Desta vez, os militantes deram nomes aos bois que pretendem enfrentar daqui para a frente. Eles têm pedigree: Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, BASF, Bayer, Aracruz, Stora Enzo FOTO: LEONARDO MELGAREJO_2007
Gigantes do agronegócio, tremei
No seu 5º congresso, o MST inaugura uma nova linha política
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 10, Julho 2007
Sob o sol forte de uma tarde brasiliense, o gaúcho João Pedro Stédile, já grisalho e com as marcas de seus 53 anos, estava onde gosta: à frente de uma passeata do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, marchando em direção à Praça dos Três Poderes. O presidente de um dos poderes, Luiz Inácio Lula da Silva, viajara para o Rio. Poderia ter permanecido na capital, recebido uma comissão com Stédile à frente, e até colocado o boné vermelho – como já fez. Pena: perdeu o nascimento de um MST, por assim dizer, pós-moderno.
No Movimento, passeata chama-se marcha, e 17 500 militantes, além de quase 200 convidados do exterior, marcharam na cadência de palavras de ordem. “Alerta, alerta que camina/ la lucha campesina por la América Latina“, entoou o batalhão internacional. “Um, dois, três, quatro, cinco mil/ ou sai reforma agrária ou paramos o Brasil“, rimou a delegação pernambucana. A do Ceará canta Luiz Gonzaga: “Minha vida é andar por esse país…“. O dia da marcha, 14 de junho, coincidiu com a data do nascimento de Che Guevara, que completaria 79 anos. “Mataram o Che/ mas não mataram o fruto/ o MST vai crescendo por minuto“, repetiram outros batalhões.
Stédile veio na primeira fileira, logo atrás da faixa que anunciava o advento, a partir daquele 5º Congresso, da “nova inflexão” no Movimento: “Por uma reforma agrária popular”. A diferença está na última palavra, “popular”. O adversário, agora, são as gigantes multinacionais do agronegócio. Um dos compromissos assumidos foi o de “combater transnacionais como Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf, Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras” e “impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país”. É a primeira vez que os maiores grupos do PIB agrícola nacional são nomeados por extenso em documento do MST.
Stédile explicou a novidade: “Esses grandes grupos transnacionais têm o controle absoluto sobre a agricultura e sobre todo o processo produtivo brasileiro. Eles controlam os insumos, o pacote tecnológico, dizem como se deve produzir, vendem os agrotóxicos e controlam o mercado. É um inimigo muito mais complicado – ele nos obriga a defender uma outra reforma agrária, que nós chamamos reforma agrária popular. O problema deixou de ser apenas dos sem-terra. Passa a ser de todos os agricultores brasileiros, que devem se unir para enfrentar as transnacionais”.
Stédile esclareceu também o significado prático da mudança: “Além das ocupações, que vão continuar, vamos fazer um movimento de consciência da sociedade, com ações de pedagogia de massa”. Como exemplo da virada, cita a recente ocupação, por um dia, de uma usina da Cargill, no interior de São Paulo. “Era pra tomar a Cevasa? Não. Era pra chamar a atenção da cidade, pelo absurdo da Cargill ser dona de 36 000 hectares de terra em Ribeirão Preto.” Ou seja: a partir de agora, as empresas de agrobusiness, que já foram alvo eventual de ações antes, seguirão a sê-lo, mas na condição de objetivos prioritários. Para rebater as acusações de que o MST atropela o meio ambiente, o 5º Congresso inseriu, na carta final, um compromisso de lutar “contra as derrubadas e queimadas de florestas nativas para a expansão dos latifúndios” e de “exigir dos governos ações contundentes para coibir práticas criminosas ao meio ambiente”. Reafirmou, ainda, a condenação das sementes transgênicas e a difusão das práticas de agroecologia.
Stédile usava sapatos de couro, pretos, calças jeans meio surradas, e camisa xadrez de mangas curtas. Levava a tiracolo, sobre a barriga, a bolsa preta, de pano, que todos os congressistas ganharam. Caminhava calado. Só conversava com quem puxava conversa. Quando a marcha, já pelo sexto quilômetro da ida, chegou à embaixada dos Estados Unidos, havia polícia de sobra protegendo a entrada. A orientação passada e repassada aos militantes foi a de “não aceitar provocações”. Stédile orientou a colocação, no chão, de 30 caixões de madeira, bem em frente à embaixada. Cada um estava coberto por um pano negro com letras brancas formando os nomes dos países invadidos pelos Estados Unidos, e o respectivo número de mortos.
Em torno do ginásio em que aconteciam as plenárias, ergueu-se a cidade improvisada das quatro edições anteriores. Ela tinha 31 000 metros quadrados de lona, 200 banheiros químicos, 350 chuveiros, vinte caixas d’água de mil litros e mais 50 caminhões-pipa. A infra-estrutura foi oferecida pelo governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, mais conhecido pela violação do painel eletrônico do Senado, em 2001. O MST também arrecadou recursos nos estados e junto a prefeituras para conseguir os quase 400 ônibus que desaguaram a militância em Brasília.
Na principal praça da capital, os marchadores ergueram uma faixa gigante: “Acusamos os três poderes de impedir a reforma agrária”. Um desses poderes teria mais pecados que os outros? “Não”, respondeu Stédile. “Eles são colegas, primos, casados, mancomunados há 500 anos.”
O Congresso do MST é um pouco como Stédile: sentencioso. Não há debates depois das exposições – nem mesmo entre os expositores. O que conta, mesmo, é o que os seus integrantes chamam de “mística”: longas cerimônias culturais, nas quais as crenças do MST são encenadas à exaustão. Em relação a congressos anteriores, a mística ficou mais eclética: houve poema de Vinicius de Moraes, canção com Maria Bethânia e até o Augusto dos Anjos de “Toma um fósforo. Acende teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro / A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Stédile ri quando ouve comentários sobre o arejamento cultural da mística. “Estamos avançando”, diz.
O Congresso abraçou outra mudança. A erradicação do analfabetismo nos acampamentos e assentamentos do MST continua a ser um objetivo central. “Quem não estiver estudando não pode ser militante”, disse Stédile, que é economista com pós-graduação pela Universidade Estadual Autônoma do México. Foi formalizada a adoção do programa de alfabetização cubano “Sim, eu posso“. O método, testado na Venezuela, ensinaria a ler em apenas 35 dias. Para solidificar a leitura, contudo, seria preciso dar continuidade ao aprendizado com programas de formação para jovens e adultos. É nessa etapa que precisam entrar os governos estaduais e o Ministério da Educação.
Fernando Haddad, o titular da pasta, foi o único integrante do primeiro escalão do governo Lula a comparecer ao 5º Congresso. Stédile cochichou no seu ouvido: “Marca com a gente, mas fora do ministério, pra gente poder conversar sem frescura”. O ministro respondeu em sintonia: “Tá bom. Nós temos recursos, e onde houver consenso pode haver escala.”
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