Andrés Sandoval_2019
Imagens sem pressa
Um jovem descobre a foto analógica
Emily Almeida | Edição 156, Setembro 2019
Foi em um banheiro nos fundos de sua casa em Lavras, no Sul de Minas, que Victor Antonio Carneiro da Cruz, de 17 anos, instalou seu laboratório de revelação de fotos. Dentro do boxe do chuveiro, colocou uma escrivaninha de madeira, repleta de garrafas de vidro marrons, identificadas com escritos sobre fita-crepe. O ampliador, um aparelho quadrado de cores bege e cinza, foi disposto à direita da escrivaninha, e logo à esquerda os dois vasilhames para revelação e fixação. Próximo à janela, estendeu o varal de secagem das fotos.
Para impedir que qualquer feixe de luz entre no local, ele aplicou três camadas de papel Contact nas bordas da janela basculante, emendados com pedaços de carpete. Como não conseguiu vedar inteiramente a porta, é sempre de madrugada que ele costuma revelar as fotos. Quase toda noite, Cruz espera que a mãe vá dormir, apaga as luzes da casa, fecha-se no banheiro e inicia o trabalho. “Desde que segurei uma câmera pela primeira vez, me deu vontade de revelar filmes”, contou. Ele tinha 15 anos quando resolveu seguir na contracorrente da época, colocou em segundo plano as imagens digitais e se embrenhou no mundo da foto analógica.
Cruz tem cabelos escuros e compridos, 1,70 metro de altura, cursa o segundo ano do ensino médio e usa óculos de grau. As lentes dos seus óculos têm vários arranhões provocados pelo atrito com o visor (às vezes de ferro) das câmeras. Aos 8 anos, ele ganhou a primeira câmera da mãe, Ana Lúcia Medeiros Carneiro, uma ginecologista que ele, com orgulho, diz ter o título de “a médica mais pobre de Lavras”.
Foi, porém, com uma Zenit 12XP, que estava encostada há anos em um guarda-roupa, que Cruz deslanchou sua atividade fotográfica. Produzida na Rússia comunista, a câmera pesa 950 g, usa filmes de 35 mm e foi vendida no Brasil entre os anos 1980 e 1990. De posse do aparelho, buscou pelos termos “fotografia analógica” na internet e um dos resultados o direcionou para um blog chamado Queimando Filme. Ali aprendeu o básico sobre o metiê. “O site foi o pontapé inicial. Tinha muita informação.”
No dia seguinte, foi até uma loja de artigos fotográficos na Rua Santana, no Centro de Lavras, para comprar seu primeiro filme. Encontrou atrás do balcão Wildes Botelho Alvarenga, de 64 anos, fotógrafo há cerca de cinco décadas, que conferiu a Zenit 12xp minuciosamente e indicou o ColorPlus 200. “Quer que eu coloque o filme para você?”, perguntou a Cruz. O rapaz respondeu que não. “Mas eu devia ter aceitado, porque coloquei errado e perdi o filme.”
O blog Queimando Filme foi criado em 2011 por André Corrêa e hoje só existe como uma conta no Facebook – saiu do ar em maio por falta de recursos. É nessa página da rede social que 16 mil membros, entre eles Cruz, tiram as dúvidas e divulgam suas fotografias analógicas. Boa parte das publicações é feita por jovens fotógrafos, e as imagens são acompanhadas por legendas que descrevem o modelo de câmera, o filme utilizado e o local retratado. Às vezes, os membros acrescentam seus nomes de usuário no Instagram.
Os fotógrafos costumam deixar registrado o seu entusiasmo quando conseguem atingir novas etapas de aprendizado. “Esses dias terminei de fotografar meu primeiro negativo em redscale e, como a mão da experimentação coça demais, após finalizar, joguei o bonito numa sopa de álcool de limpeza com flores por uns vinte minutos, em uma temperatura em torno de 38ºC. A revelação foi feita em casa”, publicou a fotógrafa Juliana Murarolli Paixão, de 27 anos, em junho.
Corrêa, de 45 anos, é formado em cinema e trabalha como coordenador de uma ONG em São Paulo. Descobriu a fotografia analógica também na adolescência. “Notei que havia uma lacuna sobre esse tema na internet e resolvi fazer o blog. A intenção era criar um ambiente acolhedor para a aprendizagem, onde ninguém tivesse vergonha de perguntar e ser repreendido.”
Nos primeiros anos do blog, Corrêa teve a ideia de montar a campanha “Eu quero a câmera que está pegando poeira no fundo do seu armário”, que ganhou as redes sociais do Queimando Filme. Muita gente resolveu contar como descobriu em casa, esquecido num canto, um velho aparelho fotográfico. “Eram pessoas jovens, na faixa dos 15 aos 25 anos, no máximo”, disse Corrêa.
Ele percebeu que havia, entre os membros mais jovens, certo “espírito de artesão”, como define. “Descobri que, ao fotografarem com o digital, eles sentiam falta de algo. O incômodo era com a constatação de que a câmera digital fazia a foto, não a pessoa. É a mesma sensação de comprar uma lasanha pré–pronta e acrescentar algo nela, fingindo que fui eu quem fez o prato”, ele comparou. “A câmera digital toma muitas decisões por você, o que não é ruim, mas essa facilidade torna o que se faz menos valioso.”
Na primeira tentativa de Cruz, a câmera soviética não puxou o filme; na segunda, ele errou a fotometria – a medida das condições de luminosidade do ambiente para ajustar a abertura correta do diafragma e o tempo adequado de exposição do filme à luz. Só na terceira vez foi bem-sucedido.
Depois disso, ele carrega a câmera aonde quer que vá e continua estudando e comprando equipamento. Na loja de Alvarenga, única especializada em fotografia analógica que conhece em Lavras, Cruz só encontra um tipo de filme. Outros, ele adquire pela internet. Em seu laboratório no banheiro, revela apenas fotos em preto e branco, pois as coloridas precisam de um equipamento mais avançado que ele ainda não tem.
As primeiras fotos, reveladas na loja, eram coloridas e mostravam um pouco da vida cotidiana de Cruz, seus amigos e animais – quatro gatos, quatro cachorros, uma tartaruga e um pombo. Numa delas, em tons de azul, um gato magro encara a lente; noutra, um amigo toca ukulele.
“Estava tudo muito rápido na minha vida, eu queria desacelerar e a fotografia analógica fez isso para mim. Ela me faz prestar mais atenção nas coisas à minha volta.” Nas fotos mais recentes, em preto e branco, Cruz parece ter redescoberto a cidade em que vive, fixando o olhar, sem pressa, numa casa em construção, nos trilhos do trem, num homem que observa a rua da janela de um prédio.