Proust teve o maior amor de sua vida pela mãe: desejos incestuosos pela mulher pecadora e divindade num tecido de perfumes, sons e climas ILUSTRAÇÃO: RETRATO MARCEL PROUST POR TULLIO PERICOLI_WWW.MARGARETHE-ILLUSTRATION.COM
Há uma santa com seu nome
Evangelhos, psicanálise, estética e até um docinho na metáfora de Proust
Mario Sergio Conti | Edição 76, Janeiro 2013
O episódio da madalena, o bolinho que o Narrador toma com chá num dia de inverno e faz com que ele recupere plenamente o passado, é o mais conhecido de À Procura do Tempo Perdido. Nele, Marcel Proust distingue a memória voluntária da involuntária, conceitos que percorrerão os sete volumes de seu romance.
Voluntária é a memória da inteligência, que é sempre restrita. Ao lembrarmos intencionalmente do passado, jamais conseguimos recordar a verdade do que se nos passou. Por meio da vontade, não se alcança a percepção dos dias e anos vividos, que permanecem para sempre na condição de fragmentos, submergidos na premência do presente.
A memória involuntária é igualmente limitada, mas de outra maneira. Ela está ligada a sentidos básicos da natureza humana, a começar pelo sabor e o odor, e depende do acaso, e não do desígnio consciente. Foram o gosto e o cheiro da madalena com chá que, de modo fortuito, possibilitaram ao Narrador a recuperação da sua infância no lugarejo próximo a Chartres, Combray, que lhe reaparece como ele nunca lograra antes.
A madalena é um dos tesouros que está no fim da procura enunciada no título do romance: chega-se ao tempo perdido pelo caminho da memória involuntária. A repercussão do episódio talvez se explique pelo fato de os sentidos que permitem a retomada de experiências passadas, individuais e firmemente fincadas numa configuração histórica, terem um alcance que ultrapassa em muito a França do início do século passado e a literatura europeia de então.
A cisão da memória é vivência comum. Muitos já nos frustramos em tentar captar o passado e não obter sucesso: anos inteiros continuam inacessíveis. Mas alguns de nós tivemos a ventura de reencontrar num objeto – ou num som, ou num cheiro, ou no paladar – aquilo que estava perdido na inconsciência. Já foi dito que essa reconquista do tempo provoca um sentimento oceânico, um transe místico ou uma iluminação. Proust sintetizou essa experiência individual e social na madalena.
Não é estranho, pois, que só faça crescer o interesse e a admiração por À Procura do Tempo Perdido. O Japão tem o maior número de centros universitários dedicados ao estudo de Proust fora da França. Ao longo dos últimos anos foram feitas três traduções do romance na China.
Fred Vargas, a escritora francesa, compara Tempo Perdido a uma imensa e intrincada peça de tecelagem. Em cada parte da trama, uma inteligência se aplicou em tecer significados altamente elaborados, destinados a obter a veracidade de um fato, tema ou personagem. E o trabalho artístico – que não tem começo, meio e fim – forma uma figura de enorme beleza e originalidade, na qual as partes isoladas estão inter-relacionadas e se aclaram.
Não há nada de comparável na literatura francesa, diz Fred Vagas – pelo poder de revelação e pela análise sem fim do romance proustiano, capaz de esmiuçar e criar matizes para os modos de viver de uma classe e de seus empregados, de uma sociedade e de uma nação. Tal figura, por ser arte que aspira à eternidade, atravessa o tempo e perdura. Ela transcende os dados que lhe deram origem e o próprio autor. “Mas não se pense, como fizeram tantos escritores franceses, que basta escrever sobre a infância na província para que surja a madalena”, disse Fred Vargas.
Proust usou outras imagens para mostrar as ligações entre as partes e o todo na sua obra. Ele amava a arte medieval e, com seu inglês mais que claudicante (estudara apenas alemão no liceu), traduziu livros do crítico John Ruskin, que chamara as catedrais góticas de “bíblias de pedra”. Numa carta de 1919 a um amigo, o escritor contou que pretendera construir o seu romance como uma catedral. “Quis dar a cada parte do meu livro o título Pórtico 1 Vitrais da abside etc.”, escreveu, mas “desisti logo em seguida a esses títulos porque os achei demasiado pretensiosos”.
Nas páginas finais do romance, quando o Narrador volta ao episódio da madalena e decide que começará a escrever um romance, ele retoma o assunto: “Construirei meu livro, não ouso dizer ambiciosamente como uma catedral, mas simplesmente como um vestido.” Proust era um admirador dos peignoirs e vestidos de Mariano Fortuny y Madrazo, costureiro espanhol que se estabeleceu em Veneza e se inspirou em quadros de pintores renascentistas para fabricar tecidos e desenhar roupas. Ele escreveu a uma parenta de Fortuny para saber se alguns dos vestidos do estilista, usados por duas das suas personagens, Albertine e Oriane, a duquesa de Guermantes, haviam sido tirados de quadros de pintores de Pádua. Ela esclareceu: a fonte de inspiração fora Carpaccio, veneziano. Proust fez a correção no romance.
Ainda que os títulos arquiteturais tenham sido abandonados, À Procura do Tempo Perdido conserva elementos estruturais de um romance-catedral: mulheres descritas como estátuas, arcos que sustentam flechas a buscar alturas inefáveis, portais com entalhes de cenas do passado, salas de eucaristia para conversas reservadas e salões de cerimônias de congraçamento, capelas dedicadas ao recolhimento, tumbas com relíquias de mortos, sons e sinos que marcam a passagem do tempo.
Da mesma forma, o desmesurado tecido de signos urdido por Proust cai como uma roupa sobre a sociedade, realçando, colorindo ou mesmo disfarçando partes que a constituem. A sociedade é vista como um corpo vivo e em movimento, sempre se modificando, mas conservando características definidoras, no qual o escritor veste a sua arte.
Nessas metáforas, que são aproximativas e imperfeitas mas ajudam a pensar, a madalena poderia ser vista como uma das rosáceas do romance-catedral: numa hora qualquer, a depender da insolação, a luz atravessa os vitrais e ilumina toda a nave. Ou como o corselet de um traje de gala, a parte entre o decote e a cintura que sustenta o conjunto e se impõe à primeira vista, mas cujo fulgor deriva da sua harmonia com a roupa inteira e com a pessoa que o porta. É preciso atentar à construção do episódio e relacioná-lo à obra para ver mais do seu significado.
A madalena aparece no encerramento do primeiro capítulo de Para o Lado de Swann, o volume inicial de À Procura do Tempo Perdido. No capítulo, cuja frase inaugural é “Por um longo tempo, me deitei cedo” – que Proust reescreveu dezesseis vezes –, o Narrador conta seus devaneios durante a insônia em diversos quartos nos quais dormiu durante a vida: em Paris, Doncières, Balbec, Veneza e Combray.
Detém-se então para falar de uma situação específica: suas angústias na infância quando um vizinho, Charles Swann, vinha jantar na casa de sua tia Léonie, em Combray. Nessas noites, era-lhe permitido acompanhar o jantar até determinada hora. Tinha então que se levantar, despedir-se, subir as escadas, ir sozinho para o quarto, trocar-se e dormir sem o beijo de boa noite que a mãe vinha sempre lhe dar.
A cena do beijo teve inspiração na intimidade do autor, que teve pela mãe o seu maior amor na vida. Num desses jogos de salão no qual os participantes devem responder a uma série de perguntas, e que existe até hoje com o nome de Questionário Proust, ele disse que a pior coisa que poderia lhe acontecer na vida era “ser separado de mamãe”.
Numa noite, ao ser mandado para o quarto, o padecimento do Narrador é tamanho que ele envia um bilhete à mãe, por meio da empregada da família, pedindo que ela suba para lhe dar o beijo de despedida. A moça vai, volta e lhe diz que a mãe não lhe dera resposta, ele tinha que dormir. O menino se revolta. Recusa-se a se deitar e, paralisado pela perspectiva da bronca monstruosa e inescapável a ser feita pelo pai, aguarda aos prantos que a mãe suba.
O jantar acaba tarde da noite. Swann (“o autor inconsciente de minhas tristezas”, como o Narrador o classifica) vai embora e a família se recolhe. O pai e a mãe sobem a escada à luz bruxuleante de uma luminária. Dá-se uma reviravolta nas expectativas do menino. Vendo o estado miserável do filho, ou sem dar maior importância à ansiedade da criança que sofre, seu pai diz à mulher que cuide dele. Ordena à empregada que ponha uma segunda cama no quarto para que a mãe passe aquela noite com o garoto, para acalmá-lo. As concessões prosseguem. Sua mãe pega um pacote de livros de George Sand, que o menino deveria receber de presente da avó só alguns dias depois. Diz a ele que escolha um dos romances e se dispõe a lê-lo até que durma tranquilo.
A capitulação dos pais ante o seu nervosismo por certo traz alegria ao menino, que vê cumprido o seu maior desejo na vida, o de permanecer junto da mãe. Mas também é índice de uma desistência maior: ao se conformar à hipersensibilidade do filho, a mãe como que desiste de frustrá-lo, e assim renuncia à tarefa de educá-lo no sentido amplo, de ensiná-lo a acomodar-se às dificuldades inerentes à maturidade. Ele será para sempre uma vítima de suas angústias nervosas, da falta de vontade em controlar os próprios desejos – um adulto com traços de criança mimada. A sua vocação de escritor será frustrada ao longo da vida. Preguiça, problemas de expressão e comodismo irão solapar sua ambição de ser artista.
Na narrativa do trecho, Proust combina as percepções do menino com as digressões analíticas do Narrador. Eles são a mesma personagem, mas longos anos os separam, e o que Proust registra é a percepção de um e outro. Há aí a demonstração de uma extraordinária capacidade de expressão, em termos de técnica literária, embora ela não esteja em primeiro plano.
O que sobressai é a inoculação da inteligência no literário: o relato pensa a si mesmo e tudo que está em volta. Ele é uma procura: a tentativa cerrada de um homem em encontrar o seu lugar no tempo. O Narrador sem nome apalpa, ensaia, experimenta, arrisca, não se submete a clichês e/ou verdades místicas e religiosas. A madalena surge como produto de uma pesquisa, do esforço persistente de uma inteligência, e não um raio em céu azul. Daí ser preferível traduzir À La Recherche du Temps Perdu por À Procura do Tempo Perdido, em vez do consagrado Em Busca. A tradução corrente do título não está errada, “procura” e “busca” são sinônimos. Mas recherche em francês é também “pesquisa” – como em recherche scientifi que, “pesquisa científica”. Se quisesse enfatizar o aspecto místico da busca, Proust poderia ter usado como título La Quête du Temps Perdu, que tem o mesmo sentido, mas alude imediatamente a A Busca do Santo Graal, o relato medieval da busca do cálice sagrado, que conteria o sangue de Cristo na cruz, pelos cavaleiros do rei Artur. Preferiu Recherche, que está mais próxima da vida concreta moderna, dos esforços da ciência e da arte, do que de superstições ou crendices.
O menino escolhe para a mãe ler François le Champi, o romance de George Sand de “título incompreensível”. E o livro se lhe torna ainda mais difícil de entender porque, na leitura, a mãe salta todas as “cenas de amor”. A censura materna impregna o romance de um “profundo mistério”, que a criança associa ao nome doce e enigmático de “Champi”.
A escolha é curiosa, mas certeira. George Sand era o nom de plume, masculino, de Amantine Dupin, a baronesa Dudevant, nascida em 1804. Escritora prolífica, autora de uma penca de livros, ela fez sucesso com romances açucarados que caíram no gosto popular, sobretudo entre adolescentes. Teve uma vida amorosa escandalosa, era republicana e feminista avant la lettre. Na sua época, era respeitada e frequentava Flaubert, Hugo e Balzac, além de Liszt e Chopin. Mas ainda em vida sua obra começou a ser atacada. E a posteridade, se não a esqueceu de todo, pois ela continua a ser lida pelo público jovem, a derrubou do panteão dos grandes escritores que frequentava. Os ataques começaram com Baudelaire:
Ela é besta, ela é pesada, ela é tagarela. Não posso pensar nessa criatura estúpida sem um estremecimento de horror. Se a encontrasse, não poderia me impedir de atirar-lhe uma pia de água benta na cabeça. Que alguns homens possam se enrabichar por essa latrina é a prova do rebaixamento dos homens deste século.
Baudelaire sabia ser agressivo (se bem que “latrina”, francamente…), mas outros adotaram um tom parecido para investir contra George Sand. Nietzsche: “Essa terrível vaca que escreve.” Jules Renard: “A vaca bretã da literatura.”
Faz sentido, no contexto de Tempo Perdido, a proeminência conferida ao romance de George Sand. Afinal, ela era uma autora por excelência para crianças. E aparentemente faz menos sentido que Proust e o seu Narrador a tivessem em alta conta. Isso decorre da concepção de leitura do autor. Para ele, ler é um ato físico: depende do contexto no qual alguém percorre o livro, da capacidade do leitor em imaginar as cenas descritas. E da habilidade daquele que lê em relacionar o escrito com a sua própria vida subjetiva. Ler não é uma atividade passiva, é imaginar, criar imagens que se justapunham à situação existencial do leitor.
Daí a ênfase que o Narrador dá à maneira como a mãe diz François le Champi. O som da sua voz, o encadeamento das frases, a censura de determinadas passagens, o mistério que elas provocam – tudo isso constrói o encanto do romance de George Sand. E aquele que ouve a leitura, o Narrador, satisfaz ali um grande desejo reprimido. Um livro menor lhe diz mais que uma obra de arte sacramentada.
François le Champi é um dos romances campestres de George Sand. Ele conta a história de um champi, que no patuá da região francesa do Berry significa abandonado nos campos. A raiz da palavra, antiga e em desuso, é a mesma de champignon, o fungo que não é cultivado, cresce selvagemente na natureza. François, o abandonado, está prestes a ser enviado a um orfanato quando a mulher do moleiro Cadet Blanchet decide criá-lo.
À medida que o menino cresce, mais e mais ele se aproxima da mãe adotiva. A aproximação é também enamoramento e flerte de parte a parte. O moleiro Blanchet vem a perceber, quando François entra na juventude, que a ligação entre o adotado e sua mulher está deixando de ser maternal para se tornar amorosa. São essas cenas da evolução de um amor incestuoso que a mãe do Narrador corta da sua leitura em voz alta. O moleiro expulsa o champi de casa.
Abandonado pela segunda vez, François faz sua vida na cidade grande. Passa o tempo, o moleiro Blanchet morre e sua mulher fica viúva. François fica sabendo que ela está em dificuldades financeiras, volta ao campo de moinhos e socorre a mãe adotiva. Com a morte do marido e pai adotivo, apaixonam-se e se casam.
O amor edipiano, que é evidente no romance de George Sand, não é referido em À Procura do Tempo Perdido. Mas é o enredo de François le Champi que possibilita entender em toda a extensão a cena da madalena no livro de Proust. A mãe poderia ter lido ao Narrador Hamlet, Os Irmãos Karamazov e mesmo Rei Édipo, que, segundo Freud, também tratam do incesto. Mas não há mãe que leia Shakespeare, Dostoiévski ou Sófocles para um filho dormir.
Por fim, o que é decisivo, a mãe de François tem um nome: Madalena, o mesmo do bolinho fofo que Proust elegeu para guardar o tempo perdido. Madalena, o doce, foi uma construção deliberada de Proust, ao que parece sem uma inspiração biográfica direta. Nem nos 21 volumes da correspondência do escritor, nem nos livros avulsos de cartas a amigos, há qualquer evidência que ele tenha comido uma madalena com chá e sentido o que descreve em Para o Lado de Swann.
A leitura de rascunhos do episódio referenda que o artifício literário sobrepuja eventuais fontes biográficas. Em Contra Sainte-Beuve, um livro que Proust não terminou nem publicou – sequer deu-lhe título – há uma cena parecida, escrita no final de 1908 e só publicada postumamente. Numa noite de inverno, uma “velha cozinheira” lhe oferece uma xícara de chá com fatias de “pão torrado”. Ao comê-las, o personagem se lembra dos verões que passou numa casa de campo, na qual o “avô” lhe dava um pedaço de pão molhado no chá.
Quando preparou Tempo Perdido, Proust escreveu seis versões manuscritas da passagem da madalena, além de ter feito emendas e correções em trechos datilografados e provas de impressão. Aos poucos, nelas a velha cozinheira é substituída pela empregada e finalmente pela mãe. O avô que lhe dá o chá é trocado pela tia Léonie de Combray. As fatias de pão torrado são alteradas para biscottes, pedaços de um pão especial tostado e dourado no forno, e depois, definitivamente, para madalena.
É possível, segundo o pesquisador Marc Weiner, que Proust tenha sido movido por uma carta de Wagner a uma amiga, quando encalacrara na composição da primeira cena do terceiro ato de Tristão e Isolda. O músico agradece à amiga o envio de biscottes, conforme consta da tradução francesa da carta, publicada em 1905. Mas a mensagem de Wagner não traz nada sobre a recuperação do passado, que é o fulcro da madalena proustiana. Ela é bem-humorada e fala do trabalho artístico:
Hoje eu contemplava o céu cinza com um desespero perfeito. Não podendo avançar no meu trabalho musical durante oito dias, o abandonei. Mas os bons e velhos biscottes, molhados no leite, colocaram tudo de novo no bom caminho. Biscottes! Biscottes! Vocês são o remédio necessário aos compositores em dificuldade!
Mesmo que Proust tenha guardado algo da carta do músico na redação do episódio, ela não explica a escolha final da madalena. Essa última é um pequeno bolo tenro e amanteigado, cujas vogais e consoantes (madeleine) têm uma delicadeza e umidade que estão ausentes da dureza ruidosa dos biscottes, tanto como nome como coisa física. A explicação se encontra no incesto sem parricídio, socialmente mais tolerável, de François le Champi. Mas não só no romance de George Sand.
Madalena é o nome de uma personagem importante dos Evangelhos. O relato bíblico é confuso e sobrepõe personagens, mas ela entrou na tradição católica como a pecadora, a prostituta que a turba busca apedrejar. Mas eis que chega o Nazareno e diz à multidão: “Atire a primeira pedra quem não tiver pecado.” De maneira semelhante, Proust e seu Narrador poderiam ter dito: atire a primeira pedra quem nunca teve um desejo de amor incestuoso.
Madalena se torna seguidora do Pregador. Quando ele é supliciado, a pecadora arrependida está aos pés da cruz com a mãe de Cristo, com a qual compartilha o prenome, Maria. Ela é a primeira a ver o Salvador ressuscitado: como madalena, o doce, se revela ao Narrador, o Salvador se mostra a Madalena, a figura bíblica. Post mortem, Madalena é canonizada. Há uma santa com seu nome.
A dicotomia entre a pecadora e a santa, entre a mulher que encarna as urgências da carne e a pureza da divindade, aquela que se entrega aos prazeres e depois se arrepende deles – essas ambiguidades configuram o mito de Madalena. Em À Procura do Tempo Perdido, elas se projetam sobre a mãe que cede aos caprichos do filho, o filho que não quer ser separado da mãe, a mãe que desiste de lhe impor as normas da boa educação, o filho que não irá superar o drama edipiano. E juntos eles acompanham o relato do incesto de outra Madalena, a mulher do moleiro criada por George Sand.
Uma segunda ressonância religiosa, essa mais distante e presente no ambiente em que Proust viveu, ecoa no relato. O Narrador explica que as madalenas parecem ter sido moldadas numa “concha de são Tiago”, a coquille de Saint-Jacques, nome também de um prato da culinária francesa. Uma das rotas da célebre peregrinação medieval passa por Chartres, desce para Illiers, a cidadezinha que inspirou a Combray do romance, vai para o sul da França, entra à direita na Espanha e termina na catedral barroca de Santiago de Compostela.
O símbolo dos peregrinos é a concha de são Tiago. Ela é esculpida e pintada em muros por todo o caminho que leva a Compostela, inclusive Illiers. É provável que Proust tenha visto essas conchas na cidade e nos passeios que fazia nas cercanias de Illiers-Combray, hoje o nome oficial da cidade, em homenagem ao escritor. E é certo que tenha comido a madalena, bolo que se vende em qualquer padaria da França.
Há hoje um pequeno museu em Illiers-Combray, na antiga casa da tia Léonie. Na praça principal do vilarejo, uma padaria vende as “verdadeiras” madalenas, as que Proust comia na infância. Em Cabourg, o balneário na costa normanda onde o escritor passava férias na juventude, e serviu de modelo para a Balbec de Tempo Perdido, vendem-se igualmente madalenas “autênticas”. Ou seja, a madalena virou um fetiche. Como se qualquer um, ao comê-lo, pudesse por um passe de mágica ter acesso ao tempo perdido. (O museu de Combray-Illiers não é somente um caça-níqueis para turistas: a casa está cheia de objetos da Argélia colonial, onde o tio-avô de Proust serviu, que ajudam a entender algo dos privilégios do mundo em que o romancista viveu, o do imperialismo francês).
O aspecto edipiano da metáfora da madalena fez com que psicanalistas se refestelassem na interpretação de Proust e seu romance. A aproximação não é descabida. Freud e Proust foram contemporâneos. O primeiro deu primazia ao sonho, e o segundo ao sono, ainda que Tempo Perdido também esteja cheio de relatos oníricos. Noções como inconsciente, neurose e ato falho, temas como o ciúme, o homossexualismo e as relações entre mãe e filho pululam no romance proustiano, embora com perspectivas e conteúdos diversos dos conceitos elaborados por Freud.
Jean-Yves Tadié, o maior pesquisador proustiano vivo – ele editou a mais recente, e monumental, versão da Pléiade de Tempo Perdido –, publicou no ano passado um livro, Le Lac Inconnu, anotando dezenas de casos da “consanguinidade dos espíritos” de Freud e Proust. Mas essa consanguinidade diz respeito mais ao ambiente cultural em que trabalharam, ao espírito da época, e menos a uma identificação do modo de pensar dos dois.
Proust não se referiu nunca a Freud e é bastante provável que jamais o tenha lido, e vice-versa. Ou melhor: o vice-versa valeu até o ano passado. A psicanalista Elisabeth Roudinesco, autora de uma biografia de Lacan e de uma história da psicanálise na França, escreveu uma resenha de Le Lac Inconnu. Logo na abertura da resenha, de resto elogiosa, ela citou uma carta inédita de Freud, escrita à princesa Marie Bonaparte em janeiro de 1926. Freud havia lido Para o Lado de Swann, e disse o seguinte a respeito do livro:
Não acredito que a obra de Proust possa ser durável. E esse estilo! Ele quer sempre ir às profundezas e não termina nunca suas frases.
Em matéria de previsão errada e incompreensão de um estilo, Freud poucas vezes foi tão longe. Ele não viu a latência do complexo de Édipo nem a abrangência da imagem da madalena. O que não impediu a bancada vienense – que não conhecia a carta a Marie Bonaparte – de reduzir Proust a um catálogo de diagnósticos psicanalíticos.
Um dos livros mais ambiciosos da abordagem literária freudiana é La Place de la Madeleine, publicado em 1974 por Serge Doubrovsky. Como em boa parte dos trabalhos de crítica analítica, o livro avança explanações plausíveis e propõe outras duvidosas. Mas, ao sobreinterpretar Tempo Perdido, desliza no automatismo da escrita (um conceito freudiano puxa o outro) e soterra o romance no jargão do metiê.
Doubrovsky detectou um erro gramatical quando o bolinho surge pela primeira vez na narrativa. Sem ser um nome próprio, ele é grafado com maiúsculas: “Pequena Madalena.” O erro foi intencional. Numa das últimas alterações antes da publicação de Para o Lado de Swann, Proust riscou as minúsculas e as substituiu por maiúsculas. A pergunta, portanto, é pertinente: por quê?
Para Doubrovsky, a colocação das maiúsculas tem o valor de uma assinatura: “Pequena Madalena” equivale a “Proust Marcel”. Assim, o autor teria se associado em definitivo à madalenazinha, inclusive na materialidade do seu significante. A chave para recuperar o passado perdido seria ele mesmo, o seu artífice, o que ele atesta por meio de uma forma gráfica e críptica da madalena.
A análise não para aí. Seguindo os passos de outro freudiano, Philippe Lejeune, Doubrovsky diz que o chá e a madalena tomam o lugar do pão e do vinho no rito da “comunhão oral com a mãe”. Fala da “função totalizadora da masturbação e do orgasmo na arquitetura” de Tempo Perdido. Termos de Proust são vergados pela lascívia com o objetivo de concluir que a madalena seria o sexo da mãe, “gordurosamente sensual no seu pregueado severo”: de um lado, o doce teria a protuberância de um seio; de outro, seria moldado na “valva estriada de uma concha”. Como homofonias são manifestações do inconsciente, “valva” remete a “vulva”, e até o som da primeira sílaba de Combray seria outra referência à vagina materna.
Tais explicações, apesar de partirem de dados que estão na obra, não aumentam o entendimento do romance. E muito menos elastecem a compreensão que o leitor de Tempo Perdido possa ter de si mesmo e do mundo – que são funções básicas da literatura.
Na parte final do último livro do romance, O Tempo Reencontrado, o Narrador vai a uma recepção da princesa de Guermantes. Ele é um homem alquebrado pelos anos, pelos amores infelizes e pela frustração de não ter conseguido se tornar escritor. Os alemães arrasaram Combray. Seus amigos e conhecidos são escombros ambulantes cujos traços mais sinistros terminaram por se impor aos seus semblantes. O Narrador é conduzido à biblioteca do príncipe enquanto aguarda a execução de uma peça musical. Toma ao acaso um volume das prateleiras. Abre-o, e se emociona até as lágrimas. O livro era François le Champi:
Esse livro que minha mãe me havia lido em voz alta em Combray, quase até de manhã, tinha guardado para mim todo o encanto daquela noite.
A memória involuntária do Narrador se desperta: o som do roçar de um guardanapo engomado no prato, o tropeço num desvão do solo, François le Campi e a própria madalena o remetem a pontos diversos do passado, e o tempo se lhe adquire dimensão concreta. Ele se dispõe então a escrever um romance que construa e torne social essa nova estatura do tempo. O romance será À Procura do Tempo Perdido.
Dessa vez, o Narrador reflete sobre o trabalho literário. Diz que François le Champi é uma obra menor. O seu valor estético está na confluência dos sentimentos do menino que ouviu a mãe ler o romance de George Sand com a análise que o tempo permitiu a ele, o Narrador, agora vivido e amadurecido, finalmente fazer.
Os seus modelos de expressão da memória involuntária serão momentos de outros livros, obras-primas da literatura francesa: as Memórias de Além-Túmulo, de Chateaubriand, Sylvie, de Gérard de Nerval, e, acima dos outros, todo Baudelaire – o poeta que, conforme Proust escreveu noutro lugar, “sentiu tudo, compreendeu tudo, é a sensibilidade mais palpitante, a inteligência mais profunda”.
O Narrador escreve no e para o presente. Sua procura não tem nada de regressiva ou de saudosismo, não visa se deliciar com as estações passadas da alegria. Tanto é assim que, em algumas das situações em que a memória involuntária se manifesta em À Procura do Tempo Perdido, o tempo recuperado é tristíssimo: a morte da avó só é percebida em toda a sua intensidade quando o Narrador ajeita os sapatos sozinho no Grande Hotel de Balbec; a sonata de Vinteuil, outrora o “hino nacional” de seu amor por Odette, é reouvida por Swann como melodia do amargor; os sinos de Martinville e as árvores de Hudimesnil se recusam a desvendar segredos do passado.
No trecho da madalena, da mesma forma, o presente é ruim. O Narrador tem frio, está “abatido pelo dia sombrio e a perspectiva de um triste amanhã”. A madalena lhe propicia uma promessa de felicidade, mas para que ela se cumpra é preciso que o seu espírito a retire das profundezas e faça com que ascenda à superfície da consciência.
Como numa pesquisa científica, ele experimenta, tenta uma coisa (isolar-se das distrações circunvizinhas) e o seu contrário (deixar que a realidade atual interfira nas sensações). O Narrador precisa enfrentar hábitos, automatismos e a tirania da repetição neurótica, os ramerrões da alienação que lhe povoa o presente:
A covardia, que nos desvia de toda tarefa difícil e de toda obra importante, me aconselhou a deixar isso de lado, a beber meu chá pensando simplesmente nos meus aborrecimentos de hoje e nos meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem custo.
Vive-se no presente. Aceita-se que a generalização de fragmentos incoerentes do que se nos ocorreu constitua o passado. Que esse amálgama desconexo se projete sobre o presente e conforme o futuro. Mas no presente, como diz Proust, “uma hora não é só uma hora: é também perfumes, sons, projetos, climas”. Somos corpos aqui e agora e, a partir de sentidos como o odor e o sabor, às vezes é possível que a memória reponha a inteireza do indivíduo, o que só é cabível na continuidade do tempo.
Na visão trágica de Proust, isso só ocorre ao acaso: não somos senhores de nós mesmos. A visão trágica não é conformista porque ela busca também passar a experiência adiante, facilitar a outros que percebam a irrupção da memória involuntária e busquem o seu significado. “A experiência sem perdas”, diz Adorno sobre Proust, “é produzida somente na memória, muito para além da imediatez, e por meio da memória o envelhecimento e a morte parecem ser superados na imagem estética.”
Essa imagem estética é a madalena e todo o vestido e a catedral de À Procura do Tempo Perdido. Proust e seu Narrador nos dão a ver, numa xícara de chá, “as ninfeias do rio Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas casas, e a igreja e toda Combray”. Além de trazer de volta a vida do passado, a imagem aponta para uma utopia, para o tempo no qual nós, leitores, deixemos de ser medíocres, contingentes, mortais.
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