ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Hífen não é detalhe
Pode um traço de união mudar o pensamento político de um homem?
Plínio Fraga | Edição 64, Janeiro 2012
Para dizer o mínimo, Bresser-Pereira não é mais o mesmo. A partir de 2003, o primeiro ano do governo Lula, o economista paulistano passou a assinar seus livros com um espetacular traço de união interligando os dois sobrenomes pelos quais é conhecido. Aos incautos, a inclusão do sinal pode ter soado como um detalhe gráfico. Mal sabem eles o que um hífen pode fazer com um homem.
Antes do adorno, Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira foi ministro da Fazenda de José Sarney, quando apadrinhou um pacote econômico malogrado numa tentativa de conter a inflação com mais um congelamento de preços e salários. No ano seguinte, foi um dos fundadores do PSDB, ao lado de Franco Montoro, Mario Covas, Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Ainda desguarnecido de hífen, voltou à Esplanada dos Ministérios no governo de Fernando Henrique Cardoso. À frente da pasta da Reforma do Estado, foi ele quem comandou o enxugamento da máquina administrativa no primeiro mandato do tucano.
Aos 77 anos, o economista diz hoje que foi contaminado pelo neoliberalismo nos anos 90, mas há uma década iniciou uma caminhada que o reconverteu à esquerda nacionalista. Com a publicação de Desenvolvimento e Crise no Brasil: História, Economia e Política de Getúlio Vargas a Lula, festejado entre sua nova grei, o hífen de Bresser-Pereira saiu do armário – e para lá ele mandou suas convicções tucano-liberais.
A justificativa é que o hífen facilitará a identificação nas citações de seus artigos, nas quais passará a figurar como BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, em vez de PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Faz sentido, mas só agora?
Foi um Bresser-Pereira altivo e pomposo, com a confiança que só o hífen poderia lhe conferir, que adentrou os acanhados salões do Hotel Novo Mundo, no Flamengo, no Rio de Janeiro, na última semana de novembro. Acontecia ali a abertura de um seminário promovido pelo PT, PSB, PDT e PCdoB para discutir a “crise do capitalismo e o desenvolvimento do Brasil”. Foi aplaudidíssimo por decanos do pensamento econômico de esquerda. Nem lembrava o Bresser Pereira que, depauperado do hífen, foi acusado pela oposição de promover a terceirização dos serviços do Estado, acachapar salários dos servidores públicos e ajudar a estabelecer a ordem neoliberal que os tucanos vendiam como modernização.
O júbilo tomou conta da plateia quando Bresser-Pereira analisou a crise monetária da União Europeia como um problema de soberania. “Ou você tem autonomia e decide sobre sua vida ou fica na mão dos outros. Não há soberania possível se você não tem uma moeda nacional”, defendeu, afagado por sorrisos do petista Rui Falcão. Soberania, por troça do destino, era justamente a palavra de ordem que ele desdenhava nos anos 90, quando recebia dirigentes do Fundo Monetário Internacional e era vituperado pelo funcionalismo público.
Robustecido pelo traço de união, Bresser-Pereira não se intimidou durante o seminário com as diatribes de Maria da Conceição Tavares ou com as previsões apocalípticas de Carlos Lessa, que disse torcer “para que a solução dessa crise não se dê em termos de conflito mundial”. O ex-tucano, pelo contrário, vê na crise uma chance para o Brasil reverter o processo de desindustrialização, segundo ele, em curso desde os anos 90.
Diante da plateia, Bresser-Pereira optou pela tática de desancar os banqueiros e elogiar o governo Dilma – o primeiro a entender, na sua visão, a necessidade de interferir no câmbio. “É preciso colocar as taxas de câmbio e de juros no nível certo, e isso já começou a ser feito. A meu ver, o dólar tem que ir para 2,30 reais e lá ficar”, defendeu, fazendo arrepiar de emoção o bigode stalinista de Renato Rabelo, presidente do PCdoB.
Mas Carlos Lessa não estava para brincadeira. Diante da ovação reservada a Bresser-Pereira, recorreu logo a sua arma secreta: pisotear na cartola do Tio Sam. “O império continua império. O orçamento militar norte-americano supera o somatório dos nove orçamentos militares que lhe sucedem”, comparou Lessa. “Não tem G7 nem G20: o que tem é G2, que é o matrimônio de um país chamado Estados Unidos – o império – com uma periferia chamada China.”
Percebendo que as ideias em circulação ali estavam mais gastas que os cigarros em seu cinzeiro, Maria da Conceição Tavares teve saudade de seu velho adversário desifenizado. “O neoliberalismo não está morto”, diagnosticou ela. “Está com o olho muito aberto, mas entra em crise agora na Europa. O que a União Europeia está fazendo em termos de ajustes recessivos é um completo disparate, no qual a Alemanha tem muita culpa. Eles ainda vão pagar caro por essa brincadeira”, vaticinou.
Só faltava à audiência lamber os beiços de saciedade. A economista jogava em casa. Para Bresser-Pereira e seu hífen, o melhor a fazer talvez fosse sustentar em dó maior os versos consagrados por Cauby Peixoto: “Conceição/ Eu me lembro muito bem/ Vivia no morro a sonhar/ Com coisas que o morro não tem…”
“Antes, eles espirravam, e a gente pegava pneumonia. Desta vez, eles ficaram com pneumonia e nós com uma gripezinha”, prosseguiu Maria da Conceição Tavares. “O grosso dos passivos externos do país está em reais. Saímos do dólar, que é uma moeda vagabunda”, completou ela, arrancando gargalhadas dos colegas. Fora o dólar – e não a Conceição de Cauby – que “estranhos caminhos pisou” e, “tentando subir, desceu”.
Em maio do ano passado, Bresser-Pereira anunciou num artigo na Folha de S. Paulo a desfiliação partidária que consolidou a metamorfose iniciada com o hífen. “Nesses últimos dez anos, eu mudei, e o partido político que eu ajudei a criar, o PSDB, também mudou. A mudança foi tão grande que chegou a hora de dizer adeus a esse partido, e, mais amplamente, à política partidária”, escreveu.
“Nos debates que precederam a fundação do PSDB, a decisão de denominá-lo um partido social-democrático deixava claro o compromisso de centro-esquerda”, prosseguiu o articulista. Mas o partido acabou vítima de um cenário que ele prenunciou ao assinar a ata de fundação: como acontecera antes com partidos de esquerda europeus, o PT se transformou numa sigla de tintura social-democrática quando chegou ao poder e empurrou o PSDB para a direita.
Ex-tesoureiro e ex-coordenador (reparar a recorrência do hífen reformador) de campanhas tucanas, acentuou no artigo que votou em José Serra nos dois turnos da eleição de 2010, chamou Fernando Henrique de “notável homem público e amigo” e honrou a memória de Mario Covas e Franco Montoro, “dois estadistas”. Mas se anunciou “livre de compromissos partidários”, aposentado dos cargos públicos e comprometido com seu novo papel de “intelectual público independente”.
Bresser-Pereira é um homem tranquilo, bem-humorado e de interesses plurais. Casado há 54 anos e pai de cinco filhos, diverte-se atualizando um site que leva seu nome, embora o endereço não tenha hífen. Ali, escreve sobre cinema, uma paixão antiga. A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, ganhou dele cinco estrelas e o comentário: “Nossa identidade é sagrada.” Árvore da Vida, de Terrence Malick, mereceu apenas quatro: “Para descobrir o sentido da vida, é preciso recusar todas as obviedades.”
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