Pela norma do Exército americano, a tatuagem não deve ultrapassar a linha do colarinho da camiseta militar STILL DO FILME TATOOED UNDER FIRE
Guerra gravada na pele
Uma documentarista americana produziu um retrato intimista e original do impacto da guerra sobre a atual geração de recrutas. Como cenário, um estúdio de tatuagens a poucos metros da maior base militar do país
Dorrit Harazim | Edição 40, Janeiro 2010
No coração do estado americano do Texas, entre Austin e Waco, esparrama-se a maior base militar dos Estados Unidos, Fort Hood. Em extensão (878 quilômetros quadrados) e população (quase 65 mil homens e mulheres das Forças Armadas, somando-se os agregados), Fort Hood é um mamute que exala cheiro de guerra por todos os poros. Há nove anos, levas e mais levas de recrutas estreantes partem dali para se juntar às tropas dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Outros retornam à base no Texas para um segundo, terceiro ou mesmo quarto turno na frente de combate.
Quem está em Fort Hood carrega embaixo do uniforme doses variáveis de ansiedade, patriotismo, amargura, trauma ou valentia. Foi ali que, na manhã de 5 de novembro passado, um major psiquiatra, às vésperas de ser despachado para a guerra, teve um surto psicótico e fuzilou treze pessoas, além de ferir outras trinta.
Desde então, o Pentágono procura mapear a dimensão do desequilíbrio emocional que se infiltrou em seus quartéis. Reação um tanto tardia, considerando-se que desde as primeiras levas, em 2002, 1,2 milhão de soldados americanos já passaram pelo choque de combater numa terra mais do que estrangeira.
Coube a uma documentarista e professora de cinema da Universidade do Texas, sem qualquer vínculo com o universo militar, fazer um registro inédito do estado d’alma dos que partem e retornam da guerra. Ao longo de quase quatro anos, entre 2005 e 2009, Nancy Schiesari frequentou periodicamente um estabelecimento com ares de loja de conveniência de beira de estrada, que fica a poucos metros da entrada principal de Fort Hood. Um sinal luminoso kitsch em forma de estrela informa que funciona ali um estúdio de tatuagem, o River City Tattoo. Desde que abriu as portas cinco anos atrás, a dona da loja, Roxanne Willis, quase não consegue fechá-las – mesmo noite adentro há sempre mais um soldado atravessando a rua para marcar o corpo com suas fantasias e assombrações.
Com uma pequena equipe essencialmente feminina, Nancy Schiesari ligou a câmera e filmou. A diretora, formada em arte e cinema pelo Royal College of Art, de Londres, e veterana de quase trinta documentários, sabia estar testemunhando um pedaço da história de uma geração. Assim nasceu o extraordinário Tattooed under Fire (Tatuados sob Fogo), exibido em novembro pela PBS, Public Broadcasting Service, a rede pública de televisão dos Estados Unidos.
O filme documenta o que leva jovens aquartelados em Fort Hood a atravessar a porta de madeira vermelha do estúdio, e a fazer pedidos estranhos à equipe da senhora Willis. Eles se despem da farda e oferecem o corpo para nele registrar os anseios mais pessoais. Diante da impessoalidade do uniforme, que os nivela perante o inimigo e a instituição militar, os soldados vão ao River City Tattoo para garantir que sua individualidade fique impressa de forma indelével, independentemente do que venha a lhes acontecer do outro lado do mundo. “Frente ao anonimato e à morte eventual, a tatuagem satisfaz a necessidade de expressão do recruta”, explica Nancy Schiesari.
Ali ninguém escolhe entre as centenas de figuras ou desenhos que forram as paredes do estúdio. Cada recruta chega com sua própria ideia e a desenvolve com o artista tatuador – ele mesmo um veterano de outras guerras. Algumas das criações mais elaboradas levam de seis a oito horas para serem executadas, a 150 dólares a hora. Durante as sessões, o tatuador faz as vezes de psicólogo e confessor. “Tem cara que nunca me viu antes e acaba confessando um assassinato”, conta no filme um dos tatuadores. Estima-se que 95% dos soldados que integram as Forças Armadas americanas tenham pelo menos uma tatuagem no corpo.
Do elenco captado por Nancy Schiesari, Tattooed under Fire estreita o foco em seis jovens recrutas (quatro homens e duas mulheres), todos em torno dos 21 anos de idade. Travis, Jonathan, Consuelo, Anthony, James e Latoya são filmados pela primeira vez em 2005, poucas semanas antes de seguirem para a guerra no Iraque. A maioria escolhe impregnar o corpo com figuras de demônios, tanques, lobos, caveiras, arte tribal, marcial ou qualquer outra imagem que os ajude a se sentirem corajosos diante do medo e da morte em potencial.
Como escudo de intimidação, um dos personagens oferece a pele do pescoço para gravar os dizeres Trucide seus inimigos. “Eles pensarão que somos invencíveis”, diz o jovem dono do pescoço, referindo-se aos inimigos. A localização da tatuagem foi milimetricamente calculada para não ultrapassar a linha do colarinho da camiseta usada sob o uniforme – o que violaria uma das normas do Exército americano.
O recruta Travis foi mais radical. Instruiu o artista tatuador a esculpir seu bíceps com a figura de um feto preso dentro de um liquidificador. Queria se proteger por meio de uma tatuagem deliberadamente repulsiva. “Esse bebê não sabe se vai ser triturado, estraçalhado, mutilado – uma possibilidade do que pode vir a acontecer comigo”, explica com naturalidade.
Soldado do corpo médico, formado em enfermagem, Travis tinha se alistado aos 23 anos para escapar de uma encrenca com a Justiça – fora apanhado mercadejando medicamentos. “Era a guerra ou a prisão”, disse. Às vésperas de partir para Bagdá, comentou com a namorada que provavelmente mataria uns dois ou três inimigos, e morreria. Mas o desfecho foi outro. Quase no final de seu primeiro turno de quinze meses, uma garotinha iraquiana de 3 anos de idade, que só conseguia gritar, agarrou-se ao seu braço tatuado. “Foi o meu despertar para o que era realmente a guerra”, contou, ao retornar a Fort Hood e se preparar para um segundo turno. “Hoje não quero mais chocar ninguém. Mas também não quero esconder minha visão da vida num liquidificador – ela faz parte do meu storyboard.” Apenas adornou a tatuagem original do feto com uma coroa de rosas vermelhas.
Josh, um sentinela de 20 anos, escolheu cobrir o dorso inteiro com figuras da mitologia nórdica, invocando assim a proteção de seus ancestrais vikings, além de dois corvos e uma inscrição enigmática. Entrevistado novamente dois anos depois, Josh tornou-se um exemplo da atitude da fauna captada pela diretora do documentário. “Eles retornam do front com voz mais atenuada, decibéis bem mais subjugados, estão mais velhos e, definitivamente, mais sombrios”, observa Nancy Schiesari. Josh perdeu a inocência e a confiança que tinha antes de ir para o combate. Ele viu os corpos de dois companheiros se fundirem ao metal incandescente de um blindado que acabara de explodir. Amalgamaram-se com a estrutura do tanque. O que foi possível resgatar teve de ser raspado do metal. “Mesmo que eu tente me convencer da minha invencibilidade, não consigo mais”, conclui o jovem veterano.
O documentário cobre um amplo leque de tons e subtons emocionais. Pode-se ver James, um guitarrista de 19 anos, captado no River City Tattoo quando faltavam duas semanas para seu embarque. “Prefiro perder as duas pernas do que braços, mãos ou dedos”, comenta casualmente ao artista tatuador. Ao retornar, James era um dos mais afetados por pesadelos e problemas pós-traumáticos. A jovem Latoya, por sua vez, é a mais revoltada. “Paguei minha dívida com o Exército e nunca mais quero voltar”, ela diz. “Odeio ver esses cartazes que dizem Apoiamos nossas tropas porque tudo é uma grande hipocrisia. Quando estamos na guerra temos de pagar até para falar com nossos pais pela internet. Já o cara que tem o negócio fatura meio milhão de dólares por ano.”
A tatuagem de uma ratazana esparramada de costas, sorvendo uma bebida, com os dizeres Ratos engordam enquanto bravos soldados morrem é um comentário típico de quem foi, viu e perdeu a candura. “Quanto mais vezes são convocados a retornar ao campo de batalha, mais surreais se tornam suas tatuagens”, constata a diretora.
O documentário também revela uma das tatuagens mais pungentes das guerras gêmeas do Iraque e Afeganistão: o registro no próprio corpo do nome, patente, número de inscrição e unidade do recruta. Esses mesmos dados já constam das plaquetas de aço ou alumínio que todo soldado é obrigado a portar sob o uniforme. Só que essas plaquetas presas ao pescoço por uma corrente, e apelidadas de dog tags – por lembrarem as identificações que cachorros domésticos trazem nas coleiras –, têm se revelado inúteis quando o corpo do combatente é estraçalhado pela explosão de bombas caseiras. Como nos dois conflitos a resistência é feita por guerrilheiros, a probabilidade de um soldado morrer num atentado à bomba tem sido muito maior do que a convencional morte, em combate, por disparo inimigo.
Levados pelo pavor de não serem reconhecidos na morte, devido à desfiguração e ao sumiço da plaqueta, vários frequentadores do River City Tattoo partem para o front com a identificação pessoal gravada na carne – de preferência na axila, a parte do corpo com maior probabilidade de permanecer intacta em caso de mutilação. São as chamadas meat tags, apelido mórbido desse novo tipo de tatuagem, ancorado na palavra inglesa para “carne”.
No retorno, em contrapartida, a linguagem das tatuagens solicitadas é outra. O medo se foi. A expectativa e a audácia também. “As imagens são bem mais sombrias, falam de perda, dor e pesar, alívio e compaixão”, diz a diretora. Uma das formas de lamentar a morte de camaradas de armas é esculpir no peito ou no braço o meat tag do amigo perdido. Nessa linha, correu mundo a foto de um veterano de guerra inglês, Shaun Clark, de 43 anos, com o torso ainda latejante pela inscrição de 232 nomes de soldados britânicos mortos no Afeganistão.
Impulsos extremos como o de Clark não caberiam em Tattooed under Fire. Os personagens de Nancy Schiesari têm força justamente por não serem incomuns. A mexicana Consuelo, por exemplo, que chegou à América ainda criança, contrabandeada no carro de um coyote contratado pela mãe, tinha 20 anos quando embarcou para o Iraque. Soldado num batalhão de engenharia, ela tinha por missão assegurar o fluxo dos veículos militares de sua unidade. A instrução central era inequívoca: jamais parar na estrada diante de algo capaz de interferir no avanço do comboio. O medo maior de Consuelo, ao embarcar, era ter de passar um Humvee por cima de alguma criança ou mulher. “Sei que isso aconteceu em algumas unidades”, diz ela para a câmera, antes da partida.
Ao longo dos seis meses seguintes, Consuelo passou de soldado a cabo e atravessou mais de 3 mil veículos militares por pontes do Iraque. Ao retornar do turno de quinze meses, foi reencontrar os amigos do estúdio River City. “Graças a Deus nunca atropelei nem matei ninguém”, celebra. “No meio do deserto, em temperaturas de mais de 40 graus, você via crianças de não mais de 5 anos de idade, descalças e sem água, pedindo esmola na beira da estrada. Você está dirigindo um Humvee e sabe que não pode parar, você só pode olhar para elas. Você se transforma, na guerra, se adapta.” Consuelo saiu do estúdio com uma lagartixa tatuada no abdômen. “Lagartixas mudam de aspecto para se adaptarem a novos ambientes”, explicou.
Jonathan, 27 anos, o mais velho entre os protagonistas do documentário, teve menos sorte. Sua unidade estava encurralada e do telhado de uma casa partiam tiros. Ele mirou e matou o inimigo. Era uma criança. “Quem afirma que não existe trauma é porque nunca foi à guerra. Estão exigindo demais de nós”, comenta Jonathan. Sob o olhar solidário da mulher, ele explica ao artista tatuador a imagem que quer ter gravada no antebraço: a de um bebê com capuz, chupeta e foice, homenagem ao filhinho David, a quem carrega orgulhosamente no colo.
Jonathan conta ter pesadelos e suar frio, além de sentir cheiro de carne humana queimada. “Um batalhão da 6ª Divisão que perdeu sessenta caras no Iraque teve um número ainda maior de mortes só nos doze primeiros meses depois de voltar para casa. Por dirigirem alcoolizados”, esclarece ele. “Só porque você não pulou de uma ponte nem se deu um tiro na cabeça não significa que não cometeu suicídio.” Filmado pela última vez em agosto de 2009, pouco antes de uma nova temporada (voluntária) na guerra, Jonathan faz um balanço da sua vida: “Hoje tenho um monte de coisas. Sou dono de um caminhão, tevê de plasma, minha mulher carrega um baita anel de diamante no dedo. Vou à guerra pelo dinheiro. Estou vendendo minha vida.”
Dos seis retratados, o soldado paramédico Anthony, de 22 anos, é quem mais se esforça para não perder o gosto pelo lado colorido da vida. As tatuagens que encobrem boa parte de seus ombros, braços e tórax têm um pouco de tudo – instrumentos cirúrgicos, bombas explodindo, a frase Never again (Nunca mais) cravada sobre um coração partido, os quatro últimos dígitos da identificação de dois companheiros mortos e a cândida apresentação Hello, my name is Anthony incrustada no peito. Sem falar numa ampulheta com asas que, explica o recruta, “retrata o momento atual da minha vida em transição”.
Com seu documentário, Nancy Schiesari mirou numa fenda até então obscura da guerra. Talvez por ter retratado o corpo humano durante seis anos de formação em desenho, e por ter trabalhado numa série da BBC sobre a face humana, a diretora de Tattooed under Fire viu muito além da superfície. “Sempre achei que o corpo humano é a nossa bomba-relógio. É uma afirmação de como conduzimos nossa vida”, observa ela. “Está tudo lá, inscrito.” Mesmo quando não há tatuagens.