Conversar com Hany Abu-Assad é ver o Ocidente pelo avesso: “Bush é a verdadeira face da América. Obama é Bush com vaselina” FOTO: VICTORIA JACOB
Hany no Alá-lá-ô
Um diretor palestino que veio ao Brasil filmar um livro de Paulo Coelho observa as diferenças entre o Ocidente capitalista, o Oriente Médio fundamentalista e o Rio da sensualidade ensolarada
Fernanda Torres | Edição 34, Julho 2009
Quando Hany Abu-Assad lançou Paradise Now nos Estados Unidos, há quatro anos, houve manifestações de protesto na frente dos cinemas que o exibiam. Apesar da indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o diretor foi acusado de edulcorar os terroristas suicidas da Jihad e tachado de irresponsável por alguns executivos da indústria de cinema americana. Isso porque Paradise Now conta a história de dois jovens palestinos da Cisjordânia que, por absoluta falta de perspectiva de vida, acabam se tornando homens-bomba. O filme termina com um deles sentado num banco de ônibus em Israel, prestes a detonar o botão.
O filme desconcerta pelo retrato nuançado de dois garotos quase apolíticos, pela sua cinematografia sóbria, pelo seu humor ácido e, principalmente, pela identificação que provoca com personagens quase sempre representados no Ocidente como fundamentalistas furiosos, que nada teriam a ver conosco.
Durante as filmagens, na cidade de Nablus, a equipe enfrentou seis meses de perigos, rodando em pleno confronto, sendo pegos pelo fogo cruzado e, às vezes, servindo de escudo para proteger militantes palestinos de ataques israelenses. “Eu queria fazer um faroeste na atualidade, nos verdadeiros lugares de tensão”, me disse Hany Abu-Assad. “São áreas fechadas, guetos onde se aguenta seis, sete horas de fila para cruzar a fronteira debaixo de um sol inclemente.”
Um dos piores momentos nas filmagens foi a noite em que o elenco e os técnicos se viram encurralados no hotel, deitados no chão do saguão por longas horas, enfrentando um tiroteio de tanques e metralhadoras. “Muitos choravam e eu, mesmo em pânico, tinha que segurar as pontas, já que era o responsável por ter colocado todo mundo naquela situação”, comentou. Em um outro momento, uma cena foi interrompida abruptamente para que as armas emprestadas fossem devolvidas aos verdadeiros donos, que queriam usá-las numa ação ofensiva. Quando retornaram para casa, muitos membros da equipe foram interrogados pela polícia.
Os problemas com Paradise Now continuaram. Temendo pela segurança de Hany durante a cerimônia de entrega do Oscar, o governo americano escalou cinco agentes da CIA para escoltar o diretor durante os quatro dias em que ele ficou em Los Angeles. “Era uma situação estranhíssima”, lembrou. “É justamente para defender o povo americano de árabes como eu que o aparato de proteção é normalmente acionado.”
Estar na pele do inimigo já rendeu ao diretor chás de cadeira em aeroportos e alguns momentos de saia justa. Em um vôo para Tel-Aviv, sentou-se ao lado de uma senhora bem-posta. Ela virou-se para ele e, aliviada, mandou: “Ah, graças a Deus você não é nem preto nem árabe. Não que eu tenha nada contra pretos e árabes, é que eles não cheiram bem.” Hany sorriu com a maior gentileza e respondeu que era palestino. “Ela passou as seis horas do vôo sem saber onde enfiar a cara”, disse ele.
Hany é um palestino quarentão da cidade de Nazaré à solta nas areias ardentes do Rio de Janeiro. Está trabalhando na pré-produção de Onze Minutos, o longa-metragem que vai dirigir, baseado no livro homônimo de Paulo Coelho. O Brasil nunca esteve em seus planos, e ele quase recusou o convite para fazer o filme por ser disléxico. Hany lê com certa lentidão e costuma passar os roteiros que recebe para a namorada, roteirista e cineasta turca, avaliar. A moça logo descartou Onze Minutos, achando não existir nada ali que pudesse interessá-lo.
Estava enganada. Quando descobriu que a personagem principal era uma menina brasileira que vira prostituta na Suíça, Hany aceitou imediatamente. Mas outras coisas no filme também o atraíram: “A idéia de que alguém faça do próprio corpo uma mercadoria, a dificuldade de uma mulher praticar o sexo sem estar excitada, enquanto alguém se excita justamente com isso e a oportunidade de poder falar que no Ocidente tudo está à venda.”
Seu primeiro choque com a sociedade de consumo se deu aos 18 anos, quando deixou a Palestina e se mudou para a Holanda. Conheceu em Amsterdã a zona do Red Light District e o capitalismo triunfante. Durante seis meses, mal conseguiu ir às aulas, atordoado com o admirável mundo novo. Tarde demais, percebeu que precisaria arranjar uma desculpa para justificar as faltas na faculdade para o pai: “Tentei conseguir uma dispensa com um médico, que me olhou sério e perguntou: ‘Que doença eu vou dizer que você teve por seis meses corridos, câncer?'” A solução foi frequentar um psicanalista. Hany encara a psicanálise como um capricho burguês, por isso se desesperou ao ouvir do analista que teria que comparecer às sessões no mínimo duas vezes por semana. “Fui durante dois meses”, ele contou. “Repetia que estava em pânico, que meu pai me mataria se soubesse a verdade. Meu pai era um homem muito compreensivo, coitado, mas fiz um quadro terrível dele. No fim, consegui o atestado e nunca mais voltei ao consultório.”
Em Amsterdã, enquanto estudava para ser engenheiro, ganhava a vida na cozinha de restaurantes. Foi preparando saladas que conheceu Wilco, um holandês também recém-saído da adolescência, um punk de cabelo moicano e botina preta que tocava numa banda de hard rock. Wilco lavava pratos e ambos, jovens de esquerda, amaldiçoavam o sistema enquanto serviam comida para a burguesia decadente. Um dia o amigo foi se apresentar no Uruguai: o pai do cantor da banda era um grande astro da música uruguaia e arranjou uma turnê para o filho. Na volta, Wilco fez uma parada na Bahia e nunca mais foi o mesmo. O punk foi completamente amansado pelas águas mornas e as tardes em Itapuã. Cortou o cabelo, arrumou uma namorada brasileira, se formou em economia e passou a acalentar a idéia de voltar sempre que possível ao gigante adormecido da América do Sul.
Hany odiou as mudanças: “Perdi meu amigo de revolta. O Brasil virou um imperativo na vida dele; na sua casa só tocava MPB e ele não parava de repetir que eu tinha que vir para o Brasil.” Até Onze Minutos, Wilco tinha sido o mais perto que Hany havia chegado do país. Agora, está aqui há três meses e quer ficar mais seis.
Apesar de louco por cinema, filmar não estava em seus planos quando pousou na Europa. Ele se formou em engenharia aeronáutica e foi muito bem-sucedido na profissão. Aos 26 anos já ostentava dinheiro, escritório, secretária e duas patentes de invenções de sua autoria que são usadas em grandes aviões de carreira. “Minha área era a fabricação de um material composto de fibras de carbono, leve e extremamente resistente, usado para fazer quase tudo o que se encontra no interior das cabines”, explicou. “Descobri um jeito de diminuir a eletricidade no interior do forno durante o processo de cozimento, adicionando vapor às mantas, e sugeri que se usasse um termômetro de infravermelho para controlar a temperatura. São fornos do tamanho de uma casa. Isso reduziu enormemente o gasto de energia empregada.”
Uma confusão afetiva o fez largar tudo e voltar a Nazaré, onde trabalhou com o pai. Sua casa em Nazaré fica a 200 metros da residência oficial da Virgem Maria, onde Jesus Cristo cresceu. Lá, conheceu um documentarista político chamado Rashid Masharawi, virou seu assistente e acabou no cinema. O pai não reclamou: “Ele era um homem bom. Se fosse meu filho, teria coberto o moleque de porrada.”
Em 1948, depois da proclamação do Estado de Israel, a família de Hany só se salvou do exílio graças a um militar israelense e à força da Igreja Católica em Nazaré. “O comandante local do Exército israelense exigiu uma ordem por escrito para que fosse feita a limpeza étnica em curso no resto da Palestina, mas seus superiores preferiram não oficializar a ação num documento.” Como as ordens não foram explicitadas, os soldados não se moveram e a família Abu-Assad pôde abandonar a igreja onde estava escondida e voltar para casa. “Os parentes que buscaram asilo em países vizinhos, à espera que a situação se normalizasse, estão proibidos de entrar na Palestina até hoje”, disse. Como ninguém ousa tocar na sagrada Nazaré, ele acha que a cidade “é o lugar mais seguro do mundo”.
Assim como na Roma Antiga, os territórios sob ocupação passaram a sofrer uma carga pesada de impostos. O dinheiro servia para consolidar o poderio de Israel. Revoltado, o pai de Hany se recusou a cumprir seus deveres com o fisco e enfrentou infindáveis processos judiciais por conta disso. Foi assim que perdeu a maior parte de sua fortuna. “Eu cresci irritado com a atitude do meu pai, mas hoje eu acho que ele foi um herói da resistência”, concluiu.
Hany passou a infância numa Palestina rural. As casas tinham galinheiro no quintal e as crianças tomavam banho de rio. Sua turma de pivetes gostava de fazer xixi nas pias de água benta das igrejas católicas e de atrapalhar a reza nas mesquitas. O muçulmano tem que rezar uma série de preces de uma só vez, sem ter sua atenção desviada. Se algo o interromper, deverá começar do zero. “A gente ficava segurando uma galinha e quando via alguém quase no fim das orações, jogava o bicho em cima da pessoa”, contou. “Depois ríamos feito loucos com o desespero de quem tinha que voltar para a casa. Eu não tinha nada na cabeça, só queria rir, rir até me acabar.”
Sua casa ficava perto do lago de Tiberíades, onde Jesus caminhou sobre as águas e onde Hany brincava, nadava e engolia água. Nos últimos anos, a população da cidade de Tiberíades pulou de 30 mil para 200 mil habitantes. Sem planejamento, os hotéis de luxo se multiplicaram e todo o esgoto foi despejado no pobre lago. “Qualquer um, atualmente, é capaz de caminhar sobre o lago, o lugar virou o paraíso do jet ski.”
A insustentabilidade da vida contemporânea é um assunto recorrente na conversa de Hany. É por meio dela que discute a situação do Oriente Médio. Vindo de uma família de classe média (seus irmãos são profissionais liberais), a idéia de ver a Palestina ocupada por um grupo fundamentalista radical jamais alegrou os Abu-Assad. Todos temem o Hezbollah tanto quanto o Talibã, embora o Hezbollah não suporte o Talibã e vice-versa. “Eu tinha a mesma opinião que a da minha família até assistir à TV Al Manar”, contou. É um canal estupendo, com debates de alto nível, raros de se ver em outras redes.” Em vez de um discurso xiita, o que Hany ouviu lhe pareceu bastante razoável. “A vida moderna não será viável no futuro próximo”, afirmou. “As revoluções tecnológicas demorarão mais tempo para serem implantadas do que a feérica curva ascendente de destruição dos recursos naturais do planeta. Sou engenheiro, sei o que estou dizendo.”
Segundo Hany, o que muitos grupos radicais pregam é o direito de manter sua estrutura social intacta, sem as maravilhas dos avanços modernos: “Está comprovado que o homem não conseguirá sobreviver se continuar poluindo e gastando da maneira que está. A Palestina sobrevive há milênios comendo o que planta e criando cabras, numa sociedade autossustentável. Se alguém não lutar para preservar esses hábitos na região, todos ficarão dependentes de outros mercados e serão varridos da Terra como os demais povos. Se o homem encontrar uma saída para essa encruzilhada, se a civilização baseada no consumo triunfar, tudo bem, nos entregaremos a ela. Mas nos deixem preservar nossa maneira de existir. Talvez seja a única a suportar as mudanças que estão por vir.”
Para reduzir ao máximo sua contribuição para a degradação do meio ambiente, Hany nem usa xampu. Um ambientalista holandês ironizou suas pretensões naturebas: “Ele me disse que um filme é mais poluente do que dez anos de xampu na minha cabeça. O pior é que ele tem razão. Pense na quantidade de carros, folhas de papel, agentes químicos para revelar a película, aviões, garrafas de água e energia elétrica empregada num filme.”
Hany acredita que estamos vivendo tempos de absoluta manipulação do pensamento. Somos levados a acreditar que precisamos comprar para sermos felizes. O poder de um homem é ligado ao que ele possui. Tudo para mover uma gigantesca máquina de dinheiro e comércio. “Eu me lembro que quando cheguei à Europa, em 1981, era considerado de mau gosto ter ambições. Em quase trinta anos, tudo mudou”, disse. O mundo árabe luta para expulsar um invasor de seus domínios e se recusa a aceitar o american way of life. “O que há de condenável nisso?”, perguntou. E respondeu em seguida: “A propaganda transformou os Estados Unidos na grande nação sofredora. Do rei fez-se a vítima. É uma distorção ridícula.”
O paraíso depois da morte exerce uma função fundamental na luta palestina. Hany, um ateu convicto, acredita que as promessas do comunismo não têm nenhuma chance quando comparadas às vantagens capitalistas: “O comunismo e o capitalismo disputam aqui na Terra o posto de melhor organização sociopolítica. Acontece que o capitalismo é o melhor sistema de recompensa terrena que o homem já inventou. Já o julgamento divino e a vida eterna no post mortem são as únicas armas existentes para fazer frente aos valores burgueses do capital. Para os que crêem no paraíso, as vantagens são tentadoras: rios de bebida alcoólica, centenas de virgens esperando a hora de se tornarem mulheres e a possibilidade de pecar pelo infinito sem ser castigado.” Ou seja, esse mundo onírico é a resposta ao luxo terreno da globalização e torna Alá o grande aliado da militância árabe na guerra santa do século XXI.
Hany desistiu da religião ainda muito jovem. No dia em que sua mãe o flagrou, em plena puberdade, entregue aos prazeres de Onan, bateu em suas mãos com vigor. Disse que nunca mais repetisse o ato impuro, pois, do contrário, queimaria nas chamas do inferno. Impressionado, o menino passou a viver dividido entre o clamor do sexo solitário e a promessa de salvação na vida eterna. “Numa noite, atormentado pelos hormônios, e já sentindo o chamuscar da danação, fui tomado por um pensamento revelador: e se Deus não existir?, pensei.” A idéia lhe trouxe um alívio imediato e libertou sua adolescência da culpa. Assim o menino Hany Abu-Assad matou Deus e seguiu seu destino de homem.
Conversar com Hany é como ver o Ocidente pelo avesso. Ele não festeja a eleição de Obama, por exemplo: “Bush é a verdadeira face da América. Obama é Bush com vaselina.” Mesmo bem-intencionado, Hany acredita que não depende apenas da vontade de um presidente mudar relações de poder fundamente arraigadas. A França e a Inglaterra traçaram um plano para controlar o petróleo no Oriente Médio quase cem anos atrás, ele acha. Está tudo documentado no Tratado de Sykes-Picot, assinado no dia 16 de maio de 1916. A técnica utilizada foi a de dividir para conquistar. A Arábia foi esquartejada em países fictícios, que foram entregues a tribos rivais entre si. Os chefes das tribos foram consagrados reis com a mesma caneta usada para assinar o tratado. Obviamente, os soberanos se mantiveram fiéis aos interesses de fora, que os colocaram no poder. Resumo: “Viramos um barril de pólvora.”
Paradise Now o catapultou para Hollywood, o quartel-general do opressor. Hany agora dispõe de agentes, advogados e recebe propostas para dirigir filmes internacionais. No cassino dos estúdios de Los Angeles, já esteve perto de filmar megaprojetos. A greve dos roteiristas interrompeu a realização de um filme com Nicolas Cage, quando Hany estava de malas prontas para o início das filmagens, em Berlim. Ele não poderia, no entanto, mudar nem uma linha do script. “Como costumo trabalhar com improvisação, expliquei que não precisaria de um roteirista”, contou. Caso necessário, criaria os diálogos na hora com os atores. “Quem checaria na tela a mudança no roteiro?” A resposta que ouviu dos produtores foi definitiva: “Eles me disseram que isso seria uma traição maior do que me plantar em uma praça na Faixa de Gaza e gritar ‘Viva Israel!'”
Seu primeiro convite dos americanos foi o de participar de uma série de filmes sobre a visão que estrangeiros têm da América. Hany esboçou a história de um grande ator shakespeariano egípcio – um Paulo Autran das arábias – que recebe o convite para fazer um filme em Hollywood. Quando desembarca em Los Angeles, descobre que cabe a ele o papel de um homem mau, muito mau, que deve encher a mocinha Jennifer Lopez de pancada. “Seria um filme sobre esse ator perdido entre os dois mundos: o Egito, onde é alguém perto de Deus, e Hollywood, onde não é ninguém.” O filme não foi adiante porque a produtora faliu antes.
Ele escreveu uma cena em que o ator recebia um treinamento para falar com Spielberg sem cometer deslizes. “Isso depois acabou acontecendo comigo”, disse. Hany ensaiou por quatro horas para uma entrevista com o Tom Cruise. O ator aprovou Hany, mas os megafinanciadores disseram que se algo desse errado num projeto de 90 milhões de dólares estrelado por Cruise, mesmo que fosse um pequeno problema na cor usada no cartaz, a culpa cairia sobre o diretor palestino de vanguarda, que só tinha experiência com orçamentos de 4 milhões de dólares. O filme foi feito, só que com Angelina Jolie no papel de Tom Cruise.
Está acertado que Mickey Rourke e Vincent Cassel atuarão em Onze Minutos. Hany quer filmar em outubro e novembro, com uma equipe brasileira. No momento, os produtores correm para fechar os acordos financeiros. Com a crise mundial, os bancos estão mais cautelosos para liberar os adiantamentos em dinheiro que viabilizam uma produção. Até esse ano, no grande mercado internacional de cinema, aceitava-se a promessa de venda de uma película para outros países como garantia do valor levantado. Não mais.
O tempo de espera no outono carioca provocou mudanças nesse palestino cosmopolitano. Ele agora entende melhor o que aconteceu com seu amigo punk e diz que o Brasil tem lhe causado um relaxamento prazeroso. “A Europa é extremamente fria no que diz respeito às relações humanas”, raciocinou. “As mulheres te dispensam com crueldade, são extremamente autocentradas em suas idiossincrasias. Ninguém toca em ninguém.” Reconhecendo que é “complicado generalizar”, ele acha que um europeu pode ser muito caloroso na seriedade com que te ajuda, se por acaso aceitar te ajudar. “Aqui, percebo que todos se dispõem a te dar uma mão, te confortam, mesmo que dali a dois dias esqueçam o que disseram. Só que às vezes a gente só precisa mesmo é de um bom colo, então essa solidariedade vacilante não deixa de ter utilidade. Talvez o europeu seja um povo mais sério e mais culpado. Vocês aqui não têm culpa nenhuma.”
Um guarda, no Brasil, é subornável porque achamos normal resolver nossas quizumbas em nível pessoal, argumentei. Da mesma maneira, um juiz solta um corrupto porque é da sua corriola e absolve um criminoso porque ele é um homem importante. “Mas eu tenho mais medo da violência das leis e do Estado do que do caos daqui”, disse Hany. “Tenho medo da ordem que privatiza as cadeias e permite que se lucre com o sistema penitenciário. Se os Estados Unidos querem te processar, eles te obrigam a contratar um advogado para que todos saiam lucrando. Prender um homem nos Estados Unidos é lucrativo, isso não me parece direito.” O mundo árabe, segundo Hany, é mais parecido com o do Brasil no que diz respeito à pessoalidade das relações e ao calor humano. “A diferença é que no Brasil não existe a repressão sexual.”
Mas o cineasta não parou aí: “Às vezes me pergunto o que é mais cruel: usar o véu para se cobrir ou ser obrigada a aparentar eternamente 20 anos. Vejo uma grande ansiedade nas mulheres independentes de hoje. Elas jamais alcançarão o ideal de beleza estampado nas revistas e sofrem com isso.” Nessa lógica, a disseminação da cirurgia plástica, o uso indiscriminado de Botox, Restylane e ácidos retinóicos, os milhões de tratamentos custosos para manter a juventude seriam tão abomináveis quanto a burca.
“A burca deve ser uma benção para as mulheres feias”, Hany provocou. Mas é um pesadelo pensar na quantidade de pré-adolescentes na fila do implante de silicone. “É claro que você pode sempre argumentar que aqui existe a livre escolha. Pois eu acho que essa liberdade é pura ficção; o que existe é um outro tipo de escravidão.” O Brasil vive no centro dessa febre, mas não parece ter perdido o encanto para Hany. “Pode parecer um estereótipo de gringo, mas esse é um país sensual. As mulheres andam de biquíni nas ruas, as pessoas sorriem, se abraçam, se beijam, beijam estranhos ao se cumprimentarem. Aqui ainda é possível sentir amor pelos outros.”
Estranha declaração, vinda de alguém que se define como um ex-comunista em vias de se tornar radical.
Toquei pra ele a velha marchinha carnavalesca que fala de Alá. Ficou surpreso. E na hora fez planos para tocá-la em emissoras de rádio de Nazaré:
Alá-lá-ô ô ô ô ô ô ô
Mas que calor ô ô ô ô ô ô
Atravessamos o deserto do Saara
o sol estava quente e queimou a nossa cara.
Alá-lá-ô ô ô ô ô ô ô
Mas que calor ô ô ô ô ô ô
Viemos do Egito
e muitas vezes nós tivemos que rezar
Alá! Alá! Alá, meu bom Alá
mande água pra ioiô
mande água pra iaiá
Alá, meu bom Alá
Fernanda Torres, atriz e escritora, é autora do romance Fim, da Companhia das Letras