ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
Habeas Cannabis
Um jardim no quartinho
Tiago Coelho | Edição 145, Outubro 2018
Em abril deste ano, após apresentar à Justiça um receituário médico que atestava as dores crônicas que sente e a necessidade de uma nova terapêutica para seu problema de saúde, o engenheiro elétrico Pedro Zarur, de 56 anos, obteve autorização para plantar maconha em casa.
No quarto de empregada, de 6 metros quadrados, em sua casa na Tijuca, bairro de classe média carioca, Zarur passou então a cultivar dez pequenos vasos de Cannabis sativa (nome de uma das espécies da planta de onde se produz a maconha), cuja muda tem cerca de 40 centímetros de altura. As plantas são tratadas com esmero: a terra é adubada com insumos biológicos de qualidade e o sistema de rega passa por um mecanismo que retira o cloro da água. “Venha ver”, disse, levando o repórter da piauí até os fundos do imóvel, numa noite de meados de agosto. De dentro do aposento, uma luz branca muito forte irradiava de refletores que servem para deixar o local aquecido. “Olha que beleza! Estão pequenininhas ainda. Mas podem atingir quase 2 metros”, previa Zarur. “Colhi há algumas semanas, agora espero o florescimento dessas mudinhas.”
Quando as plantas crescerem, Zarur colherá apenas as flores. Antes de descartar o resto, retirará alguns galhos e os replantará nos vasos. Será a próxima colheita, dentro de dezoito semanas.
Ele pega um dos vasos e o aproxima dos olhos, para ver se descobre na planta alguma praga, mas o pé de maconha está bem saudável. De volta à sala, apanha uma caixa de madeira, de onde retira um vidro com flores de maconha secas. O perfume forte da erva exala de dentro do frasco. Zarur tira uma das flores e a observa com uma lente microscópica portátil, parecida com um monóculo. “Veja essas ceras brilhantes na flor. É o THC. O barato não vem das folhas, vem daí”, diz, soltando uma risadinha. Depois, assume tom mais sério: “Para cultivar Cannabis em casa é preciso ter zelo e capricho, senão você não colhe nada. É algo muito distante do imaginário do maconheiro desleixado, preguiçoso.” De fato, a casa onde ele vive com a mulher e dois filhos jovens – um rapaz de 27 anos e uma moça de 25 – reflete isso: organização e cuidado.
Tijucano de nascimento, Zarur contraiu poliomielite antes de completar 1 ano de idade. Com dificuldades para andar, em razão da atrofia das pernas, desenvolveu esporões em diferentes partes do corpo, além de hérnias de discos lombares. Com o tempo, suas dores foram se ampliando, mais ainda ao caminhar, tornando-se às vezes excruciantes.
Foi apenas por distração que Zarur começou a fumar maconha na juventude. Mas percebeu que a erva, além de ser um agradável ansiolítico, contribuía para aliviar as suas dores. Em 2006, em um fórum na internet, conheceu outras pessoas interessadas no plantio. O fórum, além de ser um local em que os cultivadores trocavam informações, servia de canal para a importação de sementes, que chegavam pelo correio, encaminhadas da Inglaterra ou da Holanda. A correspondência nem sempre passava despercebida pela alfândega brasileira. Quando descobriam o conteúdo, o destinatário era convocado para prestar depoimento à Polícia Federal.
Zarur escondeu a primeira muda que plantou num vão livre embaixo da escada da entrada de sua casa. Mulher e filhos sabiam da plantinha florescendo aos seus pés, mas nunca se interessaram muito por aquele cultivo proibido. Quando a vizinha, que era sua amiga de infância, se mudou e um desconhecido passou a morar ao lado, o engenheiro levou a muda para o quarto de empregada.
Como nos últimos dois anos as suas dores se tornaram crônicas, o médico lhe prescreveu um óleo extraído da Cannabis, cujo princípio ativo ajuda a aliviar dores e náuseas, reduz convulsões severas e tem efeito neuroprotetor.
Com a receita em mãos, Zarur fez um pedido à Anvisa para importar o óleo, que é tomado por via oral, puro ou misturado em algum líquido. “Porém, o custo mensal da importação da quantidade de remédio necessária para um homem do meu tamanho e peso é de quase 10 mil reais.” Ele pesa 90 quilos e mede 1,78 metro. Esses custos, então, levaram o engenheiro a ir mais longe: de posse da recomendação médica e alegando não poder arcar com a despesa de importação, ele decidiu pedir um habeas corpus que o autorizasse a cultivar a Cannabis. “Com o cultivo, gasto apenas 600 reais por mês”, calcula.
Zarur percebeu que, como ele, um grande número de pessoas tentava obter o medicamento extraído da maconha. Isso o levou a participar, em 2015, da fundação da ABRACannabis, entidade que defende o cultivo da erva e forma uma rede multidisciplinar de apoio a pacientes e familiares que fazem uso terapêutico da planta.
Parceira de centros de pesquisas como a Fiocruz e o Farmacannabis, laboratório da UFRJ que estuda e monitora terapias com produtos medicinais de Cannabis, a ABRACannabis tem cem associados. Mas apenas sete, incluindo Zarur, possuem habeas corpus autorizando o cultivo.
A entidade reúne médicos, professores, advogados e pesquisadores que orientam pacientes na obtenção de respaldo jurídico para a compra do medicamento e para o plantio. A principal demanda do produto vem de familiares de pessoas com autismo, epilepsia de difícil controle, câncer e mal de Parkinson.
Nos últimos tempos, Zarur reduziu bastante o uso do cigarro de maconha. Consome a Cannabis de duas outras formas, dependendo da intensidade da dor. O óleo, que leva três horas para começar a agir, é ingerido duas vezes por dia, de manhã e à noite. Quando a dor ataca de forma mais intensa, recorre ao vaporizador, um aparelho preto parecido com um telefone celular. Abre uma tampa dentro do objeto e coloca um punhado de erva seca em uma caixinha. O vaporizador aquece a maconha e libera o vapor, que o engenheiro aspira. O efeito é imediato.
Ultimamente, o jardim de maconha de Zarur também se tornou uma espécie de horta, pois ele passou a usar a planta em várias receitas culinárias. Entre seus amigos, é famoso o molho pesto que criou com manjericão e Cannabis. Mas o carro-chefe, sem dúvida, é uma lasanha em que mistura a maconha ao molho branco. Os apreciadores da iguaria a batizaram de “lasonha”.