Guerra e paz
Dois ensaios fotográficos mostram a glória e o horror em Brasília
Diego Bresani e Gabriela Biló | Edição 197, Fevereiro 2023
No dia 1º de janeiro, quando chegou à Praça dos Três Poderes e avistou o Palácio do Planalto, Diego Bresani logo percebeu que o Sol forte daquele domingo não daria trégua. Eram nove da manhã, e o fotógrafo brasiliense de 40 anos estava lá para cobrir a posse de Lula pela piauí. A solenidade começaria às 13h45, mas o presidente recém-eleito só subiria a rampa do Planalto no fim da tarde. “Fazia um calor infernal. Como a praça quase não tem sombra, a multidão que aguardava o Lula desde cedo pingava de suor, mas não perdia o entusiasmo.” Por isso, o governo do Distrito Federal instalou mangueiras com água potável em alguns pontos da praça. “O povo se agrupava diante delas na tentativa de encher copos ou garrafas. Muitos enfrentaram filas enormes, levaram noventa minutos para conseguir matar a sede.” Baseado em imagens aéreas, o site Poder360 estimou que mais de 150 mil pessoas se aglomeraram nas imediações do Planalto. A multidão cantava, agitava bandeiras, faixas e cartazes, gritava slogans petistas, arriscava dancinhas e tirava selfies, recorda Bresani. Vendedores ambulantes não podiam entrar no local. Só tinham permissão para trabalhar nos arredores.
A variedade étnica, social, religiosa e etária dos que celebravam o novo governo chamou a atenção de Bresani. “Havia gente de todo tipo e do país inteiro. Era comum alguém me abordar e mencionar a cidade de onde vinha: ‘Ô, sou de São Bernardo do Campo. Tira uma foto de mim.’” No ensaio que produziu para a piauí, Bresani buscou registrar a euforia popular. “Me interessei menos pela cerimônia oficial e mais pelas manifestações de quem acompanhava. O pessoal estava cansado, mas tinha felicidade, prazer, esperança, alívio.” Bresani deixou a festa às 17h40, assim que Lula terminou de discursar no parlatório do Planalto.
Uma semana depois, a fotógrafa Gabriela Biló, do jornal Folha de S.Paulo, chegou à Praça dos Três Poderes. Defrontou-se com um cenário bem diferente. “Eu estava de folga. Saí para almoçar e, pela televisão do restaurante, vi que golpistas tentavam invadir o Planalto, o Congresso, o Supremo.” A paulistana de 33 anos decidiu passar em casa e apanhar duas câmeras – a primeira com uma lente grande angular e a outra com uma teleobjetiva. Pegou ainda um capacete esportivo e uma máscara contra gases. “Tomo essas precauções desde que fotografei os protestos de 2013. À época, os repórteres costumavam botar capacetes azuis. Minha mãe acompanhava os atos pela tevê e ficava aflita por saber que eu estava no meio da confusão. Ela me procurava na multidão para verificar se tudo corria bem comigo, mas reclamava: ‘O problema é que nunca encontro você. Vejo uma porção de capacetes azuis e não consigo distinguir o teu.’ Para ajudá-la, resolvi comprar um vermelho que uso até hoje. Me dá sorte.”
O capacete exibe um adesivo com a palavra “imprensa”. Naquele 8 de janeiro, Biló preferiu tirar a inscrição. “Seria perigoso se os arruaceiros me identificassem como jornalista.” A fotógrafa seguiu de Uber para a Esplanada dos Ministérios. Saltou ali e caminhou em direção à Praça dos Três Poderes. Subiu a rampa do Planalto, que leva ao segundo andar, sem ser interrompida. Às 15h50, fez a primeira foto. Andou por todo o pavimento e presenciou muita destruição. Os vândalos não abortavam o quebra-quebra nem mesmo diante da câmera.
– Você é de onde? – perguntou um deles. Queria checar se Biló trabalhava para algum meio de comunicação.
– Sou de São Paulo, mas vivo em Brasília – respondeu a profissional, fingindo não compreender a intenção da pergunta.
– Veio aqui por quê?
– Para registrar um acontecimento histórico.
Outro implicou com o capacete vermelho da fotógrafa: “Coisa de comunista, hein?” Errado, coisa de patinadora, refutou Biló. “Eu fiquei estranhamente calma enquanto retratava a barbárie. Um sorriso abobalhado congelou no meu rosto. Agora acho que estava em choque. O horror me anestesiou.”
A fotógrafa tentou subir para o terceiro andar, onde fica o gabinete de Lula, mas foi impedida pelos golpistas. “Achei melhor não correr mais riscos e fui embora.” Ela saiu do palácio às 16h40. Em casa, finalmente desabou. “Chorei de decepção, tristeza e raiva.” Nas páginas seguintes, as cenas dos dois domingos – o da paz e o da guerra.
É fotógrafo e diretor de teatro
É fotojornalista e trabalha para a Folha de S.Paulo
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