ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Homem nunca mais
Consertos domésticos femininos
Paula Scarpin | Edição 110, Novembro 2015
Ana Luisa Correard tocou a campainha e foi recebida com entusiasmo por duas garotas de cabelos curtinhos, à la garçonne, dois gatos e um cachorro. “Vocês precisam conhecer meu brinquedo novo!”, disse a visitante assim que entrou no apartamento, puxando uma mala roxa de rodinhas cheia de apetrechos. Num movimento rápido, como quem tira um coelho da cartola, a moça sacou lá de dentro uma furadeira profissional – gesto que foi recebido com palmas e júbilo coletivo. “Agora, vai”, sentenciou, enquanto afastava o rack da parede e procurava uma tomada. O móvel deslocado abrigava, além da televisão, uma fileira de livros – entre os quais se destacava O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir.
Apesar da aparente intimidade, aquele era apenas o segundo encontro entre o casal e Correard, uma moça de 27 anos, baixinha, com cara de menina e cabelos pretos lisos, cortados um pouco acima dos ombros. As donas da casa haviam visto um anúncio de seus serviços de faz-tudo num grupo do Facebook. A oportunidade para contratá-la não demorou a aparecer. Bolaram um mimo para os gatos, umas caixinhas almofadadas, e queriam fixá-las na parede, como prateleiras. Na visita anterior, uma outra furadeira de Correard não dera conta do recado, daí a alegria com a nova ferramenta, mais potente. “Era meu objeto de desejo fazia tempo, só precisava mesmo de um impulso”, contou. “Além disso, é importante reinvestir o que eu ganho em meu próprio negócio.”
A microempresa M’Ana mal tinha dois meses de existência naquele começo de outubro. Formada em cinema pela Universidade Federal de Pelotas, até agosto Correard trabalhava como cinegrafista e editora numa pequena produtora em São Paulo. A ideia de oferecer serviços de conserto doméstico havia surgido pouco tempo antes, quando ela teve que receber, em casa, um entregador de botijão de gás. A moça disse ter estranhado o modo como o rapaz espichava o pescoço para dentro dos quartos. “Fiquei repetindo para mim mesma que era maluquice. Mas ele foi logo perguntando se eu estava sozinha. Dei um jeito de dispensá-lo o mais rápido possível”, lembrou.
Incomodada com a sensação de vulnerabilidade, Correard fez um desabafo no Facebook, lamentando não haver um serviço de entregas realizado exclusivamente por mulheres. Não imaginava que a ideia fosse receber tanto apoio entre as amigas, que também inundaram a seção de comentários com as mais diversas histórias de assédio. Logo Correard sentiu palpitar uma veia empreendedora até então desconhecida. “A primeira coisa que eu pensei foi: vou fazer um serviço de entregas variado, só de mulheres para mulheres. Gás, água, comida”, contou.
Como a logística do negócio se mostrasse complicada – ela precisaria de uma rede de fornecedores, carro e muita força física –, acabou se decidindo pelo ramo dos consertos. Criada por um avô habilidoso e com um primo eletricista por perto, Correard havia aprendido a resolver sozinha qualquer abacaxi doméstico, desde pintar o quarto até trocar a fiação da casa toda quando se mudou para São Paulo.
Uma amiga designer se dispôs a desenhar o logo da empresa, que a dona batizou de M’Ana – marca que evoca seu próprio nome, a gíria da periferia e a irmandade feminina. No desenho que passou a ser a identidade da firma, o nome é atravessado pelo símbolo de Vênus e do sexo feminino. A amiga designer também bolou um slogan: “Omi estranho em casa nunca mais!”
Correard postou um anúncio da M’Ana em sua linha do tempo no Facebook, e também em algumas páginas de grupos feministas. Logo começaram a surgir pedidos de orçamento. Muitos. “Eu tento cobrar bem abaixo do mercado”, ela disse. “Quando a cliente quer, também ensino a fazer. A ideia é empoderar as mulheres.”
Há entre as clientes de Correard quem a empregue por razões ideológicas, por querer valorizar o trabalho de mulheres. Outras, entretanto, contaram histórias de traumas com homens, contratados ou não para serviços. Uma moça, vítima recente de violência sexual, não conseguia sair de casa havia meses e estava tomando banho frio – sem ter coragem de chamar um profissional do sexo masculino – até descobrir os serviços da M’Ana. Outra havia sido apalpada por um chaveiro, enquanto tentava negociar o valor de um serviço.
O sucesso nas redes sociais não demorou a chamar a atenção dos jornalistas: já na primeira semana, Correard foi entrevistada pela TV Cultura. Em seguida vieram sites e grandes jornais. No mesmo dia em que visitou as donas dos gatos, ela se encontraria, à tarde, com uma equipe do programa Pequenas Empresas & Grandes Negócios, da Rede Globo.
Mas Correard vivia um dilema: não queria levar uma equipe de filmagem – inevitavelmente com técnicos homens – para a casa de alguma cliente. Acabou contornando a situação ao convencer uma amiga, a arquiteta Paloma de Miranda, a recebê-la com a equipe em casa. Miranda precisava de uma série de reparos em seu apartamento e não tinha nenhum trauma com homens desconhecidos. Correard se dispôs a realizar os serviços em troca do “aluguel” temporário da casa da amiga, além de um pequeno depoimento para a câmera na condição de cliente.
A noite caía no bairro do Sumaré quando a turbulenta trupe (em que a repórter da emissora era a única mulher) montou um circo de luzes, refletores e microfones na sala da arquiteta. Durante três horas, a equipe não economizou solicitações. Correard teve que desparafusar e reparafusar repetidas vezes um interruptor de luz, por exemplo, fingindo naturalidade – compondo, assim, a cena de fundo enquanto a repórter falava para a câmera. Quando afinal viram a casa esvaziar, as duas amigas, exaustas, se jogaram no sofá. Foi só então que uma cachorrinha esguia e desconfiada despontou no corredor, abanando o rabo. “Essa é a Bowie”, disse Miranda. “Ela estava escondida até agora porque morre de medo de homem”, explicou.