho, deixava-o descansar, depois comparava com as traduções precedentes, fazia alguns ajustes e seguia adiante. A sua intenção era se beneficiar das interpretações dos colegas tradutores sem abdicar do frescor do primeiro contato que tivera com o texto, sem a intermediação de outras leituras.

No meu caso, esse plano acabou sabotado por minha insegurança. À medida que eu avançava na leitura minuciosa de Machado, a elegância ardilosa do autor começou a me intimidar. Passei a duvidar de todas as palavras da minha tradução, de cada sílaba que eu posicionava cautelosamente na página. Nessas circunstâncias, temia que qualquer contato com o trabalho dos meus predecessores pudesse alimentar ainda mais as minhas dúvidas. Tradutores são sempre forçados a lidar com seus predecessores; eu sentia empatia por aqueles homens que haviam mergulhado nas mesmas palavras que eu e sofrido com os mesmos dilemas, mas não podia deixar as leituras feitas por eles contaminarem a minha. Epitaph, Posthumous Reminiscences e Posthumous Memoirs estavam juntinhos na prateleira em cima da minha escrivaninha, ao lado dos dicionários, mas eu me recusava a consultar as traduções antes de ter conseguido resolver eu mesma cada um dos dilemas. Estabeleci, então, uma meta diária de páginas a traduzir e tentei me ater a esse trabalho, sem deixar nenhum obstáculo para trás, nenhum problema sem algum tipo de solução. Foi um processo que levou aproximadamente seis meses.

Se, por um lado, eu evitava tocar nas outras traduções, por outro, abusava dos dicionários. Eles compunham um grupo de aliados rigorosos – mas de páginas delicadas – de valor inestimável para minha tradução. Dou um exemplo, recorrendo ao trecho da nota Ao Leitor que serve de epígrafe a este ensaio: “Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.”

Logo tropecei neste advérbio: “nimiamente”. Estudo a língua portuguesa já faz uma década, moro no Brasil há três anos e meu cotidiano se passa todo em português, mas essa palavra era novidade para mim. Apesar de não a conhecer, pensei que talvez fosse de uso comum no século XIX. Se assim fosse, eu tentaria achar um termo igualmente comum no inglês do mesmo período; se, ao contrário, fosse uma palavra rara, deveria buscar algo tão estranho quanto. Ao pesquisar a expressão “nimiamente extenso”, só a encontrei (além de nas próprias Memórias Póstumas) no Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza, de Francisco Solano Constâncio, de 1836. Nesta obra, o termo “prolixo” é definido como “nimiamente extenso em palavras, razões”. Deduzi, então, que Machado, com a palavra “prolixo” em mente, poderia muito bem ter consultado o dicionário e encontrado ali um jeito mais prolixo e peculiar de dizer o que desejava. Mais tarde, encontrei a expressão “nimiamente extenso” também como sinônimo de “prolixo” no ensaio do Cardeal Saraiva sobre sinônimos da língua portuguesa – que Machado tinha na sua biblioteca. Essa hipótese não apenas fez com que me sentisse mais próxima do processo de escrita dele (devo ter pintado na minha mente um quadro do escritor revirando dicionários), mas me deu uma pista de como proceder. A tradução dessa frase não devia apenas significar “prolixo”: ela tinha que ser prolixa também. Minha tradução para “nimiamente extenso” quase se igualou ao número de sílabas usadas na expressão de Machado: te-di-ous-ly leng-thy.

“Nimiamente” desencadeou em mim uma nova curiosidade: conforme eu trabalhava nos primeiros capítulos, comecei a refletir sobre como obras de referência do século XIX podiam ser um tesouro escondido de informações suplementares – um jeito de eu me inserir no processo de criação de Machado. Se eu pudesse consultar alguns dos dicionários que ele consultava, teria acesso aos mesmos sinônimos e conotações; e, se eu tivesse dicionários português-inglês do século XIX, poderia pensar nas opções linguísticas disponíveis para alguém que, hipoteticamente, estivesse traduzindo Memórias Póstumas para o inglês na mesma época em que o livro foi publicado, em 1881.

 

Na falta de uma máquina do tempo, apelei à Estante Virtual, aquela rede de sebos online, que, por um lado, suprimiu boa parte da diversão de caçar títulos raros nas livrarias físicas, mas, por outro, me ajudou a encontrar dicionários do século XIX e começo do século XX em sebos distantes do Rio de Janeiro, onde eu moro, como os de Piracicaba, Cuiabá, Fortaleza e outros rincões do país. Foi assim que consegui uma cópia de quase todos os dicionários português-inglês do período. Na falta de um dicionário analógico histórico do português brasileiro (como o que existe no site do dicionário inglês Oxford, que tem uma ferramenta fantástica listando os sinônimos de cada palavra, dos mais antigos aos mais recentes), aquelas obras se tornaram os meus recursos principais para tentar entender como as palavras que Machado usou eram compreendidas na sua época, em todas as suas nuances. As traduções que eles ofereciam, mesmo quando pareciam toscas ou arcaicas, frequentemente me sugeriam um caminho.

O maior da turma, de longe, era o Novo Diccionario Inglez-Portuguez, o catatau de Jacob Bensabat que, apesar de ter sido bem pouco útil (por funcionar no sentido contrário ao que eu precisava, do português para o inglês), serviu de grande entretenimento para mim, como falante nativa de inglês, ao me revelar um número estonteante de palavras das quais nunca tinha ouvido falar, como glaverer (lisonjeador, adulador), grim-grinning (que tem o riso medonho, terrível) ou grubble (arrastar-se, andar de rastos, rojar). O diminuto Novo Diccionario Inglez-portuguez e Portuguez-inglez, de Levindo Castro de La Fayette, e o também compacto A Portuguese and English Pronouncing Dictionary, de João Fernandes Valdez, ambos do século XIX, se sobrepõem consideravelmente e tendem a ter definições mais vagas. Para ser muito honesta, devo confessar que a tipografia minúscula era o que mais me desencorajava a consultá-los com frequência (eu uso óculos desde os 6 anos de idade e não queria que as Memórias Póstumas piorassem a minha miopia).

Cheguei à conclusão de que o Novo Diccionario da Lingua Portugueza e Ingleza, de Henriette Michaelis, de 1908, em dois volumes, era o mais completo e sensato trabalho de todo o lote. O livro tem uma organização estranha, com palavras categorizadas por uma raiz comum: “leg/ação”, por exemplo, encontra-se no mesmo verbete de “leg/acia”, “leg/ado”, “leg/al”, “leg/alidade”, “leg/alização”, “leg/alizar”, “leg/almente”, “leg/ar”, “leg/atário”, “leg/atina”, “leg/atório” e “leg/atura”. Mas a maior virtude da obra de Michaelis, da minha perspectiva, foi o esforço incansável da autora na catalogação de frases e ditos do português coloquial. (Machado, aliás, tinha um exemplar do dicionário alemão-português de H. Michaelis na sua biblioteca.)

O Novo Diccionario da Lingua Portugueza e Ingleza se vende na página de apresentação como um livro útil a negociantes que transitam entre o português e o inglês, mas sua oferta de palavras não se limita ao campo dos negócios. Abrindo uma página ao acaso, você pode encontrar, entre os significados de “caber”, expressões como “caber com alguém” (to be in favour with one, to be upon good terms with him); “caber a alguém por sorte” (to fall to one’s lot); “nisto não cabe erro” (there is no danger of erring in this); “não caber o coração no peito” (to have one’s heart ready to burst); e “não caber na pele” (to be extremely fat); entre outras expressões idiomáticas a partir de um mesmo verbo. O dicionário também me paramentou com frases como “deitar a couces pela porta afora”, “sair a passear às ruas” como sinônimo de levar porrada, e “tocar a pavana a alguém” como sinônimo de dar porrada – expressões que, vamos admitir, podem até mesmo fazer parte do vocabulário dos negócios.

As traduções idiomáticas do inglês podem não ser perfeitas, mas a abertura do dicionário à linguagem figurativa e às gírias é uma porta de entrada para a mentalidade do fim do século XIX e começo do XX. Do seu jeito peculiar, essas formas de expressão preservam os costumes, presunções e preconceitos da época. Na página seguinte ao verbete “caber”, por exemplo, está o verbete “cachorra”: little bitch; sort of tunny-fish; fig. negro-woman. Ao tentar pescar conhecimentos de época nesses livros, procurei prestar atenção especial aos seus pontos cegos. Se eu não encontrava neles a palavra ou expressão em inglês que eu empregara, isso não queria dizer que ela não fosse usada naquela época, claro, mas a ausência me servia como alerta de que o termo escolhido por mim podia ser anacrônico.

 

Embora nunca estivessem longe do meu alcance, os dicionários físicos não eram minhas únicas ferramentas. Esse arsenal encontrou uma parceira digital numa ferramenta chamada Google Ngram Viewer. A partir de uma base de dados que se alimenta dos milhões de livros e periódicos digitalizados pelo Google, o Ngram Viewer oferece uma estimativa aproximada da frequência com que um termo ou uma expressão aparece no corpus de determinada língua ao longo dos séculos. No momento em que escrevo, o serviço ainda não está disponível em português, mas permite a busca em publicações de língua inglesa, bem como em subcategorias, como inglês norte-americano e ficção em língua inglesa, e também em livros e periódicos em outros idiomas. Entre suas limitações estão a confiabilidade irregular da tecnologia de reconhecimento de caracteres, que pode criar falsos positivos ou até ler o texto incorretamente, e a base de dados, que ainda está longe de ser um registro completo do uso da língua em qualquer período – por um lado, reúne apenas obras que caíram em domínio público; por outro, ainda depende que seja incrementada essa tarefa hercúlea que é a digitalização de publicações do mundo inteiro. Nos resultados das buscas, notei a predominância de publicações literárias extintas e publicações governamentais, e foi por isso que nunca encarei os resultados ali apresentados como dogma. Entretanto, a natureza idiossincrática dessa coleção do Google era bem-vinda, porque radicalmente diferente das minhas fontes. Quando eu poderia pensar que consultaria uma lista dos endereços da cidade de Birmingham, na Inglaterra, em 1878, ou o Journal of Psychological Medicine and Mental Pathology, publicação do século XIX?

Eu usava com frequência o Ngram Viewer para comparar o uso, ao longo do tempo, de uma frase ou um termo correlato com outros, buscando evitar na tradução o emprego de uma linguagem inapropriada ao inglês do século XIX. A ferramenta se mostrou útil em alguns detalhes, ajudando-me a decidir por street lamp em vez de streetlight, street light ou lamppost para o velho lampião recurvado que um perplexo Brás Cubas contempla (street lamp só perdeu a sua primazia para street light depois dos anos 1980). Quando eu estava às voltas com a dúvida entre beautiful as the day ou pretty as a picture para traduzir a referência de Brás Cubas à sua sobrinha, “linda como os amores”, escolhi a primeira expressão, porque a segunda, aparentemente, só passou a ser usada muitas décadas depois. Outra descoberta divertida foi com relação às “costeletas”, que em inglês eram chamadas, entre as décadas de 1860 e 1920, muito mais comumente de side-whiskers (whiskers é uma palavra antiga para “bigodes”, usada atualmente para se referir aos bigodes de animais). O termo sideburns para se referir a costeletas só se popularizou nos escritos mapeados pelo Ngram Viewer nos anos 1930, tendo atingido o pico de uso nos anos 1970. Sendo assim, adotei side-whiskers para as suíças de Cotrim, o cunhado de Brás Cubas. Julguei que o termo não apenas era mais charmoso, mas soava mais adequado do que sideburns para descrever um chumaço de barba longo o suficiente para ser encaracolado com os dedos – um gesto de Cotrim, que Machado assim descreve: “De noite, sentado à janela, a encaracolar as suíças, não pensava em outra cousa.”

Houve ainda soluções que pareciam fazer sentido segundo os gráficos do Google Ngram Viewer, mas que resolvi dispensar por razões estilísticas ou porque causariam tropeços nos leitores contemporâneos. O termo britânico costermonger parecia corresponder perfeitamente à noção de “quitandeira” e foi muito usado de meados do século XIX até o começo do século XX, mas acabei desistindo dele depois de admitir que eu mesma não seria capaz de entender a palavra em inglês numa primeira leitura. Optei por street vendor – cujo uso, segundo o Google, só ultrapassou costermonger na década de 1970 –, considerando se tratar de um anacronismo perdoável. (Minha tradução deve estar cheia desses anacronismos inconscientes, mas pelo menos o Ngram Viewer me ajudou a ficar atenta a alguns deles e a superar a minha vergonha com antecedência.)

 

Do lado da língua portuguesa, uma colaboração entre a Universidade Brigham Young e a National Endowment for the Humanities, uma das bases de dados do site Corpus do Português, contempla o uso de cerca de 45 milhões de palavras em publicações entre os séculos XIII e XX. Nas minhas pesquisas, percebi que os resultados eram quase todos literários, contemplando romances, contos e poemas de vários autores conhecidos, incluindo Machado. Essa ferramenta foi muito útil no começo do meu trabalho para avaliar se a dicção de Machado coincidia com a de seus colegas, frequentemente me ajudando a entender como ele usava (ou não usava) uma determinada palavra em sua obra.

Brás Cubas escreve, ao explicar sua “sede de nomeada”: “Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.” A expressão “foguete de lágrimas” me deixou descompensada; tentei encontrar uma expressão apropriada no inglês do final do século XIX – e descobrir quais efeitos pirotécnicos eram de uso comum tanto no mundo lusófono quanto no anglófono naquela época. Cheguei a ponto de fazer o fichamento de um manual de fogos de artifício de 1824, antes de desistir de encontrar um equivalente preciso. A palavra “arruído” também me deixou paralisada, mas por um motivo diferente: de acordo com os dicionários, ela podia significar tanto um estrondo alto, quanto uma multidão ruidosa ou um murmúrio. Qual desses significados Machado teve em mente? Quando procurei pela palavra no Corpus do Português, descobri que ele tinha usado a palavra “arruído” em outra obra para se referir ao farfalhar de uma saia de seda, imaginei o barulho confuso de uma multidão falando ao mesmo tempo e optei pelo termo em inglês hubbub. Afinal, a minha tradução ficou assim: I had a weakness for hubbub, banners, pyrotechnics.

Entretanto, o Corpus foi menos útil para encontrar o significado preciso de um termo ou entender a estranheza relativa desse termo em relação ao seu uso atual. Quando eu deparava com este último desafio, frequentemente recorria à Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, um deslumbrante repositório de quase 8 mil periódicos que pode ser pesquisado recorrendo a filtros como “lugar” ou “década” (e foi também ali que pude consultar a primeira encarnação das Memórias Póstumas nas páginas da Revista Brazileira, na qual foi publicada por partes em 1880; só saiu em livro no ano seguinte). Outro exemplo dos primeiros capítulos. Brás Cubas, refletindo sobre sua morte, escreve: “Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um século, e a figurar nas folhas públicas, entre macróbios.” O obstáculo aqui eram os macróbios. Os dicionários explicavam que esse era um termo sinônimo para “alguém muito velho”, mas acabei descobrindo que podia ser uma referência a uma tribo etíope descrita por Heródoto. As coisas só começaram a fazer sentido quando joguei a palavra na Hemeroteca e descobri que os jornais cariocas daquele período publicavam notinhas sobre os muito velhos numa seção intitulada Macróbios, como neste registro do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, de 11 de setembro de 1874:

MACROBIOS – O vigario de Quixadá (districto de Quixeramobim, na provincia do Ceará) communicou os seguintes casos de longevidade: Antonio da Silva Pessoa, pardo, casado, mora no lugar Barra, na ribeira do Cangaty. Conta este velho patriarcha 109 annos. Tem uma prole numerosa. Está cego, mas goza ainda de todos as suas faculdades. Falla muito de sua mocidade. Ignacia Maria do Espirito-Santo, parda, viuva, conta 110 annos. Mora na ribeira do Cangaty, em casa do Sr. Joaquim Pereira de Queiroz. Goza de suas faculdades. Canta ainda decimas que aprendeu quando menina, diz ella. Maria Francisca (conhecida por Mulata), conta 106 annos, india, mora em cima da serra do Teixeira. Foi uma das primeiras pessoas que forão habitar naquella serra. É mãi de numerosa familia. Já lhe vão faltando as ouças.

Meu modus operandi se cristalizou da seguinte forma: quando eu deparava com um enigma léxico, consultava um dicionário de português para mapear conotações, fazia uma referência cruzada com dicionários bilíngues para encontrar alguma solução suficientemente convincente, checava o primeiro registro da palavra ou do termo no Oxford English Dictionary, dava uma olhada nas tendências do uso em inglês no Ngram Viewer e, por fim, tentava comparar a frequência do termo em inglês com o seu uso em português na Hemeroteca Digital.

Conforme eu pulava, diariamente, de obstáculo em obstáculo, tentava compensar minha forte imersão no português abastecendo meu tanque de léxicos em inglês. Guiada por recomendações do próprio Machado, reli A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e ensaios de Charles Lamb, bem como traduções para o inglês de obras de Xavier de Maistre e Voltaire. Também tentei voltar minhas leituras extracurriculares para romances anglófonos do período (como os de Charles Dickens e George Eliot, que constavam da biblioteca de Machado), com a esperança de que pudessem sugerir construções frasais úteis à minha tradução.

 

Com uma primeira versão da tradução em mãos – toda rabiscada com pontos de interrogação e soluções provisórias –, comecei o processo de revisão. Nesse estágio inicial, eu estava menos focada na autonomia estilística do texto em inglês e mais preocupada em checar e desafiar a minha interpretação do português. Ao mesmo tempo, consultei a versão do romance publicada na Revista Brazileira e a comparei com o texto definitivo na edição da Academia Brasileira de Letras, destacando e traduzindo trechos omitidos e acrescentados, dentre outras modificações. Em alguns momentos, observar as mudanças feitas por Machado ajudou a guiar as minhas próprias decisões. Quando ele diminuía a ênfase, eu checava se a minha tradução não estava enfática demais; quando ele trocava uma palavra por um sinônimo, eu examinava as conotações de cada um deles e tendia a adotar a sua segunda escolha.

Depois de catalogar as mudanças nas edições do texto original, comparar com a minha tradução e fazer ajustes nessa primeira revisão, eu me dediquei a transcrever cada uma das traduções anteriores em um documento de três colunas, uma para cada versão – o que me permitia compará-las, trecho por trecho. À medida que digitava alguns capítulos, eu voltava ao texto e lia cada frase em cada versão, indicando divergências e pontos que continham dificuldades, destacando tudo isso com sete cores diferentes. Em cinza, marquei as escolhas estilísticas dentro do mesmo registro (como, para a frase “mais galante e mais novo”, as traduções distinctive and novel, fresher and more dashing e merriment and novelty, dos meus diferentes predecessores); em verde, os termos com vínculo cultural sem equivalente exato em inglês (como “chácara”, que foi traduzida por eles como suburban home, house and grounds e suburban place); em amarelo, as marcas de estilo de cada tradutor; em azul, as passagens cujas traduções divergentes sugeriam alguma ambiguidade subjacente; em rosa, as alusões intertextuais; em vermelho, os erros; e assinalei as omissões com texto em branco sobre fundo preto.

Ao observar escolhas sistemáticas de um tradutor específico ou pontos de fricção entre as três traduções, pude refletir sobre a relação individual de cada um com o livro de Machado ou as dificuldades inerentes ao original. Se eu me mantive escrupulosamente alheia a Grossman, Ellis e Rabassa no momento em que fazia a primeira versão da minha tradução, nessa segunda fase do processo foi crucial consultar meticulosamente o trabalho deles; mesmo quando eu discordava de alguma interpretação, isso me forçava a justificar as minhas próprias escolhas.

Na análise que fiz das traduções anteriores, procurei identificar não as escolhas ou os deslizes individuais, mas padrões de comportamento. Grossman parecia tender a fazer a linguagem de Brás Cubas mais enfática e mais clara do que no original. Num trecho, a frase “Não, volto à primeira ideia” foi vertida por ele como Yes, I stand by my first idea, diminuindo o aspecto errático do narrador machadiano (eu optei por: No, back to the first idea); o “inventor das borboletas” se torna um creator of butterflies, amenizando a estranheza da frase. Acabei descobrindo que algumas das escolhas peculiares de Ellis – que veio ao Brasil no começo do século XX e virou presbítero evangélico – eram na verdade referências cristãs. Brás Cubas se refere à Virgília grávida como “âmbula divina”, o que Ellis traduz como holy pyx – palavra que eu desconhecia e, vim a saber, significava a caixinha onde se guarda a hóstia. Acabei traduzindo de forma mais pagã, como divine ampulla; esta palavra pode significar tanto um vaso romano quanto um frasco em que se guarda os santos óleos.

Enquanto a linguagem de Ellis tinha um sabor mais século XIX, o estilo de Gregory Rabassa, mais conhecido por ter feito a primeira e única tradução de Cem Anos de Solidão para o inglês, era nitidamente moderno. Isso se manifestava, por exemplo, na tendência a pegar frases longas de Machado, recheadas de pontos e vírgulas, e dividi-las em frases mais curtas. Foi só ao estranhar o efeito da mudança feita por Rabassa que pude entender como aqueles longos colares de pontuação cumpriam uma função rítmica específica, e por isso fiz questão de mantê-los sempre que possível. Algumas vezes, senti como se estivesse no meio de uma rivalidade fraterna entre quadrigêmeos idênticos, todos tão parecidos, mas cada tradutor com uma personalidade claramente definida. E, no final, tive a chance de criticar, além do trabalho de Grossman, Ellis, e Rabassa, também o de outra colega: eu mesma. O processo de revisão, que começou quando eu ainda fazia a tese, durou até o começo deste ano, quando os editores da Penguin me ofereceram, cruelmente, a oportunidade de revisar as provas impressas do livro. Cobri os PDFs com comentários, xingando o tempo todo a falta de jeito ou a miopia dos meus eus passados.

Só agora consigo ter algum prazer ao revisitar os desafios do meu processo de tradução; mas tenho também a certeza desagradável de que, assim que a tradução se materializar em livro, não vou querer passar das primeiras páginas. Traduções encontram a sua melhor e mais aterrorizante forma enquanto elas são ainda um mar instável de possibilidades – como Brás Cubas imagina o seu filho com Virgília: “Esse embrião tinha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava, ele escrevia, ele valsava, ele era o interminável nos limites de um quarto de hora.” Uma tradução em curso é um quebra-cabeças infinitamente maleável; assim que termina de ser montado e perde a sua iridescência, provoca um forte sentimento de perda. Não que eu tenha me arrependido de ter mandado o meu Brás Cubas para o mundo, claro. Afinal, cinco anos é tempo suficiente para a gestação de um menino diabo como ele.