No Brasil, calcula-se que 13 milhões de pessoas sofram de doenças raras, cujas causas são sobretudo genéticas. Como muitas vezes parecem doenças comuns, seu diagnóstico é bastante difícil CREDITO: BETO NEJME_2021
Histórias raras
A solidão de quem tem doenças muito incomuns
Fernanda Ferrairo | Edição 176, Maio 2021
“Acredito que uma pessoa sempre pode fazer algo com o que foi feito dela.”
Jean-Paul Sartre
No Carnaval de 2018, o estudante de jornalismo Edson Benedito Lima Filho saiu para se divertir com os amigos nas ruas de Teresina, sua cidade natal. “Na sexta-feira e no sábado, bebi muito, dancei muito, andei muito, me diverti muito, como fazia em todo Carnaval.” Na madrugada de sábado para domingo, ele notou que suas pernas estavam inchadas. Achou estranho e ficou assustado. Com 20 anos de idade, Lima Filho era uma pessoa saudável e nunca tivera nenhuma doença grave. Seus pais aconselharam que ele colocasse os pés numa bacia com água morna, o que ele fez.
No domingo, Lima Filho voltou ao Carnaval, mas não bebeu nem andou muito, pois suas pernas continuavam inchadas. No dia seguinte, segunda-feira, sua mãe sugeriu que fosse a um hospital. Apesar do inchaço, ele não sentia dores – e preferiu não ir. Achou que tudo não passava de um incômodo que acabaria logo.
Na quinta-feira, como o inchaço persistisse, Lima Filho resolveu consultar um angiologista, cuja especialidade é o sistema vascular. Para saber se não se tratava de uma trombose – a formação de um coágulo no vaso sanguíneo –, fez alguns exames, entre eles uma ultrassonografia dos membros inferiores. “Os exames vieram normais”, contou Lima Filho. “Então, o médico disse que não devia ser nada, que aquilo talvez estivesse acontecendo porque eu ficava muito tempo sentado.”
Para o estudante, a explicação pareceu insuficiente, porque ele não mudara seus hábitos nos últimos tempos nem costumava ficar muito tempo sentado. Lima Filho resolveu procurar uma segunda opinião médica. Foi a outro angiologista. O médico observou os exames anteriores e acalmou o paciente, dizendo que não havia nada com o que se preocupar. Recomendou apenas mais atividades físicas e o uso de meias elásticas de compressão para as pernas.
Lima Filho voltou à vida normal, às aulas na faculdade de jornalismo na Universidade Federal do Piauí e ao estágio em uma agência de publicidade. Em meados de março, viajou a São Paulo e ao Rio de Janeiro para assistir aos shows da cantora Katy Perry, de quem é fã. Foram dias de intensa agitação física, mas ele nunca dispensou as meias elásticas, como recomendado pelo médico. Quando se preparava para voltar a Teresina, entretanto, não conseguiu calçar os tênis: seus pés estavam tão inchados que não cabiam no calçado. Ele precisou fazer o voo de volta com chinelos. Nos dias seguintes, reparou que estava engordando muito. Enquanto isso, suas pernas só pioravam.
Na primeira semana de junho, Lima Filho apresentou sintomas do que parecia ser uma gripe: dor no corpo, dor de cabeça, febre, insônia e falta de apetite. Durante três dias, ele se automedicou. Na manhã da quarta–feira, ao despertar, viu-se incapaz de se levantar da cama. Precisou da ajuda dos pais. “Eu não conseguia me mexer. A dor no corpo era como a de alguém que acabou de levar uma surra com uma barra de ferro.” Em nenhum momento ele relacionou os novos sintomas com o inchaço nas pernas.
Seus pais o levaram ao pronto atendimento de um hospital. O médico plantonista fez os exames de rotina e deu um diagnóstico provisório: disse tratar-se apenas de uma virose, para a qual bastavam alguns remédios e repouso. Quatro dias mais tarde, a situação piorou. Além do mal-estar, Lima Filho começou a ter falta de ar e crises de vômito. Foi levado a nove prontos-socorros, que repetiram o diagnóstico: virose. Ele acabou desistindo dos hospitais e marcou uma consulta com um psiquiatra. “Eu achei que estivesse com uma crise de ansiedade.” O psiquiatra, contudo, descartou essa hipótese e recomendou que Lima Filho recorresse a outros médicos.
Foi o que ele fez. Consultou-se com 21 especialistas. Tudo que constataram foi que o estudante estava com uma retenção hídrica fora do comum. Havia excesso de líquido em seus pulmões, no abdômen, nas pernas, no coração. Desconfiaram que a causa fosse lúpus, uma doença autoimune. Não era. Talvez algum tipo de alergia. Também não. Realizaram exames para diagnosticar o HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Não encontraram sinal de nenhuma. Lima Filho visitou até mesmo uma nutricionista que recorria a tratamentos extravagantes, como projetar luz ultravioleta sobre o corpo para alinhar os chacras, e um botânico especializado em “casos estranhos”, que recomendou chá de beterraba, alho e cebola. Ele seguiu a orientação, mas a cada dia ficava mais debilitado.
Como não tinha força para andar, Lima Filho precisou recorrer a uma cadeira de rodas. Os pais o ajudavam a tomar banho. Também estava mentalmente exausto. Durante uma consulta, seu psiquiatra resolveu ligar para o nefrologista Igor Denizarde Bacelar Marques, que indicou o neurologista Irapuá Ferreira Ricarte, chefe da UTI do maior hospital do Piauí, o São Marcos. Uma consulta foi marcada para 29 de junho de 2018.
“O dr. Irapuá ficou chocado com a irresponsabilidade dos outros médicos, porque, segundo ele, se tratava claramente de uma doença neurológica”, disse Lima Filho. O neurologista pediu que fosse feita, imediatamente, uma eletroneuromiografia, exame para testar a condução do impulso nervoso pelo corpo. Após duas horas de exame minucioso, o médico não pestanejou e decidiu pela internação. No mesmo dia, quase quatro meses desde que tivera os primeiros sintomas e após passar por 23 médicos, Lima Filho foi hospitalizado com a suspeita de estar sofrendo da síndrome de Guillain-Barré, uma doença neurológica de origem autoimune.
Nas doenças autoimunes – que geralmente são crônicas e ainda não têm cura, apenas tratamento –, as células responsáveis pela defesa do organismo e que deveriam atacar vírus, bactérias e demais invasores sofrem uma pane e começam a combater as células saudáveis do corpo. No caso da síndrome de Guillain-Barré, o portador produz anticorpos que atacam as bainhas de mielina – as fibras que recobrem os neurônios –, dificultando ou impedindo a transmissão do impulso nervoso. A doença causa fraqueza muscular progressiva e pode levar à paralisia completa dos músculos.
Embora alguns dos sintomas de Lima Filho não coincidissem com os da síndrome, os médicos decidiram realizar o tratamento indicado para o caso, com o uso de imunoglobulina. Cada frasco custava mais de 1 mil reais, e Lima Filho precisaria de mais de vinte doses para todo o tratamento. “Era um dinheiro que eu e a minha família não tínhamos.” Depois de uma longa negociação com o plano de saúde, ele conseguiu a cobertura. Também tomou diuréticos e fez fisioterapia. Os diuréticos eliminaram o acúmulo do excesso de líquido nos tecidos, e logo ele emagreceu 20 kg. “Fiquei seco. Quase não me reconhecia no espelho. Todo aquele peso que eu tinha ganhado nos últimos meses era retenção de líquido.” Mas, fora isso, ele não teve nenhuma melhora.
No hospital em que estava internado, Lima Filho recebeu a visita dos mais variados especialistas, pois havia se tornado uma curiosidade médica, devido ao diagnóstico incerto e difícil. “Alguns apareciam lá só para conhecer o meu caso, que estava com o diagnóstico em aberto.” Além de Ricarte, também Denizarde se interessou em investigar o caso a fundo. Depois de muita pesquisa, os dois médicos levantaram uma nova hipótese: Lima Filho tinha beribéri.
Beribéri é uma doença causada pela falta de vitamina B1 no organismo. É muito rara hoje em dia no Brasil, apesar de ter sido comum no passado, em razão das condições de vida dos pobres no país. O beribéri geralmente afeta pacientes com carência nutricional grave ou alcoólatras crônicos. Também pode ser consequência de hipertireoidismo ou insuficiência renal. Em raríssimos casos, tem origem genética – a pessoa simplesmente não consegue absorver a vitamina B1.
Lima Filho não se enquadrava no perfil de portador da doença. Mesmo assim, os médicos resolveram fazer o teste, pois àquela altura toda hipótese era válida e o estudante continuava a piorar. “As minhas noites eram um inferno. Eu não conseguia dormir por causa da dor. Chorava. Foram as piores dores que já senti na vida”, ele descreveu. “Eu precisava de muitos remédios para controlar a dor, remédios que me deixavam nauseado. Então tinha que tomar outros para acabar com a náusea também. Até o frio do ar-condicionado me causava uma dor inexplicável. Nada podia tocar meus pés, nem o lençol da cama. Além disso, toda a minha mobilidade estava comprometida.”
O tratamento para beribéri foi iniciado antes mesmo da chegada do resultado dos exames, que precisaram ser enviados de Teresina para um laboratório em Belo Horizonte. Lima Filho recebeu vitamina B1 endovenosa. Três dias depois, a dor começou a amenizar, e ele pôde dormir mais tranquilamente. Em uma semana, já conseguia tocar nos pés sem sentir dor. Tudo parecia estar indo bem, com a esperança deste diagnóstico: só podia ser beribéri.
Ocorreu, porém, um imprevisto. O laboratório em Belo Horizonte perdeu a amostra do exame, e os médicos não tinham como fazer uma nova coleta de sangue, pois Lima Filho já fizera alguma reposição da vitamina e, por isso, o resultado não seria fidedigno. O estudante se desesperou. “Me lembro bem desse dia e de como foi horrível.” Ele recebeu alta no dia 23 de julho de 2018 com um diagnóstico provisório. “Como se fosse beribéri, mas sem ter certeza se era.”
Lima Filho estava otimista porque o tratamento vinha funcionando, mas permaneceu aflito por não ter uma resposta definitiva. “Aquela melhora que eu tive poderia ter sido coincidência.” Aqueles meses de apreensão, mas também de confiança, por causa dos bons resultados do tratamento, ficaram marcados em sua memória. Foram os mesmos meses em que ele precisou reaprender a andar. “A fisioterapia foi algo muito marcante para mim. Andar é a coisa mais difícil desse mundo.”
Um ano depois de deixar o hospital, o diagnóstico definitivo finalmente chegou: era mesmo beribéri. A causa dessa deficiência de absorção da vitamina B1 ficou indefinida no caso dele. Também não se sabe por que ela se manifestou naquele momento. Pouco a pouco, Lima Filho retomou a vida normal. O tratamento da doença, porém, continuou – e continuará indefinidamente. Hoje com 23 anos, ele ainda carrega algumas sequelas, que um diagnóstico precoce teria evitado: seus reflexos físicos e sua mobilidade não são como antes, às vezes tem espasmos musculares nas pernas e perde a sensibilidade nos pés, eventualmente sente dores.
A percepção que ele tinha da saúde e da vida mudou inteiramente. “Eu estava no auge da minha juventude e perdi tudo. Antes eu era livre e, de repente, já não conseguia pegar um copo d’água. Tive que reaprender a andar, o que mexeu muito comigo, com minha autoestima e meus valores. Quando você perde tudo, percebe o quanto algumas coisas importam e outras, não. Por que eu passei tanto tempo me preocupando com coisas que hoje percebo que são tão irrelevantes? Isso mudou muito minha visão de mundo. Hoje eu tenho fé. Eu fui obrigado a ter fé. A gente se apega a qualquer coisa quando perde tudo. Ou eu tinha fé ou não tinha nada.”
Thaisa Assis tinha acabado de fazer 16 anos e se sentia meio prostrada. Achou que era por causa dos problemas que atravessava na época, os primeiros dias de 2002. “Não foi um bom período. Meus pais tinham acabado de se separar, eu tinha me mudado, não estava comendo bem e me sentia sempre meio desanimada”, contou. Um dia uma de suas tias olhou fixamente para ela e disse: “Seus olhos estão amarelados.”
A tia comentou que os olhos de seu filho tinham ficado do mesmo jeito quando ele teve hepatite A e recomendou que a sobrinha se alimentasse bem, ficasse em repouso e tivesse paciência, que logo aquilo acabaria. Assis seguiu as recomendações. Mas as semanas passaram e ela não melhorou. Aconselhada pelo irmão, que é médico, procurou um infectologista. Os exames apontaram que ela tinha, de fato, uma hepatite A, talvez na forma colestática, mais rara e mais danosa, podendo levar à falência do fígado.
O médico recomendou que Assis continuasse com os cuidados que vinha tendo e esperasse, fazendo exames periódicos, até que seu corpo se livrasse do vírus. Ela, no entanto, foi ficando mais e mais prostrada, o seu abatimento geral era enorme. Apesar de mais perigosa, a hepatite A colestática normalmente é curada em algumas semanas. Como isso não ocorreu, o diagnóstico foi descartado.
Assis, então, procurou outros médicos e fez inúmeros exames, até toxicológicos. “Um médico perguntou à minha mãe se eu estava usando drogas, sendo que eu nem bebia. Para os médicos eu era um caso, não uma pessoa. Era um caso sem diagnóstico que piorava progressivamente. Apesar do apoio da minha família, eu me sentia sozinha e desamparada.”
As coisas começaram a mudar em agosto de 2002, quando Assis se consultou com um respeitado hepatologista – médico especializado em problemas do fígado. Após examiná-la e vasculhar a pilha de exames, ele disse que todos os sinais indicavam tratar-se de uma hepatite autoimune. Como o beribéri, a hepatite autoimune é uma doença rara.
Para verificar se Assis de fato sofria de uma hepatite rara, o hepatologista pediu uma biópsia do fígado. Constatou que o órgão estava bastante danificado e tinha atingido o grau 4 na escala de 1 a 6 com que a medicina avalia a degeneração do fígado. Se ela tivesse demorado mais um mês ou dois para iniciar o tratamento, teria sofrido um dano irreversível e precisaria entrar na fila de transplante. “Depois de algum tempo, minha mãe me confessou que minha família estava com medo de que eu morresse. Eu não tinha esse medo. Meu medo era só do dia seguinte. Tinha um mal-estar físico constante, não dormia bem, não comia direito, não fazia nada bem.”
Assis estava no terceiro ano do ensino médio e iria fazer vestibular. Mas parou de estudar e praticamente se trancou em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro. “Era horrível sair à rua, porque as pessoas ficavam me olhando por causa da icterícia, que chama muita atenção. Então perdi minha vida social. Não tinha mais condições de ir ao colégio. Parei de estudar e fiquei só em casa. Quando eu acordava, me olhava no espelho, esperando ver alguma melhora. Mas estava sempre na mesma. Ou tinha piorado.”
O hepatologista disse que em aproximadamente dois meses ela começaria a sentir os efeitos do tratamento com corticoides e imunossupressores. E ocorreu como previsto. A icterícia abrandou e, um mês mais tarde, já havia sinais de melhora, inclusive no aspecto físico.
Durante dois anos, Assis tomou remédios todos os dias e fez exames periódicos. Depois desse período, uma nova biópsia mostrou que ela estava melhorando. Como ficou difícil arcar com as despesas crescentes com o hepatologista, ela recorreu aos médicos do plano de saúde. “Eu sabia mais sobre a doença do que eles. Acabei me acompanhando sozinha, e meu irmão médico pedia os exames.” Quando Assis tentou deixar os remédios para o fígado, as enzimas hepáticas voltaram a subir – e ela retomou o tratamento. Hoje precisa tomar os remédios apenas uma vez por semana. Seu fígado levou seis anos para se reestabelecer. “Eu me preservei muito. Fui tomar minha primeira cerveja com 24 anos.”
No entretempo, sua situação psicológica se complicou. “Entrei em negação total da minha doença durante certo período”, contou Assis, hoje com 35 anos. “Tive uma fase de descontrole em relação à bebida e cheguei até a usar drogas. Estava cansada, não queria mais investigar minha doença. Mas não deixei de tomar os remédios.” No ano passado, quando estava grávida, ela abandonou o plano de saúde e passou a fazer o acompanhamento pelo SUS. “Minha vida é normal, mas a doença me acompanha como um fantasma. Qualquer coisa que aconteça com a minha saúde, eu preciso avisar os médicos. Logo, as abordagens terapêuticas mudam. Mesmo se tiver uma infecção urinária, preciso avisar.”
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como “raras” as doenças que, num grupo de 100 mil pessoas, afetam no máximo 65 delas (ou 0,065%). No Brasil, calcula-se que 13 milhões de pessoas padeçam dessas doenças, cujas causas são sobretudo genéticas (80% dos casos), mas também infecciosas, imunológicas ou ambientais, entre outras. Estima-se que existam entre 6 mil e 8 mil tipos de enfermidades raras e, como elas costumam parecer doenças comuns, seu diagnóstico é bastante difícil. Todas pioram progressivamente e podem levar à degeneração e à incapacitação da pessoa, causando-lhe enorme sofrimento, tanto do ponto de vista físico como psicológico. Os efeitos sobre a vida familiar e social também podem ser terríveis.
Enquanto escrevia este texto, eu me deparei com uma série chamada Diagnóstico (Netflix), baseada na coluna homônima publicada pela médica Lisa Sanders no New York Times. Sanders escreve sobre casos de difícil diagnóstico, como as doenças raras, a partir de relatos enviados pelos leitores. São pessoas que têm sintomas aparentemente desconexos e, às vezes, já passaram por vários médicos, sem obter um diagnóstico definitivo. Por isso, estão sem tratamento ou fazendo tratamento paliativo. Sanders faz uma entrevista meticulosa com o doente, pede a opinião de especialistas para ajudar a entender o caso e conta a história no jornal, em linguagem médica acessível.
Como ela recebe inúmeras mensagens depois da publicação, enviadas por pacientes e por médicos especialistas, Sanders acaba por fazer uma ponte entre os doentes e os profissionais da saúde, e entre os pacientes uns com os outros. Há certos pacientes que, embora já saibam seu diagnóstico – que são às vezes de doenças raras –, mesmo assim escrevem para ela, apenas porque se sentem sozinhos e querem encontrar outras pessoas para trocar experiências. Graças ao alcance do New York Times, a coluna parece um consultório online do tamanho do mundo. Uma rede assim é algo que faz falta no Brasil.
O país dispõe, entretanto, de algo que me impressionou. Quando eu buscava histórias de pacientes com doenças raras, o dr. João Felix Araújo, especialista em medicina de família e comunidade, me falou a respeito do Instituto Vidas Raras, uma ONG onde ele trabalha como voluntário. Entrei em contato com Regina Próspero, 54 anos, vice-presidente da entidade, para conhecer sua história.
Em 1988, Nilton, o primeiro filho de Próspero, nasceu com uma doença genética rara chamada mucopolissacaridose. A MPS, como é conhecida, causa uma série de alterações no organismo, em forma leve, moderada ou grave. Podem ocorrer alterações no desenvolvimento dos ossos, atraso do desenvolvimento mental, disfunções motoras, deficiência auditiva e visual, doenças renais e cardíacas, entre outros problemas. Poucos médicos conheciam a doença na época, e as medicações necessárias para o tratamento não estavam disponíveis no Brasil. Um ano e três meses depois do nascimento de seu primeiro filho, Próspero teve Luís Eduardo, que também nasceu com a doença. Apenas o terceiro, Leonardo, foi poupado pela genética.
Nilton morreu aos 6 anos, em decorrência de complicações da MPS. Em 2001, Regina e seu marido, Nilton Próspero, se reuniram com outros pais de portadores da doença e criaram a Associação Paulista dos Familiares e Amigos de Portadores de Mucopolissacaridose (APMPS). O objetivo da associação era buscar e divulgar informações a respeito da doença, além de apoiar os pacientes e seus familiares. “Como nosso trabalho foi crescendo de forma muito rápida e bem-sucedida, pessoas com outras doenças vieram pedir ajuda”, contou Regina Próspero. Foi isso que estimulou a associação a se transformar no Instituto Vidas Raras, que tem três pilares: viabilizar o conhecimento e o acesso aos tratamentos disponíveis para a mucopolissacaridose e as doenças raras em geral, divulgar informações e buscar a adoção de uma política nacional de atenção a essas enfermidades.
Com a evolução da mucopolissacaridose, Luís Eduardo Próspero perdeu a visão e a audição. Mas, após ser inscrito como voluntário em uma pesquisa baseada em reposição enzimática, ele recuperou a audição em 2004. Quando foi fazer vestibular, decidiu-se pelo curso de direito. Uma vez que a faculdade não se sentia confortável em deixá-lo sozinho nas atividades por causa de algumas deficiências físicas, como a visual, sua mãe resolveu fazer o mesmo curso, que iniciaram em 2008. Formaram-se em 2012. Hoje, Luís Eduardo, 31 anos, é funcionário público concursado em Itápolis, no interior de São Paulo, e é voluntário no Vidas Raras. Sua mãe não quis exercer a advocacia, mas conta que o curso de direito foi fundamental para que ela ajudasse o instituto a ter sucesso.
A fim de tentar trazer novas pesquisas clínicas para o Brasil, as pessoas ligadas à entidade se aproximaram de políticos e do governo, com os quais começaram a se reunir a partir de 2001. “Brasília não sabia o que era uma doença rara. Não conhecia nada a respeito”, disse Próspero. Em março de 2011, ela e outros membros do Vidas Raras foram recebidos pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha. “Depois da nossa conversa, nunca mais faltou remédio para os assistidos da associação.” Ela também disse ao ministro que era preciso haver no país um local que, por lei, acolhesse melhor os pacientes. Em 30 de janeiro de 2014, Padilha assinou a Portaria 199, instituindo uma política nacional de atenção às pessoas com doenças raras e estabeleceu diretrizes para o tratamento delas pelo SUS.
Foi assim que me dei conta de que as diretrizes que encontrei sobre doenças raras no Brasil, muito antes de conhecer Regina Próspero, eram em boa parte iniciativa dela e do Instituto Vidas Raras. Foi o trabalho de uma mãe, que se transformou no de um pequeno grupo de pais, que se transformou no de uma ONG, que se transformou no de um órgão responsável por mudanças efetivas no âmbito do SUS.
A ONG, com sede em Guarulhos, na Grande São Paulo, possui um compêndio de doenças raras, publica uma revista e atende cerca de 1 mil ligações mensais por meio do Linha Rara, um número de telefone mantido em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. Também tem parceria com 84 instituições que cuidam de doenças raras e grupos de pacientes, no Brasil e no exterior. Em 2019, participou de um painel sobre doenças raras nas Nações Unidas. “Foi importante, pois o Brasil nunca teve representatividade dentro da ONU para a questão da doença rara”, afirmou Próspero. Hoje, a ONG é a maior rede de transmissão de informações sobre doenças raras na América Latina.
As histórias de Edson Benedito Lima Filho, Thaisa Assis e dos filhos de Regina Próspero têm semelhanças com a minha. Nos últimos dez anos, senti na pele o que eles sentiram. Tenho 32 anos, sou médica, vivo em Presidente Prudente, no interior de São Paulo, e tenho uma doença rara chamada aracnoidite adesiva.
Em 2010, eu tinha 23 anos e era uma pessoa saudável. Três dias antes da minha formatura em medicina, sofri um acidente: caí da escada de casa e fraturei o cóccix – aquele pequeno osso no extremo inferior da coluna vertebral, na região onde começam as nádegas. A partir de então, passei a ter uma dor crônica no local. Como Lima Filho e Assis, consultei diversos médicos e recebi os mais variados diagnósticos, inclusive o de que a dor tinha fundo psicológico.
Precisei fazer uma cirurgia para a retirada do cóccix, o que talvez ajudasse a amenizar a dor. E uma segunda cirurgia, para retirar fragmentos ósseos remanescentes. E uma terceira, para tentar aliviar a dor, que não ia embora. E uma quarta, para implantar na região um neuroestimulador elétrico que deveria mitigar a dor. E mais uma, para retirar o aparelho, que não funcionou. No total, fiz sete cirurgias na coluna.
Em uma delas ocorreu um erro, no exato momento em que penetrou no espaço epidural da minha medula espinhal a agulha para injetar o anestésico ou, o que é mais provável, o cateter com o corticoide, um medicamento anti-inflamatório.
A medula espinhal vai desde perto do crânio até as primeiras vértebras lombares, protegida pelo canal vertebral. Ela é responsável pela inervação de todo o nosso corpo. A envolvê-la existem três membranas (ou meninges): a pia-máter, que é a mais recôndita, a aracnoide e a dura-máter, que é a mais externa. Espaço epidural é o nome que se dá ao intervalo entre a dura-máter e as paredes do canal vertebral. O cateter com o corticoide, provavelmente, atravessou o espaço epidural do meu sistema nervoso e foi mais longe do que deveria: alcançou a dura-máter e causou ali uma ruptura. Mesmo que tenha sido uma ruptura milimétrica, foi suficiente para que o corticoide entrasse onde nunca poderia ter entrado.
Meu organismo reagiu à agressão com um processo inflamatório devastador. Comecei a sentir dores terríveis logo no período pós-operatório. Imaginei que fossem causadas pela cirurgia e passariam com o tempo. Mas não passaram. Eram tão fortes que eu me ajoelhava no chão e, apesar de ser agnóstica, pedia a Deus para morrer. Nenhum medicamento me ajudava, nem a morfina nem os opioides mais poderosos. Ninguém sabia o motivo dessa dor, que antes era só na região do cóccix e agora havia se espalhado para o restante da coluna e se estendido a alguns membros.
Além da dor enlouquecedora, com ondas de choque e queimação, passei a ter fraqueza muscular em um lado do corpo. Outros sintomas esquisitos vieram no pacote: um zumbido muito alto nos ouvidos, febre baixa constante, inchaço nas mãos e nos pés pela manhã, dores articulares, alergias dermatológicas estranhas, espasmos musculares, crises noturnas de suor, sensação de água escorrendo pelas pernas, alternada com formigamentos inexplicáveis. Uma tireoidite autoimune – doença rara que afeta a glândula tireoide, causando dores fortes, além de alterações na produção dos hormônios tireoidianos – me tirou muitas noites de sono (só mais tarde descobri, em pesquisas que fiz, tratar-se de uma tireoidite de De Quervain, cuja manifestação é, hoje em dia, um critério para se diagnosticar a aracnoidite adesiva).
Na época, tudo isso parecia estar desconectado. Além do mais, grande parte dos sintomas era impossível de ser comprovada, e os que eram ninguém relacionou com o que eu realmente tinha. O fato de a doença ter sido causada por iatrogenia, ou seja, um tratamento médico errado, também atrapalhou. Que médico desejaria fazer o diagnóstico de uma doença provocada pelo erro de um colega?
Durante anos, os médicos me viraram de cabeça para baixo, escarafunchando as imagens das múltiplas intervenções realizadas na minha coluna e as minhas hérnias de disco. Eles simplesmente não conseguiam encontrar uma razão para meus males. Enquanto isso, a dor e os demais sintomas continuavam a piorar.
Procurei ajuda nos Estados Unidos e na Alemanha. Um médico norte-americano especialista em patologias neurológicas medulares apontou, pela primeira vez, que os exames de ressonância magnética indicavam fortes sinais de aracnoidite adesiva, pois essa doença deixa os discos da medula muito frágeis. Até então ninguém havia feito a conexão dos sintomas que eu tinha – entre eles a fragilidade dos discos – com essa enfermidade que consiste num processo inflamatório envolvendo a região da dura-máter, da aracnoide e a medula espinhal, devido à invasão do espaço subdural.
Mas eu já desconfiava que tivesse essa doença, depois de passar longas noites insones pesquisando em artigos científicos. Sempre que podia, tocava no assunto com os médicos, que me olhavam espantados, porque nunca tinham ouvido falar a respeito, ou me asseguravam de que eu não tinha nada disso. Depois de meu retorno do exterior, médicos que consultei chegaram a dizer que a opinião do especialista estrangeiro tinha um “viés de confirmação” de um desejo meu, como se eu quisesse ter essa doença, como se desejasse ser uma pessoa doente. Mesmo alguns dos meus parentes pensavam assim, embora hoje façam de conta que não. Eu evito tocar no assunto com eles, apesar da mágoa que ainda carrego: minhas dores físicas superam em muito as dores emocionais.
A grande dificuldade para fazer o diagnóstico da aracnoidite adesiva é que se trata de uma doença que raramente é visível nos exames de imagens, como dizem os livros médicos jurássicos. Por isso, o protocolo para o diagnóstico hoje é outro, essencialmente clínico, baseado em achados (que são essencialmente sinais e sintomas) e na história clínica do paciente. Ainda assim, aquele especialista estrangeiro conseguiu enxergar a doença nas minhas ressonâncias e juntar as peças do quebra-cabeça. Não fosse isso, até agora eu estaria sendo jogada de um lado para o outro, recebendo tratamentos paliativos e, às vezes, sendo tachada de doida, mesmo que não abertamente.
Os médicos encontravam maneiras educadas de tocar no assunto. “Você está passando por algum problema pessoal? Como médica, você sabe que a dor emocional pode afetar nossa dor física também”, disse um deles. Embora isso seja verdade, não era o que acontecia comigo. E o comportamento de alguém com dor pode suscitar mal-entendidos. Se a pessoa sorri, mesmo quando está sofrendo, é porque não deve estar tão mal assim. Se a pessoa chora o dia todo, reclama e se contorce de dor a cada movimento, deve ser porque tem um temperamento negativo e fraco, com tendência a ficar reclamando e se lamentando.
A dor é invisível, afinal. Essa é sua faceta mais cruel. Ela poderia aparecer na ressonância, no ultrassom, na radiografia, na pele. Mas não aparece. É complicado convencer alguém de que você está sofrendo quando nada se vê nos exames (pois também as lesões nem sempre são visíveis). A invisibilidade da dor é uma das injustiças da natureza. Para tornar as coisas um pouco mais justas, quem sofre tenta fazer com que a dor permaneça restrita ao seu mundo e, mesmo invisível, não atrapalhe o humor, a paciência e a resiliência necessários para continuar vivendo. O que nem sempre é possível.
Só depois de quatro anos da cirurgia que a causou, minha doença foi confirmada no Brasil. Por existir um componente autoimune muito forte na aracnoidite – o que poucos médicos sabem –, uma reumatologista e um neurologista de São Paulo que trabalham com doenças raras conseguiram fechar o diagnóstico. E dessa vez havia provas: exames laboratoriais certificando a existência de atividade autoimune exacerbada não só na minha medula, mas no corpo todo.
Durante anos dividi meu tempo entre a casa e o hospital onde me tratava, sem ter saúde física nem mental para trabalhar. Como fiquei doente logo após a formatura, não pude exercer a medicina como eu ambicionava nem me especializar. Hoje, trabalho como emergencista em regime de plantão, sempre curto (de seis a doze horas, no máximo) e em locais pouco movimentados – onde posso fazer pausas entre um atendimento e outro. Mas não consigo trabalhar dois dias consecutivos. Acabei me afeiçoando muito a esta área – a medicina de emergência –, apesar de não ter especialização nela. Se, porventura, surgir um tratamento mais eficaz para a minha doença, é nisso que pretendo me especializar. Também escrevo textos de divulgação científica. A escrita me proporciona uma válvula de escape que nenhuma outra atividade faz.
As dores nunca deram trégua e são constantes. A intensidade varia conforme o esforço físico que faço e alguns outros fatores. Se eu passar o dia todo deitada em uma cama confortável, a dor diminui. Se eu precisar ficar sentada, aumenta. Se tiver que andar, tomar banho ou dirigir, fica ainda pior. A dor não se manifesta numa parte específica do corpo. Pode surgir nas costas, nas mãos, no torso. Em mim, geralmente, ela é mais forte nas costas, pernas e pés. Hoje, por causa dos diversos tratamentos, consegui reduzi-la em cerca de 40% a 50%.
A aracnoidite não tem cura, e o tratamento é paliativo. Ainda não se compreende bem os mecanismos da reação autoimune, mas no meu caso tudo foi desencadeado quase certamente pelo acidente na cirurgia. Durante o tempo que vivi sem poder praticar a medicina, escrevi sobre a minha doença e encontrei vários companheiros que sofriam de dores crônicas e enfrentavam uma luta parecida com a minha, no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, na Austrália… Nós nos apoiamos mutuamente. Também perdi companheiros. Nem todo mundo consegue conviver com uma dor tão dilacerante, ainda mais quando não se sabe quanto tempo ela vai durar. A falta de esperança é, de longe, o pior aspecto da doença sem cura. Quando vai passar? Será que vai passar? Será que vai, ao menos, abrandar? Não sabemos.
Fico feliz e até orgulhosa de mim mesma por ter suportado tudo isso durante dez anos e descoberto que, sim, eu iria melhorar. Não sou a mesma pessoa de antes da doença, minha vida mudou para sempre – mas continuo viva, afinal.