CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Heranças queer
Em Brasília, o primeiro ballroom indígena do mundo
Thallys Braga | Edição 201, Junho 2023
Nos anos 1980, alguns inferninhos empoeirados de Nova York começaram a promover festas nas quais travestis e gays se aglomeravam para disputar quem tinha a roupa mais sofisticada, o rosto mais bonito e a expressão corporal mais inovadora. Embalados pela música house, os concursos ou “batalhas” reuniam negros e latinos organizados em irmandades, cujos líderes eram chamados de father e mother. Os bailes eram uma saída de emergência para quem sofria a rejeição não só dos heterossexuais, mas também dos gays brancos: ridicularizada na rua, uma travesti negra era digna de troféu dentro do salão.
A tendência acabou se convertendo em um movimento cultural batizado de ballroom (salão de baile). Os trejeitos afeminados desses artistas queer seriam celebrados – ou apropriados, dependendo da perspectiva de cada um – por Madonna no clipe de Vogue, em 1990, e inspirou o disco mais recente de Beyoncé. Hoje, há irmandades e campeonatos em vários países, inclusive no Brasil. Mas nunca houve um baile celebrado por pessoas indígenas – pelo menos não até abril passado, quando um ballroom foi montado na 19ª edição do Acampamento Terra Livre, o maior encontro brasileiro de etnias.
Realizado em Brasília, o acampamento incluiu a segunda plenária LGBTQIA+ dos povos originários. Depois de um dia dedicado a debates pesados sobre temas como o papel das pessoas queer na luta pela demarcação de terras, a noite foi reservada para a batalha. “DJ, solta um beat gostosinho e originário para mim”, pediu Ruan Guajajara ao microfone, abrindo o baile. O geógrafo de 28 anos é father da Casa de Onijá, única irmandade indígena e negra de ballroom de que se tem registro.
A primeira categoria da noite foi o desfile. Para vencer a competição, não bastava passear sobre o tapete. Era preciso ter carisma para conquistar os jurados e ousadia para provocar os oponentes. Em vinte minutos, o desafio foi tomado por pessoas indígenas e negras, vestindo de cocares a saltos altos. Até a deputada federal trans Erika Hilton (Psol-SP) desfilou para o júri. “Os nossos parentes ficaram pas-sa-dos com o que viram”, diz Ramona Jucá, de 23 anos, jovem não binário do povo Potiguara Ibirapi. “Foi uma coisa linda: a plateia estava cheia de anciãos e de crianças. Os curuminzinhos se jogaram com a gente na disputa”, emociona-se Fêtxawewe Tapuya Guajajara, de 24 anos, também não binário.
A Casa de Onijá – do iorubá “guerreiro” – nasceu na Universidade de Brasília, em meio às atividades culturais promovidas pelas ocupações estudantis que, em 2016, protestaram contra o corte de verbas para a educação, a medida provisória que reformou o ensino médio e os projetos de lei apoiados pelo movimento Escola sem Partido. “Organizamos uma série de oficinas na universidade e uma delas era de voguing”, lembra Ruan Guajajara. O geógrafo descobrira o voguing – estilo de dança que reproduz as poses das modelos em revistas de moda como a Vogue – em uma boate, no ano anterior, e se familiarizou com o ballroom a partir de vídeos no YouTube.
As oficinas de dança na UnB seguiram ativas depois das ocupações. Em 2017, uma estudante de biologia tornou-se assídua nos ensaios. Como os participantes do ballroom costumam ter um nome de guerra, os amigos a batizaram de Paris. Quando se descobriu uma mulher transexual, Paris tornou-se seu nome de registro. “Foi o ballroom que me deu a minha identidade”, diz ela. “Quando fui convidada para ser líder da Casa de Onijá, assumi esse papel como uma verdadeira mother. Porque as pessoas que chegam no ballroom estão frágeis, precisam de cuidados. Travesti e não binário não têm família em casa, então a gente vira a família um do outro.”
Num ensaio publicado em 1992, a teórica feminista e antirracista bell hooks faz uma crítica às casas de ballroom apresentadas em Paris Is Burning, documentário sobre o mundo gay e drag de Nova York nos anos 1980. Os entrevistados aparecem diante da câmera às vezes esbanjando glamour, outras vezes expressando um profundo descontentamento social. Para hooks, parte dessa angústia poderia ser evitada se os gays e as drag queens negras não tentassem a todo custo representar a feminilidade de mulheres brancas – se deixassem de “se esforçar tanto para imitar a cultura da classe dominante e uma elite do poder que são os agentes principais de sua opressão e exploração”. À época, o referencial de beleza dos bailes eram as modelos brancas das páginas da Vogue.
As coisas seguem um pouco diferentes no ballroom brasileiro. Por contradição ou falta de alternativa, os jovens da Casa de Onijá se inspiram justamente nos oponentes de outras irmandades nacionais. O ballroom ganhou força na cena clubber brasileira depois do sucesso da série americana Pose, que retrata o surgimento dos bailes em Nova York. Hoje, o voguing é reverenciado nas festas de techno e nas boates queer das capitais paulista e carioca. A Casa de Onijá viaja o país competindo com as irmandades, mas nenhuma outra tem as suas características. “A mother da casa é uma travesti negra e o father é um indígena guajajara”, diz Paris. “A nossa veia é a ligação ancestral.”
A última categoria do baile no Acampamento Terra Livre foi “beleza indígena”. “Convidamos todos os parentes da plateia para participar”, conta Ruan Guajajara. Havia uma certa pressão de indígenas mais conservadores para que o evento fosse logo encerrado. “Então a gente ficou surpreso quando as pessoas formaram fila para participar do desfile”, diz Ramona Jucá. “Tinha parentes de várias etnias cruzando o tapete e se exibindo para os jurados, mesmo quem não era da comunidade LGBTQIA+. Fiquei tremendo de emoção.”
Jucá diz que os indígenas não binários costumam chamar uns aos outros de Tibira, em referência a um indígena condenado à morte em São Luís do Maranhão, no século XVII. Não há um consenso historiográfico sobre a identidade sexual de Tibira. Era um homossexual? Uma travesti? “Para nós, o que importa é manter viva a memória desse corpo”, diz Ramona Jucá. “Ali, no meio daquele acampamento, os nossos anciãos ficaram sabendo que a juventude queer indígena existe. Foi o encontro deles com o nosso corpo Tibira.”