ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Habermas pela manhã
Do que falam os passageiros do Massa Crítica, o ônibus que faz a linha São Paulo–Unicamp
Bruno Moreschi | Edição 63, Dezembro 2011
Ao estacionar na frente da estação de metrô Sumaré, em São Paulo, nada parecia distinguir o ônibus cinza e vermelho dos demais veículos fretados que estavam prestes a zarpar para destinos variados no interior do estado numa manhã de sexta. Era possível intuir a hora só pela fleuma dos passageiros com cara de zumbi na fila do embarque: 5h59. Acomodados no ônibus, quando a maioria se preparava para retomar o sono, dois jovens encetaram uma discussão.
“Habermas é uma farsa”, provocou o mais barbado dos dois, que parecia genuinamente disposto a discutir a teoria da ação comunicativa àquela hora. O resto dos passageiros respirou com alívio quando seu companheiro retorquiu que não discutiria com foucaultianos passionais. Mas era uma recusa meramente retórica. Ele acabou se engajando num acalorado debate de vinte minutos que mobilizou ainda o idealismo transcendental de Kant e a dialética de Hegel.
Um entrevero filosófico dessa magnitude só poderia ter lugar no “Massa Crítica”, serviço de ônibus fretado que transporta professores e alunos da Universidade Estadual de Campinas que moram em São Paulo. De segunda a sexta, três carros da companhia Santa Cruz levam 240 passageiros, ao preço de 27 reais cada trecho. Os ônibus saem às 5h50 e às 6h40 da praça Panamericana e recolhem passageiros em outros quatro pontos. O trajeto de cerca de 120 quilômetros até a Unicamp dura duas horas. Em Campinas, o ônibus ainda para em outras duas universidades e num centro comercial.
A criação do Massa Crítica é obra de José Antonio Ramos, funcionário aposentado de uma fundação do governo paulista. Em 1988, sua mulher, professora de ciência política, não aguentava mais ir à Unicamp pelos meios convencionais – dirigindo, de carona ou nos ônibus intermunicipais regulares. Junto com colegas, ela acalentou durante um ano o projeto de contratar um motorista para conduzi-los no trajeto. Mas foi necessária a intervenção de Ramos para que alguma providência fosse tomada. “Sabe como é, intelectual não serve muito para resolver coisas práticas”, justificou, com a proatividade de um empreendedor nato.
Antes de investir no projeto, Ramos quis se certificar de que haveria público para sua iniciativa. Numa rodada de telefonemas para professores da Unicamp residentes em São Paulo, não identificou mais do que quinze interessados, em vez das centenas de passageiros que esperava amealhar. Sua intuição mandou que arriscasse assim mesmo. “Tinha certeza de que, quando a oferta existisse, novos passageiros viriam”, contou ele, bebericando café numa padaria ao lado do ponto do metrô Sumaré.
Ramos não estava equivocado. Inaugurado em abril de 1989, o serviço não tardou a dar lucro, devido à propaganda boca a boca feita pela comunidade acadêmica. A simpatia do empresário também ajudou – ele costuma cumprimentar os passageiros um a um no embarque e lançar-se em longas conversas sobre política e cultura quando vai a bordo de um dos carros.
A origem do nome Massa Crítica é objeto de controvérsia. Em seus primeiros meses, o serviço chamou-se Intercampus – de fato uma ideia pouco inspirada. Por isso, dizem alguns, foi feita uma votação para substituí-lo – decerto numa viagem de volta, com os passageiros mais despertos. Não se sabe mais quem propôs Massa Crítica, e a sugestão foi prontamente acolhida.
Há também quem atribua o nome ao sociólogo Octavio Ianni, morto em 2004. Quando se tornou professor da Unicamp, ele passou a viajar de ônibus fretado três vezes ou mais por semana. José Antonio Ramos desfrutava então de longas conversas sobre história do Brasil com o professor – e ainda ganhava para isso. Certa vez, Ianni teria advertido o motorista após uma freada brusca na estrada: “Pelo amor de Deus, cuidado com a massa crítica deste ônibus!” Os outros passageiros riram e trataram de espalhar.
Seja qual for a origem, o nome caiu no gosto dos usuários. Alguns o diminuíram para Massa ou Massinha. Já o slogan que Ramos acrescentou ao final – “cultura rodotransportada” – colou menos.
Os passageiros do Massa Crítica se dividem em três grandes tipos. Há aqueles que dormem como se não houvesse amanhã, e pode ser que percam o ponto no qual deveriam saltar, obrigando-se a uma caminhada matinal forçada pelo campus. Noutra categoria, estão aqueles que, como o foucaultiano passional, não abrem mão de conversar, e em horários nem sempre adequados a exercícios intelectuais mais ousados. E há, por fim, a classe dos que leem durante o trajeto – caso do cientista político Armando Boito, passageiro do Massa Crítica há quinze anos. “Dá para ler o jornal do dia inteirinho”, contou, orgulhoso e bem informado.
A convivência entre as diferentes estirpes nem sempre é pacífica. Aqueles que aproveitam o trajeto para colocar o papo em dia, em especial, são alvo da maledicência dos outros. Há vinte anos cruzando a rodovia dos Bandeirantes a bordo do Massa Crítica, o professor de música popular Hilton Jorge Valente assistiu de camarote à escalada na tensão entre os grupos. Gogô, como é conhecido, situa no advento do telefone celular o ponto de inflexão na harmonia entre os passageiros. “Não consigo entender alguém que conversa no celular às sete da manhã”, revolta-se, não totalmente desprovido de razão. Atormentado com a falação de um passageiro, Gogô tratou certa vez de mudar de assento, atitude que motivou protestos do tagarela. Sua reação foi fulminante. “Não tenho o direito de mandá-lo calar a boca, mas tampouco tenho o dever de ficar ouvindo sua conversa”, disparou, para euforia contida de alguns.
Episódios como esse têm acontecido com certa frequência. José Antonio Ramos torce para que a intransigência de alguns não o obrigue a uma medida extrema como proibir o uso de celulares a bordo. “Acredito que minha clientela acadêmica será capaz de resolver essa questão sem maiores conflitos”, avaliou. “Tudo é uma questão de bom-senso.”
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