O grau zero de uma performance
Ricardo Aleixo | Edição 187, Abril 2022
ASSIM FALOU O ANCESTRAL
feições de
bicho noturno
chispa de fogo
no olhar
fogo saindo
das ventas
dentro do breu
do meu sonho
assim falou
o ancestral:
meu nome
é fogo
pessoa
fogo é
meu nome
pessoal
fogo
no interior
fogo lá
na capital
fogo aí
na casa grande
fogo
no canavial
LIGA
mesmo
durante (enquanto)
o sono (o sonho)
tudo nosso
toca tudo
nosso:
da minha respiração em tua nuca
ou da tua na minha
até a delicada
e firme linha
que liga
os teus dedos
dos pés
aos
meus
COMO SE NO GRAU ZERO DE UMA
PERFORMANCE DE BEN PATTERSON
Miro demorada e
silenciosamente a caixa de texto
vazia. Resisto à tentação
de escrever a primeira palavra.
Ignoro tudo
à minha volta. Continuo
com o olhar fixo na caixa
de texto. Fecho os olhos e deixo
que o mundo se torne, aos poucos,
uma massa de sons
indistintos. Desejo escrever sobre
o bem-estar que senti ao perceber o mundo
como não mais que um conjunto de eventos sonoros
simultâneos, mas me contento em guardar no coração
a lembrança deste bom momento. Abro os olhos
e constato que quase já não há diferença entre a caixa de texto
e os incontáveis pontos luminosos
que ocupam as paredes internas
dos meus olhos. Já não penso
em mais nada, apenas vivo a vibração
de um instante irrepetível, quando o dentro
e o fora se tornam uma única zona
de circulação de boas energias. Sinto que a caixa de texto,
que voltei a contemplar, é, agora, apenas um caminho
por onde flui o pleno vazio. Me entrego ao vazio,
sem pensar nem mesmo em minha respiração,
que se cadenciou como que por vontade própria.
Torno a pensar em algo, qualquer coisa,
quando sinto que é chegado o momento de voltar a ver
a caixa de texto como o que ela
realmente é: uma hipótese
em meio a muitas outras.
DO CADERNO DE ANOTAÇÕES DO HOMEM INVISÍVEL
1) chegar como
se já
tivesse
chegado;
2) sair sem
que
ninguém
perceba.
ou:
1) chegar como
se ainda
estivesse
por chegar;
2) sair como
quem jamais
sequer
cogitou de vir.
ou:
1) estar
sempre
por
chegar;
2)
ou:
1)
2)
MAS VISÍVEL
Você ouviu comigo (em meu
lugar, já que a partir de certa
altura da consulta eu parei
de prestar atenção no que
dizia o médico) o diagnóstico:
a situação era a pior possível.
Depois me envolveu em seu
manto de plumas, planou
com meu corpo sem peso nos
braços, em meio às nuvens, e,
já na sua casa, me garantiu,
sem dizer nada, que por um
longo tempo, o mundo conti-
nuará a ser, para mim, o que
tem sido desde que saí do ventre
de Íris: algo áspero, difícil, falso,
avesso, intratável, fugidio, tardo,
excessivo, podrido, mas visível.
BREVE MEDITAÇÃO À LUZ DE UMA LEMBRANÇA ALEGRE
só mais uma coisa,
corpo: lembra que é com
a terra o teu real
compromisso.
porque da terra vieste
e apenas à terra
pertencerás um dia. para
sempre. por inteiro.
pronto. dorme agora.
era só isso.
ASPAS
dizemos
“masculinidade tóxica”
como se pudesse
haver
de fato
uma
“masculinidade
não tóxica”.
dizer
“masculinidade tóxica”
é o mesmo
que dizer
“capitalismo selvagem”.
toda a gente sabe
que o
“capitalismo”
só pode ser
o que tem sido
e será
sempre
enquanto não for
destruído:
“selvagem”
(no sentido
que o eurocidente
atribui à selva).
não existe uma outra
“masculinidade”
possível
assim como
um outro
“capitalismo”
é impossível.
“masculinidade”
e
“capitalismo”
são o que são:
tão sem salvação
quanto a ideia
cristã
de salvação.