CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Grafite no gabinete
Um artista de rua decora as paredes da sala de um político
Tatiane de Assis | Edição 211, Abril 2024
No final do recesso parlamentar, em janeiro, o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) gravou um vídeo mostrando uma novidade visual em seu gabinete na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Na apresentação, postada em 2 de fevereiro, ele estava na companhia do artista que fez uma pintura mural em seu local de trabalho. “Estou aqui mostrando o gabinete com o novo horizonte que o Mauro Neri pintou”, disse Suplicy.
Um dos mais respeitados grafiteiros de São Paulo, Neri, de 43 anos, conferiu vivacidade ao ambiente burocrático do gabinete. Da recepção até a sala privada do deputado, as paredes foram pontuadas por casas amarelas, figuras humanas e palavras de ordem como “liberdade”, “igualdade”, “futuro justo” e – tema caro a Suplicy – “renda básica de cidadania”. Ao lado do anfitrião, o artista explicou alguns elementos de sua obra: “Essas duas figuras, com leveza, são seres que ao mesmo tempo dançam, oferecem e pedem. Uma delas carrega uma casa nas costas, em alusão à luta pela moradia.”
A parceria entre Suplicy e Neri vem de quando o político apoiou o grafiteiro em um embate com o então prefeito de São Paulo, João Doria (na época no PSDB).
Em 2017, o primeiro ano de Doria como prefeito – cargo a que renunciou no ano seguinte a fim de disputar a eleição para governador, da qual saiu vencedor –, ele declarou combate à pichação e aos murais não autorizados pela prefeitura. Na prática, não foi isso que aconteceu. Um trabalho de Neri, feito em 2009 com financiamento da própria prefeitura, na gestão de Gilberto Kassab (PSD), foi apagado dos paredões do Complexo Viário João Jorge Saad, na Zona Sul da cidade.
Indignado, Neri carregou vassoura e balde de água até o local, para tentar remover a tinta cinza empregada para cobrir sua obra. Logo, policiais o abordaram. Não perdoaram as latas de tinta que o grafiteiro trazia na mochila: Neri foi preso e autuado por pichação em edificação urbana, infração prevista na Lei de Crimes Ambientais.
Menos de uma semana depois, Neri foi à Câmara dos Vereadores defender seu ofício. “O Suplicy que me convidou. Peitou os seguranças e me fez entrar”, ele conta à piauí. A sessão daquele 1º de fevereiro de 2017 foi conturbada. O grafiteiro recorda que foi interrompido pelo próprio prefeito, que estava presente: “O Doria logo pegou o microfone da minha mão e começou a falar.”
No mesmo dia, mais tarde, os dois adversários tiveram uma conversa cordial. Por volta das 21h30, Neri diz ter recebido uma ligação de Doria. “Parecia que tinha feito uma pesquisa sobre mim. E, de primeira, me amaciou”, lembra. “Eu o elogiei também, falei que o admirava por acordar cedo.” Do telefonema e de reuniões posteriores com outros artistas de rua, saiu um novo projeto para a cidade: o Museu de Arte de Rua (MAR), com edital municipal, que financia murais, como aquele que o prefeito apagou.
Doria deixou a política. Neri continua pintando murais com personagens que, na fluidez dos movimentos, guardam um flerte com a arte renascentista. Talvez a influência venha do período em que ele estudou na Academia de Belas Artes de Bolonha, entre 2005 e 2008.
Ele já grafitava então as casinhas amarelas que se tornaram sua marca – e que podem ser vistas em Nova York, Barcelona, São Paulo e Salvador. “Em muitas cidades do mundo, você vê esse desenho do Mauro”, diz Mônica Martins, curadora de uma exposição do artista em 2019, no MMarts, um espaço que ela mantinha em São Paulo. Martins foi uma das diretoras da Galeria Emma Thomas, hoje fechada, que lançou muitos jovens nomes no cenário paulistano. Ela diz que poucos artistas são tão obstinados quanto Neri. “Às vezes, chega a ser excessivo.” Na montagem de uma mostra da qual o grafiteiro participou, a curadora certa vez o encontrou mudando tudo o que ela havia feito no dia anterior.
A obstinação vem de família. A irmã mais velha de Mauro, Silvia Pereira da Silva, também roda o Brasil de forma incansável, mas como freira de uma ordem inspirada em são Francisco de Assis, onde é conhecida como irmã Maria Tarcísia do Amor Crucificado.
Neri mora no Grajaú, distrito da Zona Sul de São Paulo, onde nasceu. Mais especificamente, no Jardim Lucélia, um bairro de classe média baixa, bastante arborizado, com cara de cidade do interior. Foi lá que ele montou um ateliê amplo na casa que divide com a família do irmão, o também artista Wellington Neri.
Na juventude, o grafiteiro teve vários empregos: office boy, feirante, catador de material reciclável. Vendia suas telas, de forma despretensiosa, sem se preocupar em assiná-las. A escritora e filósofa Maria Vilani – mãe do cantor Criolo – foi fundamental em sua formação artística. Em 1998, aos 16 anos, Neri ilustrou um livro infantil de Vilani, O reino de Roselândia. Encerrado o ensino médio, ele ingressou em 2000 no curso de licenciatura em educação artística na Faculdade Maria Montessori.
No começo dos anos 2000, deu aulas de arte para crianças em ONGs. No curso, trabalhava com o spray, mas ainda não tinha prática na rua. Só começou a fazer rolês quando conheceu Niggaz e Jerry Batista, moradores do Grajaú que então eram expoentes do grafite. Ele lamenta não ter convivido mais tempo com Niggaz (no registro civil, Alexandre Luiz da Hora Silva): em 2003, o grafiteiro morreu afogado na Represa Billings, em circunstâncias nunca esclarecidas. Neri levou adiante a postura desafiadora do amigo, ao montar estandes “piratas” na entrada de exposições e feiras de arte importantes, como a SP-Arte e a Art Basel.
Neri continua próximo da educação, no projeto Imargem, criado em parceria com o irmão e que oferece oficinas de arte. Também está à frente do Infografitti, que faz da arte urbana um serviço de utilidade pública. “Na pandemia, saí escrevendo frases, como ‘Lave as mãos’ e ‘Fique em casa’. A ideia é criar uma rede para que a gente possa discutir temas, desde o combate à dengue até a violência contra mulheres.” Embora tenha pintado as paredes de Suplicy na Alesp, ele não é, definitivamente, um artista de gabinete. “Faço arte para os outros. A rua me credencia para ser cara de pau e me arriscar mesmo”, diz.