ANDRÉS SANDOVAL_2020
Guerra aos vândalos
A expulsão dos colaboradores sem conta da Wikipédia lusófona
Bernardo Esteves | Edição 172, Janeiro 2021
Contribuir com a Wikipédia em português ficou um pouco mais complicado no final do ano passado. Quem deseja corrigir ou aprimorar um artigo agora é direcionado para uma página em que é convidado a fazer login ou criar uma conta na plataforma; até então, bastava clicar em “editar” e o usuário já podia modificar a maior parte dos verbetes. Sem precedente na Wikipédia, a iniciativa foi tomada para combater os vandalismos, como são chamadas as intervenções que atrapalham os artigos e enfurecem os editores.
Foi o caso do usuário anônimo que, em agosto passado, alterou o artigo Verdade. Ao final da introdução, afirmou que “a única verdade existente é que o Rafael A. L. S. ama a Kamilla G. S. mais” (os sobrenomes foram abreviados). Como ele não estava logado numa conta da Wikipédia, a alteração foi registrada com seu número de IP, que identifica cada dispositivo conectado à internet. Esse número permite apontar a localização do usuário que, no caso, estava em Três Corações, Minas Gerais. A intervenção exasperou o historiador Renato de Carvalho Ferreira, um editor com status de administrador do sistema. Ele decidiu que, dali em diante, usuários sem conta não poderiam mais editar o verbete.
Ferreira é um historiador paulistano de 27 anos que faz mestrado na USP. Com mais de 300 mil edições, é o segundo usuário mais ativo na Wikipédia lusófona. Como os demais editores, trabalha voluntariamente para o projeto. Passa cerca de seis horas por dia escrevendo para a enciclopédia, sobretudo à noite. Parte desse esforço é gasto desfazendo vandalismos, uma tarefa inglória que ele compara a enxugar gelo. “Eu podia estar fazendo outras coisas com esse tempo, inclusive dormir”, afirmou numa entrevista. “Estou doando meu tempo para uma coisa inútil.”
O wikipedista ficou com a impressão de que as intervenções mal-intencionadas recrudesceram durante a pandemia, quando muitos jovens se viram entediados em casa. Cansado dos vandalismos, propôs aos colegas que os usuários identificados por IP fossem proibidos de editar artigos. Lançou a ideia no mesmo dia em que protegeu o artigo Verdade. Argumentou que, dentre as edições desfeitas pelos editores nos 31 dias anteriores, 87% tinham sido realizadas por IPs (mas não frisou que, dentre as contribuições desses usuários, 82% não eram vandalismos).
Adotada em 4 de outubro, a medida teve efeito imediato e muito palpável sobre a rotina de edição de Ferreira. “Os vandalismos foram praticamente a zero”, afirmou. “Nem nos sonhos mais felizes imaginávamos que isso aconteceria.”
Em nenhuma outra versão da Wikipédia os usuários são obrigados a ter uma conta para editar – a enciclopédia tem versões ativas em 304 idiomas. Os editores lusófonos falam em proibir as edições não registradas desde 2005. A proposta já havia sido pautada outras dezesseis vezes, mas nunca tinha vingado.
As regras da Wikipédia são definidas pelos próprios usuários, desde que se mantenham alinhados a alguns princípios editoriais. Foram esses pilares que impediram que a decisão fosse tomada antes: para muitos editores, caso usuários não registrados não pudessem mais participar, aquela deixaria de ser “a enciclopédia livre que todos podem editar”, conforme se define.
Nem todos veem a restrição como inconstitucional. A criação de uma conta pode ser feita instantaneamente e não exige um endereço de e-mail ou qualquer outra informação pessoal. “Não é verdade que todos possam editar”, disse à piauí Ricardo Frantz, um editor gaúcho de 56 anos. “Isso só vale para aqueles que dominam uma quantidade enorme de regras bastante estritas.” O custo da liberdade era alto demais para o benefício prático, acrescentou Frantz, que combate o negacionismo climático nos verbetes sobre aquecimento global.
Lucas Teles, um médico baiano de 35 anos que edita a Wikipédia desde os 21, teme que a proibição desestimule futuros usuários e afaste não só os vândalos, mas também editores bem-intencionados. “O ideal seria poder editar sem nenhum tipo de barreira”, afirmou numa entrevista. Para Teles, a comunidade tomou uma decisão importante de forma precipitada.
Na página em que Ferreira propôs o banimento dos IPs e no fórum de discussão a ela associado, os editores escreveram 253 mil caracteres, o suficiente para encher 29 páginas da piauí (o debate não se limitou a esses espaços). Doze dias depois foi aberta uma votação que durou um mês. Participaram 249 wikipedistas, número alto para os padrões da comunidade: 169 responderam que sim, o usuário tem que estar registrado para editar a Wikipédia lusófona; 69 disseram que não, e onze se abstiveram.
A maioria de 71% formada em torno do banimento dos IPs foi interpretada como um consenso da comunidade. A margem surpreendeu a muitos, a começar por Ferreira, que não esperava que sua proposta fosse aprovada. Sairia satisfeito se, ao final da discussão, a comunidade decidisse proibir os IPs de criar artigos, mas não de editá-los – como acontece na Wikipédia em inglês.
A implementação foi feita com uma solução técnica bolada pela comunidade de editores e não envolveu a Wikimedia Foundation (WMF), a entidade sem fins lucrativos sediada em São Francisco responsável por hospedar e operar a enciclopédia eletrônica. A organização não se opôs à decisão tomada pelos usuários lusófonos, como temiam alguns deles, mas tampouco se pronunciou oficialmente sobre o caso.
Em nota enviada à piauí, a fundação afirmou que a decisão dos editores não viola o princípio de que todos podem editar a Wikipédia e que os usuários de cada versão do projeto definem seus processos e diretrizes para a produção dos artigos. “Continuaremos a acompanhar o impacto da decisão da comunidade e como ela persegue o objetivo de garantir conteúdo confiável e neutro na Wikipédia em português”, afirma.
Dois meses e meio depois da implementação da mudança, estatísticas compiladas pela Wikimedia Foundation mostravam que o número de reversões na Wikipédia lusófona havia caído bruscamente, um sinal de que os vandalismos estavam mesmo diminuindo. O número de novas contas e de usuários ativos cresceu, mas o total de edições caiu ligeiramente nesse período. Ainda é cedo, porém, para avaliar quantos usuários desistiram de editar ao ver que precisariam criar uma conta.
Para a paulistana Giovanna Fontenelle, uma jornalista e historiadora de 25 anos, a mudança teve pouco efeito prático. Ela não costuma corrigir vandalismos – contribui incrementando artigos e organizando maratonas de edição que promovem a diversidade do conteúdo e da comunidade de editores da Wikipédia lusófona. Fontenelle atua como especialista contratada pela WMF para promover o conteúdo ligado ao acervo de museus, bibliotecas e arquivos na plataforma, mas não falou à piauí em nome da fundação.
A paulistana reconheceu que a mudança resolveu o problema dos patrulheiros de vandalismos, mas teme que a exigência de login afaste do projeto usuários que não têm familiaridade com o mundo digital. Para ela, a pluralidade de vozes na Wikipédia é fundamental para que ela de fato represente – como almeja – “a soma de todo o conhecimento humano”, objetivo que atraiu Fontenelle para se tornar editora em 2016. “Prefiro que haja mais gente lendo e editando a não ter mais vandalismo”, afirmou.
Mas Fontenelle está conformada com a decisão tomada pelos colegas. “Defendo essa comunidade e gosto do seu espírito, mesmo que tenham decidido algo contrário a mim”, afirmou. “A Wikipédia ainda é um dos poucos espaços bons da internet.”