ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Impeachment é pouco
A dura vida de quem pede golpe
Julia Duailibi | Edição 111, Dezembro 2015
O sedã preto deixou as dependências do Comando Militar do Sudeste no meio da tarde da sexta-feira, 13 de novembro, levando o ministro da Defesa, Aldo Rebelo. Poucos metros adiante, no Posto Revolucionário 1 – Mário Kozel Filho (PR-1, para os íntimos), sentada num banquinho de plástico, a dona de casa Eliza Vieira, de 58 anos, comentou: “O Coisa estava aí.”
Vieira faz parte do grupo que há cinco meses decidiu acampar diante do quartel-general do Exército em São Paulo para pedir “Intervenção Militar Já!”. Como se detivesse informações privilegiadas do Estado-Maior das Forças Armadas, arriscou: “Ele veio aqui falar: ‘Vocês não vão fazer intervenção!’” A dona de casa parecia pronta para a guerra: vestia uma camiseta camuflada e tinha as unhas pintadas de verde-oliva (vermelho é cor malvista no PR-1).
Apesar do nome pomposo, o Posto Revolucionário 1 (ainda não se tem notícia do PR-2) resume-se a três barracas grandes, nas cores branco, verde e laranja, armadas na ilha de concreto que divide a avenida em frente ao Comando Militar, ao lado do Parque do Ibirapuera. Na tenda central, há uma salinha onde também funciona a cozinha, separada da despensa por cortinas de plástico de banheiro. Nas outras duas barracas, beliches e colchões ficam preparados para o turno da noite, que raramente conta com mais de duas pessoas.
“Ele não teve coragem de vir falar com a gente”, disse Mauricio Sabino, de 48 anos, referindo-se a Aldo Rebelo, que além de ministro da Defesa é um quadro importante do Partido Comunista do Brasil. “A sorte dele foi que saiu e eu não vi. Senão, eu ia ser preso. Para mim, ele é subversivo”, declarou o militar da reserva, que também é fotógrafo, jornalista e técnico de basquete, mas que atualmente trabalha como segurança na região próxima ao quartel.
No acampamento, o grupo passa os dias discutindo temas que ameaçam a pátria e a família brasileiras, em banquinhos colocados na rua, num clima de cidade do interior. Vão dos médicos cubanos ao exército bolivariano, passando pela imprensa, comprada pelo PT. Sabino diz ter recebido informações, de gerentes de bancos dos Estados Unidos, segundo as quais Dilma vai “travar” as contas acima de 7 mil reais. Vieira se interessa pelo avião que afirma ter sido comprado por Lula, já fora da Presidência, por 50 mil dólares. “E pagou à vista.” Perguntei se não seriam milhões. “São dólares! Meu marido fez a conta e dá muito dinheiro.”
O PR-1 Mário Kozel (soldado morto em 1968, ali no quartel, numa ação de uma organização de esquerda, e que também dá nome à avenida) é ligado ao Movimento Brasileiro de Resistência, grupo fundado em 2014. Movimentos como esse, que pedem a volta dos militares, existem desde a redemocratização, mas passaram a fazer mais barulho nas manifestações contra Dilma, a corrupção e o PT. Nas redes sociais, algumas dessas agremiações chegam a dizer que “impeachment é para os fracos”. Pedem “Deposição Já ou Guerra Civil”.
Ao lado das barracas, veem-se faixas e cartazes. “Fora Comunismo, Abaixo a Censura”, diz uma delas. Noutra, o mantra do grupo: “Intervenção Constitucional, Artigo 142.” Embora o referido artigo da Constituição determine que as Forças Armadas estão “sob a autoridade suprema do Presidente da República” e se destinam à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, os amotinados fazem uma leitura própria do trecho.
“Hoje não vivemos uma democracia”, Sabino ponderou. “Então, os militares são obrigados a pegar o poder por um tempo, mas dentro da democracia.” Vieira ajudou: “Pelo artigo 142, extinguem-se os partidos e vamos ter novas eleições.” A interpretação particular da Constituição levou o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, a ironizar o grupo. “Eles pedem ‘intervenção militar constitucional’ (risos). Queria entender como se faz”, disse em setembro, em entrevista ao Correio Braziliense.
Sentado num sofá modesto, dentro de uma das barracas, o intervencionista Ju Firminio, de 50 anos, explicou que só “o andar da carruagem” depois da tomada do poder é que poderia definir a duração do governo militar. Firminio é um homem pequeno, bronzeado e grisalho. Quando perguntei sua profissão, disse “ter dado um branco”. Um outro intervencionista entrou na conversa e informou que ele trabalhava na construção civil.
Enquanto falávamos, o almoço era preparado no fogão ao lado por David – ou Bin Laden, como é chamado por causa da barba –, um jovem de 19 anos que não dá informações sobre si. Ele cortava com esmero cebolas, tomate e um pimentão verde, para temperar um atum enlatado, que serviu com arroz e feijão.
Não se sabe ao certo quantas pessoas fazem parte do acampamento. No Facebook, a comunidade Intervenção PR-1 tem 151 simpatizantes. O Movimento Brasileiro de Resistência, 10 mil. Nos dias em que a piauí visitou o local, não havia mais do que cinco pessoas no acampamento. Eles vivem da ajuda de simpatizantes, que doam sobretudo comida: água, açúcar, macarrão. Em meados de novembro, receberam um apoio ilustre: o ator, diretor, escritor e ex-estrela de filmes pornô Alexandre Frota foi visitá-los. Os amotinados tiraram fotos ao lado do artista e postaram as imagens nas redes sociais.
“Se a vaca estivesse gordinha, íamos comprar gasolina pro gerador”, disse Firminio, revelando as dificuldades enfrentadas pela tesouraria do acampamento. A vida ali é dura. Havia três dias que o gerador, usado para carregar os celulares, não era ligado. O gelo do isopor também virara água, e não havia previsão de quando seria reposto.
Mas o pior foi a perda do banheiro químico, do qual se desfizeram num ajuste fiscal recente. Por um lado, foi bom: o cheiro de fezes e urina já incomodava os amotinados. Agora recorrem ao banheiro da Assembleia Legislativa de São Paulo, do outro lado da avenida, onde dizem ser maltratados. “É tudo comunista, é tudo comunista”, bradou o intervencionista Carlos Davi, de 50 anos, ignorando o fato de que o Legislativo paulista, atual refúgio para as necessidades fisiológicas do grupo, é presidido por um tucano.