ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Iguaria carioca
Vereadores decretam que o bolinho de feijoada é patrimônio do Rio
Emily Almeida | Edição 181, Outubro 2021
Na tarde de 1º de setembro passado, os vereadores do Rio de Janeiro reunidos em plenário decidiram que a partir de agora o bolinho de feijoada é um patrimônio cultural de natureza imaterial do município. O autor do projeto de lei, o vereador Reimont (PT), comemora, aliviado: “Passou, por mais que algumas pessoas tenham pouca sensibilidade.”
Ele apresentou o projeto de lei nº 913 à Câmara Municipal pela primeira vez em julho de 2018. Mas só em 26 de agosto deste ano ocorreu a votação. No primeiro dia de setembro, voltou para segunda discussão e foi aprovado em caráter final. Alguns vereadores viam a iniciativa com desdém, por acharem que tornar um bolinho patrimônio municipal não ia fazer diferença na vida do carioca. Mas Reimont está firmemente convicto da importância da decisão. “Sabemos que o bolinho de feijoada carrega um simbolismo e uma mensagem muito profunda para a nossa memória e para aquilo que queremos projetar para a frente, que é comida no prato na vida do povo”, afirma.
Em vista do agravamento da situação econômica no país, da inflação e do aumento da fome, a iniciativa ganhou até ares de protesto. Mais ainda após o presidente Jair Bolsonaro aconselhar os brasileiros a comprarem fuzis, em vez de feijão. “Infelizmente, vivemos um momento de muita carência de feijão no prato, de comida escassa, de volta ao mapa da fome, com as pessoas se acotovelando em filas gigantescas para ganhar uma cesta básica para alimentar seus filhos”, diz Reimont. “Para além da questão afetiva do bolinho, porque a memória tem que ser valorizada, tem a questão da sobrevivência.”
A feijoada é uma invenção antiga e desde 2013 já ocupa o panteão dos patrimônios culturais imateriais do estado do Rio. O bolinho de feijoada é um petisco recente. Foi criado em abril de 2008 pela chef carioca Kátia Barbosa, de 59 anos. Ela é dona do Aconchego Carioca, um restaurante instalado em um casarão na Praça da Bandeira, bairro da Zona Norte, e desde 2019 participa como jurada no reality show Mestre do Sabor, da Rede Globo.
A receita é composta, literalmente, por ingredientes da feijoada. A massa leva feijão, carne seca, lombo, costelinha, linguiça calabresa e paio, além da farinha de mandioca e temperos. “Podem ficar chocados porque é isso mesmo: [o bolinho] não precisa de ovo!”, revela Barbosa em um vídeo em que ensina o passo a passo da receita. No recheio, couve cortada à mineira, refogada com bacon.
Apesar de muito carioca, o bolinho de feijoada surgiu de uma ideia ocorrida a Barbosa durante uma viagem a Belo Horizonte. Ela estava com amigos em um bar, pediu um bolinho de feijão, deu a primeira mordida, não era bem o que esperava – e teve o estalo de uma nova criação. Ao voltar para o Rio, começou a fazer os testes. Bateu o feijão com as carnes da feijoada no liquidificador, acrescentou a farinha de mandioca para obter a textura de bolinho, recheou com a couve. “Tem gosto de feijoada!”, disse um amigo, ao experimentar.
Barbosa receava que a couve pudesse perder o sabor e a textura após ser coberta pela massa, passar pela fritura e ser mantida congelada, já que os bolinhos seriam feitos em grande quantidade. Mas deu certo. A prova final do petisco aconteceu num dia de muita cerveja e conversa jogada fora, no estilo carioca. Ao final da tarde, com todos os convivas fartamente regalados, a chef anunciou: “Pronto, temos o bolinho.”
Ainda não se chamava “de feijoada”. Foi um amigo de Barbosa, na época curador do concurso Comida di Buteco, que sugeriu o complemento, uma vez que não havia dúvidas: aquele bolinho de feijão só podia ser de feijoada. No mesmo ano, o Rio teve a primeira edição do concurso, criado em Belo Horizonte no ano 2000 e que se espalhou por outras capitais com o objetivo de eleger os melhores petiscos de bares e restaurantes. Barbosa se inscreveu, e seu bolinho de feijoada ficou em segundo lugar, atrás do rolê ouriçado, receita de bife rolê do Original do Brás, também na Zona Norte.
Por causa da pandemia, o Comida di Buteco não aconteceu em 2020, mas voltou em 2021, autorizando que os jurados provassem os quitutes em suas casas. De acordo com a organização do evento, 30% dos participantes habituais faliram, o que levou ao lançamento da campanha de doações Salve os Botecos. Apesar disso, a edição deste ano, encerrada em 29 de agosto, teve a participação de 73 estabelecimentos do Rio, sete a mais que em 2019.
Antes da pandemia, quando via as filas na porta de seu restaurante para experimentar o bolinho de feijoada, Barbosa não punha fé que aquilo fosse durar. “Na nossa cabeça era um boom e ia acabar logo. Mas os anos se passaram, e a gente ainda tem fila. E lá se vão mais de dez anos”, diz.
Além do Aconchego Carioca, o bolinho de feijoada é oferecido em outros locais que Barbosa comanda: nas filiais do restaurante Katita – que é o apelido da chef – no Cachambi e na Barra da Tijuca, e no Bar Kalango, em Botafogo. Toda semana sua fábrica de bolinhos produz de 3 a 4 mil unidades.
A receita também se espalhou pelo país, e o bolinho de feijoada é servido agora em bares e restaurantes de vários estados. Mas Barbosa não se incomoda. “Não adianta nada criar uma coisa que agrada tanta gente, que conta a história de tanta gente, se ela não pode ser reproduzida.”
Em 10 de setembro, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro encaminhou o projeto de lei para sanção do prefeito Eduardo Paes. Se o prefeito endossar a decisão, o bolinho de feijoada vai se juntar ao time dos petiscos mais ilustres do país, como o afro-brasileiro acarajé, reconhecido como patrimônio imaterial em 2005 pela Câmara Municipal de Salvador. O vereador Reimont propôs a Paes que o projeto seja sancionado no berço da iguaria, o Aconchego Carioca. “As pessoas falam que o Rio de Janeiro não tem uma comida própria, mas a gente tá provando que tem”, diz Barbosa.
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