A PF desbaratou a quadrilha que traficava cocaína em buchos de boi, com a participação do dono de restaurantes famosos no Rio. Mas uma equipe de policiais roubou o dinheiro e a cena ILUSTRAÇÃO: FERNANDO HEYNEN_2012
Glória e perdição
Como uma operação da Polícia Federal contra o tráfico de drogas com ares de filme épico terminou em chanchada
Consuelo Dieguez | Edição 75, Dezembro 2012
O movimento no Barra Shopping, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, ainda era fraco. As lojas tinham acabado de abrir e os clientes começavam a chegar. O policial federal Samuel Reis, com um pequeno grupo de agentes, aproximou-se de uma mesa onde quatro homens conversavam, na praça de alimentação quase vazia. Puxou uma cadeira e, serenamente, se apresentou: “Bom dia, sou Samuel Reis, da Polícia Federal. Vocês estão presos.” Em seguida, começou a distribuir as ordens de prisão. Eram dez horas da manhã do dia 15 de setembro de 2005.
Naquele momento, após quase três anos de investigação, a PF colocava as mãos em uma das maiores quadrilhas de traficantes de drogas que atuava entre Brasil e Portugal. Cerca de sessenta homens, divididos entre várias equipes, faziam buscas nos apartamentos, escritórios e restaurantes do resto da organização. Pegos em casa sem a menor resistência, os integrantes do grupo se mostravam incrédulos. Em nenhum momento da investigação imaginaram que estivessem sendo monitorados. Nas conversas telefônicas, costumavam zombar dos agentes, dizendo que a polícia brasileira era “muito burra”.
De uma base especial da Polícia Federal, fora da superintendência regional, o agente Aldo Oliveira centralizava as informações e as repassava para o comando de cada equipe. “Estava tudo correndo conforme o esquematizado. Todas as equipes agiram exatamente como o combinado. Seguimos todos os protocolos judiciais para não dar margem a qualquer contestação por parte dos advogados do bando, desde o horário de entrada nas residências até a abordagem aos bandidos”, contou ele, recentemente.
Pelo rádio, Samuel Reis, o Samuca, como é chamado, avisou Aldo Oliveira da prisão dos chefes da organização. Oliveira vibrou. Comunicou-se imediatamente com a equipe encarregada de apreender a droga, que estava escondida num galpão, na Zona Norte carioca. Os seis agentes que se dirigiam para lá, chefiados por Celso Figueiró, também comemoraram. Levavam com eles outro membro da quadrilha que haviam prendido no caminho. A comemoração, porém, durou pouco. Ao chegarem ao galpão, os agentes perceberam que a estratégia cuidadosamente desenhada tinha ido por terra. Figueiró ligou revoltado para Oliveira: uma multidão de jornalistas, misturados a dezenas de policiais que não haviam participado da ação, se aglomerava na entrada do depósito. De acordo com o plano, tudo deveria ser mantido em sigilo até que a quadrilha inteira estivesse presa e a droga e os bens dos traficantes fossem apreendidos. “Era uma operação perfeita”, disse Aldo Oliveira. “Talvez a mais perfeita e mais organizada já feita pela Polícia Federal. Isso, até a chegada ao galpão. A partir daí, tudo começou a dar errado.”
No começo de 2003, a Polícia Judiciária de Portugal solicitou à direção da Polícia Federal, em Brasília, colaboração na investigação de uma quadrilha de portugueses que estaria agindo também no Brasil. Os policiais de lá haviam feito apreensões de cocaína enviada por empresas exportadoras sediadas no Rio de Janeiro, que eles suspeitavam pertencer à organização. Eram empresas de fachada, encerradas logo após a remessa da droga – daí a dificuldade de se chegar aos donos.
Havia uma única certeza: o chefe do grupo era Antônio dos Santos Dâmaso, um empresário discreto, elegante, na casa dos 60 anos, com fios grisalhos despontando em meio aos cabelos pretos. Por mais que a polícia estivesse convicta de que alguns carregamentos de droga apreendidos pertencessem a ele, não havia ainda provas que pudessem incriminá-lo. Ao seguir seus passos, os agentes descobriram que Dâmaso passara a ter negócios no Brasil, mais especificamente em Goiânia, embora não soubessem de que tipo. Suspeitavam que ele estivesse estruturando uma rede de tráfico no Centro-Oeste brasileiro. Poucos dias depois da chegada do pedido de ajuda, o comando da PF em Brasília expediu uma ordem para a superintendência de Goiânia para que levasse adiante a investigação.
O escalado para comandar a operação foi Manoel Divino de Morais, que à época acumulava experiência de vinte anos no combate ao tráfico. Divino é magro, altura mediana, cabelo preto cortado rente à cabeça. Tem um carregado sotaque goiano e, com frequência, faz uso de expressões como sô e gorinha messss. Parece mais um pacato chacareiro que um agente federal especializado em desbaratar quadrilhas internacionais. Ele chamou, para ajudá-lo na missão, Aldo Oliveira, amigo de longa data, então recém-transferido do interior de São Paulo para Goiás. Junto com mais dois agentes, eles se puseram a destrinchar o caso.
Ao ler os relatórios enviados pela polícia portuguesa, surpreenderam-se: a quadrilha era investigada havia já dezenove anos. Tudo começara em meados dos anos 80, quando um açougueiro português, ao desossar uma carne comprada de um grande fornecedor, encontrou dentro dela um pacote de cocaína. O açougueiro entregou a droga à polícia. A carne havia sido fornecida pelo frigorífico Transcontinental, de propriedade de Antônio Dâmaso. Interrogado, ele argumentou que havia importado o produto do Brasil, e deu o nome das exportadoras. À época, policiais federais do Rio chegaram a ser acionados. Procuraram pelas empresas. Descobriram que eram de fachada e que tinham sido encerradas. Dâmaso continuou no radar da polícia portuguesa, mas as investigações não prosperaram ao longo de vários anos. A esperança de flagrá-lo estava agora nos negócios que abrira no Brasil.
Divino e Oliveira ficaram na cola de Dâmaso durante oito meses. Descobriram que ele havia comprado uma fazenda de 6 mil alqueires, terra a perder de vista, em Varjão, próxima a Goiânia, por 7 milhões de dólares, preço muito acima dos praticados na região. Deu à fazenda o nome de Quinta da Bicuda, o mesmo de uma propriedade que tinha em Portugal, e começou a criar gado.
Os gastos de Dâmaso com a criação eram fora de padrão. A fazenda, dotada de tecnologia de ponta, com irrigação computadorizada e cochos também monitorados à distância, por controle remoto, estava abarrotada de animais e o proprietário não se desfazia de nenhum. Mas essas informações não diziam muita coisa. “Afora os gastos excessivos sem fonte de renda comprovada, nós não conseguíamos fazer qualquer ligação com o tráfico”, rememorou Divino, em outubro passado, durante um almoço num restaurante em Goiânia, enquanto comia picanha com arroz e farofa. “O que havia ali era, no máximo, lavagem de dinheiro. Mesmo assim, brincávamos que Dâmaso não lavava o dinheiro, e sim sujava, porque, se fosse vender o gado, jamais alcançaria o que fora investido.”
Com autorização do juiz Gilton Batista Brito, da 11ª Vara de Goiânia, os agentes grampearam os telefones da casa e os celulares do empresário. “A parceria com o Judiciário é fundamental”, explicou Divino. “As autorizações de escuta telefônica e ambiental precisam ser rápidas senão não conseguimos acompanhar os passos da quadrilha.” Esbarraram na discrição do investigado. Dâmaso falava muito pouco ao telefone. Quando isso acontecia, era sempre em código, que eles se esforçavam para entender. Uma das ligações mais frequentes vinha de um telefone público do Paraná, de um homem que se identificava como Tob. Nas conversas não havia nada de comprometedor, mas os policiais perceberam que sempre que recebia esses telefonemas Dâmaso viajava para o Rio de Janeiro.
Os agentes chegaram à conclusão de que, em Goiânia, pouco avançariam. Passadas as festas de Natal e Ano-Novo, Divino, Oliveira e os outros dois agentes deixaram suas famílias e se mudaram para a capital fluminense no início de 2004. “Com as diárias que recebíamos, de menos de 200 reais cada um, alugamos um apartamento minúsculo no bairro da Glória, próximo ao Centro da cidade, um muquifo, como eu me referia ao lugar, e montamos ali um alojamento”, contou Divino.
No Rio, sempre com autorização do juiz de Goiânia, eles continuaram a monitorar os telefonemas de Dâmaso. Os agentes penavam com a nova cidade. O trânsito, o desconhecimento dos locais, tudo servia de barreira para que a investigação avançasse. Para ajudá-los, foram destacados dois policiais do Grupo Especial de Investigações Sensíveis, o Gise, uma divisão de elite da Polícia Federal carioca: Roberto de Araújo e Samuel Reis, o Samuca. “O Roberto era muito bom na quebra dos códigos usados nas conversas entre os integrantes do bando”, lembrou Aldo Oliveira durante o almoço. “Ele e o Samuca também eram muito ágeis. Não havia lugar que eles não conhecessem.”
Os investigadores descobriram que o sócio de Dâmaso no Brasil e seu principal interlocutor era José Antônio de Palinhos, um português de pescoço e nariz largos, cabelos curtos e ondulados e sobrancelhas cerradas, há anos radicado no Rio. Palinhos utilizava o codinome George Cohen. Gostava tanto do sobrenome de origem judaica que o incorporou à identidade dos filhos. Dizia para os mais próximos que o sobrenome lhe dava credibilidade com doleiros cariocas, muitos dos quais são judeus. Palinhos era dono de duas das mais badaladas redes de restaurante da cidade: a pizzaria Capricciosa, com filiais em quase toda a Zona Sul, e os restaurantes Satyricon, em Ipanema e no balneário de Búzios.
Os diálogos telefônicos entre Dâmaso e Palinhos em nada sugeriam uma conversa entre dois traficantes tramando um golpe. Pareciam dois empresários negociando a exportação de alimentos, o que era compatível com as atividades empresariais dos dois. Os policiais se revezavam nas escutas, na transcrição das conversas gravadas, no acompanhamento dos investigados. Dormiam poucas horas por noite. Se tomavam conhecimento de que um avião chegaria às seis da manhã com um dos investigados a bordo, às cinco já estavam no aeroporto. Foram se inteirando da rotina da quadrilha.
Descobriram que “a feirinha”, onde o grupo marcava encontros, era a praça de alimentação do BarraShopping, réplica do antigo Mercado da Praça XV. Descobriram também que o grupo costumava se sentar à mesma mesa, mais isolada, no restaurante Pax Delícia, no mesmo shopping, e que a mesa próxima à janela do restaurante do hotel Sheraton, na Barra da Tijuca, era o local preferido para jantares. “Com o tempo, você passa a raciocinar com a cabeça do investigado. Você estuda tanto o comportamento dele que se antecipa ao que ele vai fazer”, disse Divino.
Os policiais conseguiram gravar reuniões em quartos de hotel; se disfarçaram de funcionários de hotéis e de companhias telefônicas, acompanharam os suspeitos até as lojas onde compravam celulares para anotar os novos números. Os agentes chegavam a gastar toda a diá-ria num jantar no Sheraton. Um deles, encarregado de acompanhar a movimentação do restaurante Satyricon em Búzios, certa vez levou a mulher e o filho como disfarce. A conta apresentada lhe custou mais de três diárias.
Um ano depois de chegar ao Rio, no final de 2004 os policiais já tinham mapeado a organização. Além de Dâmaso e Palinhos, pelo menos mais dezessete pessoas pertenciam ao grupo. Entre elas, os dois encarregados das empresas-fantasma: Vânia de Oliveira Dias, uma mulher de cabelos alisados e pintados de louro, secretária e amante de Palinhos; e o advogado Estilaque Oliveira Reis, um mulato de cabelo cortado rente à cabeça. Eles abriam firmas exportadoras usando nomes de laranjas.
Seguindo o fio da meada, os agentes descobriram que o importador em Portugal era Antônio de Palinhos, irmão de José de Palinhos. Outro sócio de Dâmaso em Portugal era Jorge Manoel Rosa Monteiro, encarregado de distribuir a droga pela Europa. Tudo se encaixava no organograma desenhado pelos federais. Faltava, no entanto, a prova do crime. “Em quase dois anos de investigação, nós não víamos qualquer movimentação da droga”, contou Manoel Divino. “Isso nos deixava exasperados.”
O GALPÃO DA CARNE
Rocine Galdino de Souza, um paraibano na casa dos 70 anos, era um homem desalinhado, gordo, bastante peludo, com duas entradas pronunciadas na fronte. Morava na Zona Norte carioca, em Higienópolis, um bairro de classe média baixa cercado por favelas. Rocine, como era tratado pelo grupo, era dono de um galpão frigorífico no Mercado São Sebastião, um gigantesco entreposto onde se vende de tudo, principalmente produtos alimentícios no atacado. Após ouvir as constantes conversas entre ele e Palinhos sobre carne estocada, os agentes foram ver o lugar de perto. O galpão ocupava um quarteirão inteiro e ficava entre as ruas do Arroz e da Cevada. Era um espaço tão grande que um caminhão podia manobrar ali dentro. Rocine exportava carne – filé mignon, picanha e sobretudo bucho de boi. Toneladas de bucho de boi. Junto com ele trabalhava o açougueiro Márcio Junqueira de Miranda, um mineiro magro, de cabelos pretos, que chamava atenção por cometer muitos erros ao falar. Junqueira, sabia-se pelas escutas telefônicas, já havia trabalhado com Palinhos e Dâmaso em outras ocasiões. Era extremamente cuidadoso ao chegar ao galpão. Deixava o carro a quadras de distância, entrava por uma porta diferente da de Rocine e trocava de roupa antes de sair.
Os policiais desconfiavam que a droga estivesse escondida no galpão, mas não podiam se precipitar. Se invadissem o local e não encontrassem a cocaína, a investigação estaria arruinada. Uma pessoa só pode ser incriminada por tráfico caso haja, como se diz no jargão jurídico, a materialidade da prova. Ou seja, a droga tem que existir e precisa ser comprovado o vínculo direto do traficante com o produto. Nenhum dos grampos havia captado qualquer insinuação de que a droga estivesse no galpão. “Era tudo muito bem-feito”, contou Aldo Oliveira. “Eles eram extremamente profissionais.”
Os agentes, no entanto, perceberam que Rocine andava aflito. Cobrava de Palinhos que dessem “um jeito no negócio”, “que estava demorando demais”. Palinhos pedia calma. No começo de 2005, Rocine viajou até São Paulo, onde se encontrou com um jovem alto e magro. Era Tob, que desde 2003 mantinha contatos telefônicos com Dâmaso. Nesse dia, ele vestia camisa e calça jeans, usava óculos escuros e portava uma mala de couro. Tob e Rocine caminharam pelo saguão do Aeroporto de Congonhas até parar em um canto discreto. Rocine lhe mostrou um papel escrito à mão, filmado pelos policiais, no qual detalhava as suas despesas no galpão naquele mês. Eram vultosas: 30 mil reais só com energia, afora o pagamento de funcionários, transporte, compra de bucho. Somava-se a isso sua “comissão pessoal”. Foram para um outro local, mais reservado, próximo a uma das escadas do aeroporto. Ali, Tob entregou a mala a Rocine, que a abriu e conferiu o conteúdo. Maços e maços de notas de 100 dólares. No total, 300 mil dólares.
Com a imagem captada, os policiais foram investigar o novo personagem. Tob era um dos apelidos de Carlos Roberto da Rocha, um empresário de Londrina, também chamado de Beto. Era irmão de Luis Carlos da Rocha, conhecido como Cabeça Branca, um dos maiores traficantes brasileiros, distribuidor de droga para diversas quadrilhas. Cabeça Branca era responsável por trazer cocaína da Colômbia, da Venezuela e da Bolívia. Como sugere o apelido, é grisalho, cabelo curto, magro e não muito alto. Fora fotografado dirigindo carros de luxo, sempre acompanhado por mulheres diferentes. A partir do contato de Rocine com Tob, não restava mais dúvidas para os policiais de que o galpão onde funcionava o frigorífico era o esconderijo da droga. Restava saber se a carga estava no local ou se ainda seria levada para lá.
O esquema movimentava fortunas. Bastava um telefonema de Palinhos à doleira Odete Guglielmo Gastaldi para que o dinheiro chegasse às suas mãos. Ela era uma mulher de meia-idade e sua casa de câmbio funcionava numa sala acanhada no Centro do Rio. Ali, todas as portas eram de ferro. Por meio de operações via cabo (mecanismo financeiro pelo qual uma ordem de remessa é dada em um país e o dinheiro imediatamente liberado para o destinatário em outro país), milhões de dólares e euros eram colocados à disposição de Palinhos. Algumas remessas variaram entre 5 e 8 milhões de dólares. O dinheiro geralmente era entregue no Satyricon ou em um de seus domicílios, um apart-hotel de luxo em Ipanema, o Tiffany’s. Houve ocasião em que uma tropa de motoboys saiu da casa de câmbio com 2 milhões de dólares, arrumados em sacolas de papel. No restaurante, quem recebia as sacolas era o filho de Palinhos, Rodrigo Palinhos Pereira.
O dublê de empresário e traficante envolveu a família nos negócios lícitos e ilícitos. À época, era casado com Sandra Tolpiakow, que também cuidava da movimentação do dinheiro das drogas e dos restaurantes. O padrasto dela, o italiano Vladimiro Leopardi, comandava a cozinha da Capricciosa e, junto com o neto, Rodrigo, eram testas de ferro das pizzarias e do Satyricon.
Ao contrário de Dâmaso, Palinhos era falastrão. Gostava de dizer ao telefone as quantias de dinheiro que recebia, embora nunca informasse a origem. Seus restaurantes tinham um faturamento diário expressivo, de mais de 100 mil reais. Mas esses valores não se comparavam ao que recebia nos pacotes enviados pela doleira. Certa vez, em conversa com o filho Rodrigo, que lhe telefonou para avisar que estava indo para Búzios, alertou: “Cuidado que no porta-malas do carro tem uma pasta com mais de 500 mil dólares.”
Boa parte do que Palinhos ganhava era aplicada em imóveis e carros de luxo. Sua casa em Búzios custou 7,2 milhões de dólares. Na Barra, tinha várias coberturas. Por uma delas, pagou 4 milhões de dólares, sempre em espécie.
Encarregado de fazer o pagamento da compra desse imóvel, Estilaque Reis certa vez recebeu um telefonema de Palinhos, que reclamava da demora na conclusão da operação. O advogado estava numa agência bancária, junto com o vendedor, e tentou explicar que era “muito dinheiro para contar”. Palinhos pediu que ele passasse a ligação para o vendedor ao seu lado. Era um empresário de Fortaleza. Na conversa, tentou barganhar um preço melhor, já que estava pagando à vista. Ouviu como resposta: “Ô, Palinhos, você já lavou mais de 400 mil dólares só nessa escritura. Ainda quer desconto?”
Palinhos gostava de Porsche, de Mercedes e de caminhonetes de luxo. Tinha vários. Os carros ficavam guardados nas garagens de seus imóveis. Jamais os registrava como seus. Mantinha todos em nome da concessionária AGO Mercedes-Benz, na Barra, e, quando o IPVA estava para vencer, os vendia e comprava outros. Num dos telefonemas interceptados pela polícia, o dono da AGO Mercedes-Benz, dizia a Palinhos que iria emitir notas de pelo menos alguns carros para que a agência não fosse flagrada pela fiscalização. As notas entregues a Palinhos somavam 25 milhões de reais.
Nessa época, o traficante estava comprando vários imóveis pertencentes a bares e restaurantes do Rio. Entre eles o restaurante Antonino, tradicional reduto da boemia carioca, de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Lá, planejava abrir uma boate “classe AAA”, como frisava em suas conversas telefônicas, para 1 500 pessoas. Já gastara 2 milhões de reais na reforma e previa gastar mais 2 milhões. A boate se chamaria Capital.
Seu filho Rodrigo também gostava de se exibir. Numa conversa telefônica com um primo de Portugal, contou que estavam pensando em comprar um avião. “Não temos mais onde colocar tanto dinheiro”, comentou. Certo dia, o filho de Palinhos disse que 3 milhões de euros apreendidos pela Justiça portuguesa por falta de documentação, numa transação feita por uma das empresas do grupo, estavam sendo liberados. Contou que um procurador em Portugal recebera 500 mil euros para liberar o dinheiro.
Rocine, o dono do galpão, era outro habituado a ostentar. Apaixonado pela gerente do banco do qual era cliente, costumava depositar boas quantidades de dinheiro na conta dela. Dizia que lhe daria toda a sua fortuna. Os maiores gastos dele, porém, eram com as corridas de kart do neto e com seu maior vício, o jogo. Torrava dinheiro na loteria e no jogo do bicho. Chegava a gastar 30 mil reais em apostas num único dia. Ligava para a atendente da casa lotérica e pedia que ela fizesse os jogos. Depois, mandava o dinheiro em espécie. Quando, uma vez, ela reclamou de falta de dinheiro, ele depositou 15 mil reais, “de presente”, na conta dela. Sua forma de transportar dinheiro era peculiar. Enrolava milhares de dólares em camisetas de malha branca acondicionadas em caixas de papelão e as despachava para a Paraíba em porta-malas de ônibus. Lá, o irmão as recolhia e utilizava o valor na compra de imóveis.
O agente Roberto de Araújo é um policial federal na faixa dos 40 anos, alto, corpo atlético, cabelos escuros, grandes olhos azuis e um riso maroto. Numa conversa recente, ele me contou que, em 2005, depois de ter quebrado vários códigos da quadrilha, não se conformava de não ter encontrado nenhum indício da cocaína. Concluiu que tinham deixado escapar alguma informação importante durante a análise das escutas.
Decidiu repassar centenas de horas de conversa, desde o início da investigação. Deteve-se em um diálogo travado entre Tob e Palinhos meses antes. Com a voz um pouco ansiosa, Tob disse: “A criança foi para o hospital. Cuida do depósito.” Araújo ouviu novamente a conversa. Procurou nos arquivos da Polícia Federal se tinha havido alguma apreensão de droga naquela data. De fato, um carregamento de cocaína fora apreendido em São José do Rio Preto, em São Paulo, por uma equipe da Polícia Federal envolvida em outra investigação. A droga viera do Mato Grosso no fundo falso de um caminhão que transportava arroz. Em São Paulo, o caminhão entrou numa fazenda. Lá, parte do pó foi descarregada e o veículo seguiu com uma carga de açúcar. Perto do Rio, foi interceptado e a droga, apreendida.
Os policiais se deram conta de que esse carregamento tinha o depósito de Rocine como destino. Refazendo a trajetória da investigação, agora com mais elementos, concluíram que a droga estava estocada no galpão havia um ano e seis meses, e só não fora despachada para Portugal porque as empresas de exportação ainda não estavam regularizadas. Além disso, a quadrilha esperava repor esse carregamento apreendido – 500 quilos de pó.
“O custo e os riscos de despachar um carregamento desses são muito altos”, explicou Araújo. “Eles estavam esperando a chegada de novo carregamento para então despachar tudo junto. Por isso, não víamos a movimentação da chegada da droga. Ela já estava no galpão.”
A EQUIPE SEVEN
Na tarde de 21 de outubro de 2004, o publicitário Duda Mendonça desembarcou no Aeroporto Santos Dumont, no Rio, após um dia de trabalho na campanha da candidata Marta Suplicy, do PT, que tentava a reeleição à Prefeitura paulistana. Tomou um táxi rumo ao Clube Privé Cinco Estrelas, em Jacarepaguá, um casarão de muros altos, piscina, jardins, vigiado por câmeras de segurança, onde se realizavam rinhas de galo, atividade ilegal no país. No caminho ele avistou uma frota de carros da Polícia Federal estacionada em um posto de gasolina, com as sirenes acesas. Mendonça comentou com o taxista: “Os federais estão na rua. Alguém vai se foder hoje.” O táxi seguiu seu caminho.
Cerca de uma hora depois, uma equipe de cinquenta homens da PF cercava as entradas da casa onde o publicitário se encontrava. Um grupo de agentes, comandados pelos delegados Antônio Rayol e Lorenzo Pompílio da Hora, entrou no clube. Na sala havia uma espécie de arena coberta por carpete vermelho. No centro dela ficava o ringue onde aconteciam as rinhas. Nas paredes, painéis indicavam as apostas. O valor mínimo era de 500 reais. Por um corredor, os delegados chegaram a um local climatizado, cheio de gaiolas cobertas, onde os galos, observados por um veterinário, eram preparados para a briga. No fundo do quintal, jaziam dois animais, mortos naquela tarde.
Rayol mandou chamar os responsáveis. “Logo um pequeno grupo se aproximou de nós, com um homem à frente que eu imaginei ser o líder”, contou o delegado, hoje aposentado da PF, durante uma conversa, em outubro, em seu escritório, no Centro do Rio. O homem era Duda Mendonça. “Vestia camiseta preta, calça jeans e usava uma pochete horrorosa”, disse.
Segundo Rayol, ele foi educado. Apresentou-se tentando, sutilmente, impressionar: “Eu sou o Duda Mendonça, assessor do presidente”, teria dito. Rayol garante que não o conhecia pessoalmente e, por isso, não ligou o nome à pessoa. “Quando ele se referiu ao presidente, eu pensei que fosse o presidente do clube”, afirmou.
Travaram o seguinte diálogo. “E o presidente está aí?”, perguntou-lhe Rayol. “Não, não, o presidente não vem aqui”, Mendonça apressou-se em esclarecer. Um agente federal cochichou ao ouvido do delegado, identificando o interlocutor. O publicitário pediu para dar alguns telefonemas. Rayol autorizou. Ligou para a Presidência da República, para José Dirceu, então ministro da Casa Civil, e para o então diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda. Ninguém o atendeu. Esbravejou. “Esses filhos da puta quando precisam de mim me encontram, quando eu preciso deles, não encontro ninguém.” O único a retornar a ligação foi o então titular da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Ao saber do ocorrido, o ministro fez uma única recomendação: “Procure um advogado.” Por volta das quatro horas da manhã, Duda Mendonça e mais quatro sócios do clube foram levados detidos e enquadrados em crime ambiental e de formação de quadrilha.
Na operação, além da prisão dos diretores do clube, foram apreendidos documentos e o dinheiro das apostas. Algum tempo depois, o procurador Orlando Monteiro Espindola da Cunha, do Controle Externo da Polícia Federal, encarregado de fiscalizar os atos da corporação, recebeu a visita do advogado do clube. Este lhe disse que alguns talões de cheques já assinados e apreendidos na operação da PF estavam sendo descontados. O procurador abriu uma investigação.
O rastreamento dos cheques levou aos principais suspeitos do roubo: um grupo de policiais da Delegacia de Repressão a Entorpecentes, a DRE, que se autodenominava equipe Alfa ou equipe Seven, o número de agentes que a acompanha. Acreditava-se na PF que eles, embora eficientes, se apossavam do que entre policiais é conhecido como “espólio de guerra” – parte do dinheiro e bens apreendidos durante as operações.
Esse grupo era fã da série de tevê americana The Shield (O Distintivo), que narra a história de policiais corruptos e bastante violentos, mas bons de serviço. Era comum vê-los assistindo aos episódios da série em uma sala onde costumavam se reunir, na própria DRE. Jovens – tinham entre 25 e 35 anos –, os agentes do Seven pareciam tentar emular os personagens da tevê.
Marcos Paulo da Silva Rocha, apelidado de Miolo Mole, tinha a fama de “quebrador” – o que, na gíria policial, significa matador. Frequentemente truculento, Rocha causava temor até nos colegas. Ivan Maués, ou Português, era um policial sedutor e inteligente, mas igualmente corrupto. Era reconhecido pela competência nas ações contra traficantes, embora se relacionasse com alguns deles. Clóvis Barrouin Mello Neto, o Gordo, era filho de um lendário agente federal, responsável pela morte do bicheiro Toninho Turco, nos anos 80, e acusado, além disso, de ter participado de ações contra presos políticos na ditadura. Outros integrantes eram André Campos, o Cascudo, muito amigo de Rocha, além de Marcel Hamada Grezes, o Japonês, e Adilson Albi Vieira, o Didiu.
O último a compor a equipe Seven foi Fábio Marôt Kair, escrivão, responsável pelo cofre da DRE. Os colegas o apelidaram de EMA, Escrivão Metido a Gente; às vezes o chamavam de Rosca. Recém-chegado ao Rio, vindo de São Paulo, Kair era um pouco obeso e tinha cara de criança crescida. Idolatrava os companheiros. “O Fábio Kair se deslumbrou com as facilidades que os agentes do grupo conseguiam”, contou o procurador Orlando Espindola da Cunha, no final de outubro. “Era muita mulher, bebida. Ele passou a se sentir poderoso como os outros.” Em meados de agosto de 2005, o cerco ao grupo Seven estava se fechando. O procurador já tinha conseguido reunir as provas contra eles. O interrogatório ocorreria em questão de dias.
Nessa mesma época, outra equipe da Polícia Federal que investigava crimes financeiros esteve no galpão de carne atrás de Rocine Galdino. Os policiais o intimaram a comparecer à superintendência regional, no Centro do Rio, para prestar alguns esclarecimentos. Rocine ligou para Palinhos e, nervoso, disse que os federais estavam atrás dele. Ao ouvirem a escuta, os agentes Manoel Divino e Aldo Oliveira também se espantaram. O que a PF estaria fazendo no galpão? Àquela altura, eles já estavam perto de flagrar e prender a quadrilha.
Descobriram então que Rocine montara uma gráfica para produzir etiquetas de certificação de qualidade falsas, a fim de colocar na carne, substituindo-as pelas originais, que já estavam com o prazo de validade vencido. Uma empresa-fantasma, a Agropecuária da Bahia, tinha sido aberta naquele estado para que a droga fosse exportada. “Nessa época, nós não tínhamos mais dúvidas de que a droga estava prestes a sair do Brasil escondida nas embalagens de carne”, contou Divino. “Só não tínhamos invadido o galpão porque estávamos esperando a chegada de Dâmaso e outros integrantes do bando ao Brasil. Não bastava pegar os peixes pequenos. Não fazia sentido montar uma operação daquele tamanho se os chefes não fossem presos.”
A chegada de Dâmaso ao Rio estava prevista para 19 de setembro. Os agentes tinham organizado a prisão da quadrilha quando ele desembarcasse no aeroporto. Cerca de 200 homens seriam mobilizados. Ficara acertado com o comando da PF que, além do grupo envolvido na investigação, apenas policiais de São Paulo e de Brasília participariam das diligências. Em razão da origem dos líderes da organização, a PF a batizou de Operação Caravelas. Os policiais da superintendência do Rio ficariam de fora, em razão do recente problema do roubo dos cheques apreendidos na rinha de galo.
A ida de outra equipe da PF ao galpão, naquela manhã de agosto, nada tinha a ver com a repressão ao tráfico. Os agentes da Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros procuraram Rocine a pedido do Banco Central, para que ele explicasse uma operação de fechamento de câmbio de 1 milhão de reais. Ao sair da PF, Rocine ligou novamente para Palinhos e o avisou do teor da intimação. Mesmo que não tivesse ligação específica com a droga, a visita da PF ao galpão deixou todos assustados. Palinhos ligou para Dâmaso, que decidiu antecipar sua vinda ao Brasil a fim de acelerar o envio da droga para a Europa.
Dâmaso convocou uma reunião para o dia 14 de setembro. O encontro foi marcado no restaurante do hotel Sheraton, na Barra, às sete e meia da noite. Bem antes disso, a equipe de Manoel Divino já estava posicionada no hotel. Disfarçados de turistas, de funcionários do Sheraton e de executivos, os agentes se espalharam pelo restaurante. Divino sentou-se em uma mesa próxima à que o grupo costumava usar. O primeiro a chegar foi Dâmaso. Em seguida chegaram Rodrigo Palinhos Pereira, seu pai, José Palinhos e, finalmente, Rocine.
Pela primeira vez Dâmaso alterou o tom de voz. Reclamou com os demais que tinha sido uma irresponsabilidade não ter fechado o câmbio e que haviam colocado o negócio em risco. Rocine, por sua vez, reagiu dizendo que ele é quem estava correndo perigo porque “o negócio”, afinal, estava com ele. “Em que lugar está?”, teria lhe perguntado Dâmaso. Na mesa ao lado, pela primeira vez os policiais tiveram a certeza do local exato da droga. “Na buchada”, respondeu. Dâmaso acertou com todos que a droga teria que ser imediatamente retirada do galpão. Marcaram uma reunião para as dez horas da manhã seguinte, na “feirinha” do BarraShopping. Ali decidiriam os detalhes da transferência da cocaína para outro depósito, fora do Mercado São Sebastião. Eram onze e meia da noite quando o grupo se despediu e deixou o hotel.
A partir daquele momento, os policiais federais começaram a correr contra o relógio para consumar a prisão do grupo no encontro da manhã seguinte. Como inicialmente a operação estava marcada para o dia 19, os planos tiveram de ser revistos. Na madrugada do dia 15, agentes do interior do estado do Rio foram convocados em caráter de emergência. Não havia tempo para esperar a chegada das equipes de São Paulo e Brasília. Conseguiram reunir sessenta homens, muito aquém dos 200 previstos.
O comando da operação ficou a cargo do delegado Ronaldo Magalhães, de Brasília, que estava no Rio. Às cinco da manhã, as equipes já estavam todas instruídas e posicionadas discretamente. Tudo fora pensado. Nada de uniforme preto ou boné, que a equipe de Divino chamava de “fantasia de policial federal”. Nada de carros com distintivo, nada de aviso prévio à imprensa, nenhum espetáculo. “Não podíamos dar o bote errado depois de dois anos e oito meses de trabalho exaustivo, afora as despesas com diárias, passagens, combustível”, disse Divino. “Um erro poderia pôr tudo a perder e aí não teríamos condições de recomeçar a investigação. Imagine a responsabilidade.”
Às dez horas da manhã, Dâmaso, Palinhos e Rocine sentaram-se à mesa no shopping. Para surpresa dos policiais, outro integrante juntou-se ao grupo. Era Carlos Roberto da Rocha, o Tob, que tinha vindo do Paraná de madrugada e, por isso, não tinha sido encontrado pelos agentes que estavam de tocaia em sua casa, em Londrina.
O agente Samuca se aproximou, acompanhado de outros policiais, todos à paisana. Sentou-se ao redor do bando, desejou bom dia e, sem alterar o tom de voz, avisou que estavam todos presos. Palinhos, aparentando tranquilidade, retrucou: “Deve estar havendo algum engano. Não sabemos o que está acontecendo.” Para tentar convencer os policiais do equívoco, sacou do bolso uma carteira de juiz arbitral. “Eu sou juiz”, disse. Samuca riu. “Pode guardar essa sua carteira porque sabemos que ela não vale nada.” E começou a fichar um a um. Dos dezenove integrantes da organização, dezessete foram presos naquela manhã.
A BUCHADA E O COFRE
Quando os seis policiais encarregados de encontrar a droga chegaram ao galpão, Celso Figueiró, o agente responsável pela logística, ligou aflito para Oliveira. “Você não vai acreditar no que está acontecendo aqui!” Um batalhão de jornalistas se aglomerava na entrada do galpão. Fotógrafos, cinegrafistas e repórteres disputavam o acesso ao local. Lá dentro, mais de cinquenta policiais, com uniforme preto, armas e distintivos, comandados pelo delegado Roberto Prel Júnior, chefe em exercício da superintendência do Rio, posavam diante das câmeras. Junto com outros delegados, Prel dava entrevistas narrando detalhes da operação de que nunca havia participado. “Era muita gente querendo aparecer, todo mundo querendo ser o pai da criança”, disse Oliveira.
Com tanta gente no galpão era impossível que os policiais envolvidos na operação fizessem a perícia do local. Em meio ao tumulto, começaram a serrar a montanha de buchos estocada, observados pelos jornalistas. Passadas mais de duas horas, não havia sinal da droga. Os delegados, agitados, temendo um fiasco público, começaram a ligar para Oliveira, na base. “Já serramos mais de mil peças de bucho e nada da droga”, disse-lhe um deles. “Tem certeza de que está aqui?” Oliveira contou que esse foi um dos momentos mais tensos. “Foi uma irresponsabilidade. Colocaram a credibilidade da Polícia Federal em risco”, disse.
Ele chamou Figueiró ao telefone e o orientou a serrar os lotes mais antigos. Cerca de uma hora depois, Figueiró ligou novamente: “Está na mão, achamos!” No fim da tarde, os agentes haviam encontrado toda a droga: 1 691 quilos de cocaína, a maior apreensão feita até então pela Polícia Federal armazenada em 90 toneladas de bucho.
Relembrando todo o episódio, Oliveira não teve ânimo para comemorar. “O que aconteceu ali foi um erro que a polícia não deve cometer nunca”, disse-me ele. “O correto teria sido procurar a droga com tranquilidade, serrar o bucho seguindo orientação, periciar o local. Depois de tudo feito e toda a quadrilha presa, aí sim convocar a imprensa na sede da superintendência para uma entrevista.”
À noite a confusão só iria aumentar. Pelo planejado, somente agentes da equipe envolvida na investigação deveriam permanecer no galpão, sob o comando do delegado Ronaldo Magalhães. Mas o delegado Roberto Prel Júnior deu uma contraordem para que ficassem lá cinquenta agentes da superintendência do Rio. Houve desentendimento entre as equipes e o grupo chefiado por Ronaldo Magalhães deixou o local.
Na manhã seguinte, dia 16 de setembro, quando Celso Figueiró e os outros agentes voltaram ao galpão, encontraram-no completamente vazio. Durante a madrugada, tinham sumido toneladas de carne, mesas, computadores, garrafas de uísque. “Até mesmo as garrafinhas com água benta, que Rocine trazia da Paraíba dizendo ser milagrosa, tinham sido levadas”, contou-me Manoel Divino. Sobrara apenas a droga trancada no frigorífico, uma enorme empilhadeira, com capacidade para levantar 20 toneladas, e uma empacotadeira.
Figueiró ligou para Oliveira, que se preparava para levar os presos a Goiânia, onde seriam ouvidos pelo juiz, e perguntou se ele tinha dado ordem para que esvaziassem o galpão. Não, foi a resposta. Deram-se imediatamente conta de que os policiais do plantão noturno haviam saqueado o local.
Enquanto isso, as equipes responsáveis pela busca e apreensão levavam para a superintendência regional os bens apreendidos nas casas e escritórios dos traficantes: dinheiro, computadores e carros – vinte veículos no total, despachados em carretas para Goiânia. O dinheiro, cerca de 3 milhões de reais, fora depositado na sala-cofre – um ambiente fechado por uma porta de ferro e outra de madeira – da Delegacia de Repressão a Entorpecentes, no 4º andar do prédio da superintendência regional.
Conforme ia sendo entregue, o dinheiro era contado na frente dos delegados e levado para o cofre pelo encarregado de fazer sua guarda, o escrivão Fábio Kair, da equipe Seven. Manoel Divino, que acompanhava a entrega, não gostou da forma como Kair agia, sem assinar qualquer documento. Disse-lhe que não aceitava que fosse feito daquela maneira. O escrivão fez um muxoxo e rubricou os pacotes. Divino não aceitou. Pediu que ele escrevesse seu nome legível e assinasse de forma que todos soubessem que o dinheiro fora recebido por ele. Constrangido, Kair fez o que deveria.
No fim da tarde de sexta-feira, dia 16, o dinheiro ainda estava no cofre da superintendência, contrariando a norma do órgão de que fosse depositado no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica Federal. O comando da polícia alegou que era necessário, antes disso, permitir que a imprensa fizesse fotos. Durante todo o dia as notas ficaram expostas aos jornalistas. Quando tomaram a iniciativa de levá-las, os bancos estatais já haviam encerrado o expediente. O dinheiro voltou para o cofre da PF. Para Manoel Divino, esse foi mais um erro da superintendência regional, que deveria ter pedido autorização judicial para obrigar os bancos a aceitar a transferência.
No sábado, dia 17, um novo incidente no galpão voltou a provocar a ira dos agentes que comandaram a Operação Caravelas. A empilhadeira e a máquina de embalar que estavam no depósito também haviam sido furtadas. Uma comerciante, com negócio próximo ao galpão, contou que as máquinas tinham sido levadas durante a madrugada, em um caminhão. “Era muito constrangedor tudo aquilo”, disse-me Divino. Naquele momento, ele disse que começou a temer pelo dinheiro depositado no cofre da DRE.
Na noite de sexta-feira, o agente Marcos Paulo Rocha, da equipe Seven, telefonou para Fábio Kair, que ainda estava na DRE e pediu que ele passasse em sua casa, no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste da cidade. Lá, conversaram sobre a Operação Caravelas. Rocha perguntou a Kair qual “destino tinha sido dado ao dinheiro apreendido”. Estava tudo no cofre da DRE, Kair respondeu. Rocha então propôs: “Vamos meter a mão nesse dinheiro nós dois.” Kair disse que não, e contou que já havia recusado proposta semelhante de outros policiais, que haviam sugerido trocar o dinheiro por notas falsas.
Rocha então disse que estava preocupado porque soubera que eles todos seriam demitidos: a pf já sabia que a equipe Seven fora responsável pelo roubo dos cheques da rinha de galo. Rocha pediu a Kair que, pelo menos, lhe dissesse onde exatamente estava o dinheiro, que ele o tiraria de lá. Kair voltou atrás e resolveu participar do roubo. Fez um mapa do local onde estava o dinheiro e deixou as chaves do cofre com Rocha.
No sábado de manhã, o técnico em eletrônica Ubirajara Saldanha Maia, apelidado de Bira, chegou ao duplex dos pais de Rocha, também no Recreio, para entregar um computador que ele consertara. Rocha estava no andar de cima do apartamento e pediu a Bira que subisse. Disse que tinha um “serviço mole”, sem risco de serem descobertos. E acrescentou: “Se tudo der certo, você vai ganhar em torno de 180 mil a 200 mil reais.” Rocha contou-lhe sobre a origem do dinheiro e, o mais importante, que Fábio Kair tinha deixado as chaves do cofre com ele. Bira aceitou e os dois passaram a discutir a execução do golpe.
No domingo, dia 18, às seis da manhã, Rocha encontrou Bira numa rua no Recreio, perto da casa dos seus pais. O técnico entrou no Tempra prata do agente da PF e eles seguiram para a superintendência regional. Pouco antes de chegarem, Rocha parou o carro e Bira entrou no porta-malas. No estacionamento, ao perceber que não havia ninguém por perto, Bira passou para o banco de trás do carro e ficou ali até o começo da madrugada. Por volta de 1h15, Rocha foi buscá-lo. Carregando uma mochila e um pé de cabra, Bira seguiu o policial. Subiram pela escada até o 3º andar e atravessaram um longo corredor. Ali, subiram mais um vão de escada e saíram em frente à porta da DRE. Entraram no banheiro, onde Rocha lhe entregou as chaves e repassou os planos.
Bira a partir desse ponto agiria sozinho. Atravessou a porta de vidro da DRE, que estava aberta, e passou pela segunda porta, que estava trancada, após digitar o código fornecido a Rocha por Kair. Seguiu por um corredor, abriu outra porta com uma das chaves que Rocha lhe entregara. Conforme o combinado, simulou o arrombamento de alguns armários e de um deles retirou a pistola de Kair, para dar a impressão de que o escrivão nada tinha a ver com o crime. Em um armário havia uma caixa de papelão com parte do dinheiro que ele deveria pegar. Kair não levara para a sala-cofre tudo o que fora apreendido. Guardara um pouco na sua própria sala. Bira colocou o dinheiro na mochila e seguiu adiante.
Primeiro abriu a porta de ferro, em seguida, a de madeira. Seguindo o mapa, deu um passo à frente, virou o corpo para a esquerda e inclinou a cabeça para cima. Logo viu um saco plástico sobre um armário de ferro. Colocou o dinheiro na mochila e saiu deixando a porta de ferro encostada. Em seguida, jogou o molho de chaves atrás de um sofá, como fora combinado. Toda a operação durou cerca de meia hora. Saiu dali e encontrou-se novamente com Rocha no banheiro. Ao checar o conteúdo da mochila, o policial se deu conta da falta de mais um pacote de dinheiro, em outra caixa de papelão. Bira voltou à sala da DRE e o encontrou em uma estante usada por Kair. Eram duas e meia da manhã quando ele voltou para o carro de Rocha. Esperou deitado no banco até que o policial deixasse o plantão, às 5h20. Seguiram de volta para o Recreio dos Bandeirantes. Lá, jogaram a arma de Kair no rio Morto.
O roubo foi descoberto por volta das oito da manhã, quando os agentes e delegados da Delegacia de Repressão a Entorpecentes começaram a chegar. Antes do horário do almoço, uma equipe de Brasília já estava no Rio para investigar o sumiço do dinheiro. Os interrogatórios foram feitos numa sala reservada. Todos os policiais da superintendência regional foram ouvidos. Até os agentes envolvidos na Operação Caravelas foram chamados. O mais pressionado foi Fábio Kair, que detinha as chaves do cofre. Os investigadores lhe disseram que já tinham informações de quem poderia ter realizado o roubo. Que os suspeitos eram justamente os integrantes da equipe Seven, na qual – um deles disse – “só tinha ladrão”. Alterados, os investigadores disseram a Kair que os responsáveis pelo roubo “tinham jogado a Polícia Federal na lama”. Mas ele continuou negando.
Dez dias depois, em 28 de setembro, os agentes chamaram Kair novamente para depor. Mostraram a ele uma fita de vídeo em que aparecia ao lado de Rocha, na garagem de um shopping, na Barra, em pé, conversando com dois homens que estavam dentro de uma caminhonete. Em determinado momento, Rocha faz um sinal para Kair se afastar e atira contra o motorista, à queima-roupa. Kair se assusta e tenta se esconder atrás do carro. Rocha faz novo disparo e atinge o carona pelas costas. Os dois homens morrem. A fita foi requisitada à Polícia Civil que, mesmo diante das evidências, não tinha dado andamento ao inquérito.
A partir daí, Fábio Kair resolveu colaborar com os investigadores da PF. Queria escapar da acusação de participação no assassinato. Contou que Rocha fora contratado por dois agiotas da Barra da Tijuca para “dar uma dura” em um “bandido” que tinha lhes roubado dinheiro. Rocha aceitou a missão em troca de receber metade do valor. Os agiotas concordaram. Ele conseguiu localizar o rapaz e marcou um encontro. Levou Kair com ele, prometendo parte do dinheiro. O rapaz apareceu com um amigo que nada tinha a ver com o episódio. Rocha mandou que ele devolvesse o dinheiro. O outro respondeu que não. O policial ameaçou matá-lo. Ele desafiou: “Me mata, então.” É quando Rocha pede para Kair se afastar, atira no rapaz e, em seguida, no carona.
Em troca de delação premiada, Kair confessou que ele, o agente policial Marcos Paulo da Silva Rocha e o técnico em eletrônica Ubirajara Saldanha Maia, o Bira, participaram do roubo do dinheiro da Operação Caravelas. Kair se dispôs também a relatar outros crimes cometidos pelos integrantes da equipe Seven. Na presença do procurador Orlando Espindola, que investigava o roubo dos cheques da rinha de galo, confessou que ele, Rocha, Ivan Maués, André Campos e Clóvis Barrouin haviam roubado os cheques. Depois contou que a equipe Seven retirava droga apreendida na DRE e a vendia aos traficantes.
Para surpresa dos investigadores, Kair revelou ainda que, em dezembro de 2004, o grupo tinha roubado 50 quilos de cocaína do cofre da DRE e vendido ao traficante Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém. Segundo ele, a intenção do grupo era fazer um “gabiru”, que significa enganar o traficante trocando a droga prometida por gesso ou sabão em pó, prática que, segundo ele, é comum tanto na PF como nas polícias Civil e Militar. Daquela vez, no entanto, a droga verdadeira fora entregue, e o que havia ficado na PF era gesso.
Os investigadores chamaram Rocha, Maués e Barrouin para depor. Os três primeiros negaram a participação, mas acabaram confessando os crimes. Maués confessou também o roubo da empilhadeira, que levara para o sítio de sua mãe, em Vargem Pequena, na Zona Oeste carioca. Era para esse mesmo sítio que eles costumavam levar a droga subtraída do cofre da DRE.
No dia 19 de dezembro de 2005, o grupo foi preso. Todos foram condenados, de doze a dezoito anos de prisão. Kair, por ter feito a delação premiada, teve a pena reduzida para onze anos e oito meses.
Somente metade do dinheiro roubado foi recuperada. Parte dele foi deixada em uma lata de lixo por um desconhecido, no bairro da Tijuca, na Zona Norte, conforme consta do processo. Até hoje mais de 1 milhão de reais não foram devolvidos à polícia. Rocha confessou o crime, mas se recusou a dizer onde o resto do dinheiro estaria escondido. Os pais e a mulher do policial chegaram a ser presos para pressionar sua confissão, mas ele não revelou o paradeiro do dinheiro.
FRUSTRAÇÃO FINAL
Em Goiânia, para onde foram conduzidos, os traficantes também foram condenados. Gastaram muito com sua defesa. Só a ex-mulher de Palinhos, Sandra Tolpiakow, pagou 1 milhão de reais para sua advogada. Os traficantes foram condenados a até 28anos de prisão. Em 2009, Palinhos, sentenciado à pena máxima, passou a cumprir prisão semiaberta no presídio de Goiânia e fugiu para Portugal. Sua fuga só foi descoberta três meses depois, caso até hoje mal explicado. Odiretor do presídio e agentes penitenciários foram ouvidos, mas a investigação não apontou os culpados pela fuga. Em maio do ano passado, Palinhos foi preso novamente quando tentava abrir um restaurante no Aveiro, em Portugal. Fora reconhecido por um policial português que colaborou com a Operação Caravelas.
Dâmaso e outros traficantes do grupo estão em regime semi-aberto, após cumprirem parte da pena. Segundo a Polícia Federal, Dâmaso está atrás de uma nova fazenda para comprar em Goiás. Carlos Roberto da Rocha, o Tob, está em Londrina e cuida de suas empresas. O traficante Cabeça Branca nunca foi preso. Sabe-se que tem casas no Suriname e no Paraguai, onde se refugia.
A Justiça determinou a devolução de bens da quadrilha à União – entre apartamentos, automóveis e dinheiro –, avaliados em 60 milhões de dólares.
Os 1 691 quilos de cocaína apreendidos na operação tinham sido comprados de Cabeça Branca por 4 mil dólares o quilo. Seriam vendidos na Europa por 20 mil euros o quilo. Só com essa operação, eles ganhariam 34 milhões de euros, cerca de 100 milhões de reais.
Uma pesquisa feita pela polícia portuguesa a pedido da brasileira estimou que, durante os vinte anos em que a quadrilha atuou, milhões de toneladas de bucho das empresas do grupo foram enviados para Portugal e Espanha.
Os apartamentos e casas que pertenciam à quadrilha estão hoje sob os cuidados da Bulhões Carvalho, uma administradora de imóveis carioca. O dinheiro vai mensalmente para o Tesouro.
A fazenda de Dâmaso foi doada para o Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, e, hoje, 68 famílias moram no local. A casa sede da fazenda, por sugestão de Manoel Divino, foi doada para a Universidade Federal de Goiás, para que ali fosse implantado um curso de agronomia. A ideia do curso não foi adiante e a sede está abandonada. Parte dos carros foi doada para a Polícia Federal. O sistema de ar-condicionado central que seria usado na boate que Palinhos construiria na Lagoa, pelo qual gastou 1 milhão de reais, foi leiloado por 200 reais por falta de interessados.
As pizzarias Capricciosa e os restaurantes Satyricon do Rio e de Búzios foram entregues ao cunhado de Palinhos, Bruno Tolpiakow, que não tinha envolvimento com o tráfico. Ao fazer a fiscalização nas contas dos restaurantes, a PF descobriu que a rede devia 12 milhões de reais de impostos e mais outro tanto de contas de luz. Os restaurantes faziam “gato”, ou seja, roubavam energia da rua. Segundo a PF, fiscais das Receitas federal, estadual e municipal do Rio recebiam propina de Palinhos para não cobrar os valores devidos. Até hoje, 13% do faturamento dos restaurantes, que, à época, chegava a 3 milhões por mês, têm que ser destinados mensalmente à União.
O policial Manoel Divino está aposentado. Diz que deixou a PF desiludido. “Nessa operação, sacrificamos três anos de nossas vidas para, no final, também termos sido colocados na lista de suspeitos do roubo do dinheiro e interrogados pelos investigadores de Brasília”, disse. O agente Samuel Reis, que prendeu os líderes da quadrilha, foi transferido para o Recife. Roberto de Araújo continua no Rio. Numa tarde de outubro, ele me disse que o desfecho da Operação Caravelas foi uma “imensa frustração” para a equipe que a conduziu. “O roubo encobriu uma das mais bem-sucedidas operações da Polícia Federal”, comentou. “Foi muito constrangedor para todos nós. A imprensa não falava mais da apreensão da droga e da prisão do bando. Só queriam saber do dinheiro roubado.”
Aldo Oliveira continua na ativa em Goiânia. Diz que a capital do Estado, no centro do país, tornou-se há algum tempo o paraíso dos traficantes. Uma das razões seria a proximidade com os mercados fornecedores de droga – Colômbia, Venezuela, Bolívia e Paraguai. A outra, o rápido acesso a quase todas as regiões do país, o que facilita várias rotas de fuga. Ele diz que o combate ao tráfico tem sido uma “luta inglória”, principalmente por causa da fragilidade da legislação contra o tráfico. “Não é a Justiça que solta, e sim as brechas judiciais”, sustenta.
Os custos para o país são enormes, diz Aldo. “Imagina o que é manter a Polícia Federal trabalhando 24 horas durante meses, muitas vezes anos, para prender traficantes e, logo em seguida, a Justiça ser obrigada a soltá-los.”
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