ILUSTRAÇÃO: ARTUR LOPES_2013
Inconfissões e inconfidências
Duas conversas com Ana Cristina Cesar
Armando Freitas Filho | Edição 87, Dezembro 2013
Para Sofia Mariutti, que me deu a ideia de escrever este texto
O TELEFONEMA DE SETE HORAS
sábado chuvoso seis e pouco de uma tarde em março de 1979
[…] vem você estou aqui enrodilhada. você tem carro. táxi aqui é difícil. por que táxi? vem de ônibus. você tem mania de táxi. ônibus também é difícil nos sábados sem praia. mas você gosta de andar de guarda-chuva quando só está ameaçando e quando chove fica em casa. cadê o guarda-chuva? só serve quando ameaça? serve de bengala… olha só você está doente? não. está com preguiça? também não. se você vier vai ver que não. e aquela história de hálito? passou. era como uma ardência localizada. aftas? não sei por que você fica só lembrando de doença. não é doença. foi você que falou disso e muito. mas passou. aposto que você não vem por causa disso do meu hálito. tem medo de pegar não sei o quê. talvez mas não tinha pensado. agora fico pensando. não nisso só. em quê? você viu o que o canastrão literário falou no suplemento? vi. mas não fica dando corda. você vive dando corda. gosta de cultivar briguinhas. gosto de sentir raiva. e você também. só que não dou muita bola. eu dou. por que não dar se gosto? depois se queixa de gastrite. não tem nada a ver. tem a ver com o que eu como e não com o que ou quem não engulo de jeito nenhum. olha só faça como eu jogue os livros dele no lixo e pronto não fica fermentando. prefiro ficar com os livros para confirmar sempre a canastrice. então você duvida? não de jeito nenhum. acho que é algo como um prazer sádico vulgar. olha você vem pra cá logo. tenho que procurar meias apropriadas os meus pés estão gelados e úmidos estão com chulé. como se escreve? o quê? chulé? acho que é com ceagá. também acho mas gostaria que fosse com xis. ia cheirar pior se fosse. escuta. por que não vem logo? faz assim. se levanta. não estou na cama. se levanta da cadeira então. estou no chão. sai do chão então. conhece a expressão perdi o chão? não é do meu tempo. você só conhece o que é do seu tempo? e as guerras napoleônicas já ouviu falar? não gosto de guerras. agora eu é que falo. vai no quarto larga o chinelo lá porque eu sei que você não larga o chinelo em casa calça o tênis e vem. estou de braços abertos esperando. é pouco. pouco? de pernas abertas serve? […] mas por que você não vem? para mostrar poder? é queda de braço? dobrar o outro? só me dobro em dois. desdobro-me pela casa. na rua não. sou andarilha profissional. já ouviu falar? já leu a voz humana de cocteau? não. detesto cocteau. por quê? por causa dele ter sido simpatizante do nazismo. não chegou a isso. não foi colaboracionista não. não gosto porque ele adora literatura. e nós? você é um pouco como ele. quem adora literatura faz literatice, isso sim. escrever é in loco. nem vou discutir isso pelo telefone. vem pra cá. estou pensando… não pensa vem. mas tenho que ir ao banheiro. xixi ou cocô? cocô. o telefone chega no banheiro? chega mas tira a concentração. experimenta vai. cheguei para de falar. […] mas… pronto acabei. já? o principal já foi. agora o que vier é lucro. esse negócio de intestino caprichoso. nesse negócio sou hamletiano fazer ou não fazer. antes de sair ou depois de voltar? viu só como você ama literatura? faz literatura o tempo todo. você também ora. só que finge que não faz. porque acha que a moda é essa. você tem mania de moda. quero ouvir mais esse negócio de moda. só cara a cara vem. se tivesse um telefone com televisão junto seria perfeito. seria mas aí ninguém saía mais né? pode ser e daí? você é que não sairia nunca não eu. que chatura essa chuva. viu só? você vive com medo de chuva. quando moço andava de galochas em petrópolis. me lembro um dia em que duas meninas olharam uma para outra quando me viram de galochas. fiquei malparado perdi ponto. por falar nisso passando da chuva para o sol aquele biquíni seu com saiote que coisa hein? […] é a última moda. viu? eu só penso em literatura e você em moda. está provado. e se for o que que tem? nada. mas é assim. e por que fica todo afetado? afetado o quê. afetado é aquele maiô. afinal você gostou ou não? gostei a contragosto. isso é que dá ficar nesse vem não vem. a gente vai acabar brigando. brigando você que adora brigar. mas estou te falando que é mais fácil você vir dormir aqui. tem vaga pro seu carro e tudo. mas o certo é você vir. certo? por que certo? porque estou enrodilhada. estou falando sério. eu também. quando se está assim não é só por comodidade. por que será então? não vou explicar. se você não adivinha. adivinha? você está perdendo o hábito da causerie como diz meu pai. diz pra quem? para minha mãe. e ela? não liga. mamãe é dessas que não dão bola nariz em pé. e ele? sério sóbrio, advogado, procurador federal mas um conversador de mão cheia. já contei como foi quando ele me levou para conhecer bandeira? já. e com drummond? não como foi? só uma coisa. drummond disse que ele deveria escrever memórias. por quê? porque ele contou como foi a semana de arte moderna aqui no rio. só por isso? não mas não estou com saco para contar mais para quem diz que não gosta de literatura. mas eu quero ouvir. ouvir com essa voz? que voz? voz escarninha. que é isso? não enche. você não tem jeito. vem ou não vem? depois dessa você é que deve vir. você está sempre à beira de fazer má-criação. vou desligar. quer desligar desliga bate com o telefone na minha cara. mas que ataque é esse? você não gagueja quando fica assim. estava quieta aqui. você telefonou e cismou que eu devia ir pra aí. mas você topou. topei nada. se você telefonou você é que devia vir ora. mas como iria se desde o começo notei que você não estava a fim. a fim de quê? […] de visitas madame. não estava mesmo mas depois fui ficando por causa da sua carência. por pena então. não pena compreensão. compreensão? compreensão sim porque você não sabe ficar sozinho homem não sabe ficar sozinho em casa homem casado principalmente homem casado como você. como eu? pra começar não estou casado. por fora não por dentro está. que classificação idiota é essa? classificação de quem conhece você de trás pra frente. você não me conhece de trás pra frente. isso não é um insulto é interesse psicológico. se é assim eu dispenso. depois quem te conhece melhor sou eu do que você a mim. puxa vida eu telefono com carência? o.k. com carência. com carência sua vá lá e você desdenha assim. não estou desdenhando. sou muito mais velho que você… não começa com essa coisa de velho você como me culpa disso. culpo sim. afinal você vai morrer depois de mim. como você sabe? teoricamente. pela ordem natural das coisas. desculpe. tá bom. você não precisa vir. mas você pode continuar precisando. se eu precisar muito eu vou. mas eu preciso saber. por quê? vai alguém aí? transação? não ninguém. bem você não mente. mas você mente não é? minto às vezes. para você minto menos. você acha que eu sou burra. não. por isso? às vezes é burra. loura burra. o que é isso está chorando? nunca ninguém me chamou de burra. e que importância tem isso? se você fosse burra aí sim. mas você disse que eu sou. puxa. quantos anos você tem afinal? cada vez vou ficando mais velho. isso sim é que é insulto. mas você levar a sério uma brincadeira. sua voz não estava brincando estava com raiva. não importa. uma brincadeira raivosa não dá tesão? pode dar ou não dar. depende do modo de dizer. fico pasmo de você levar assim a sério. se fosse com um desconhecido eu tava cagando. ah deixa disso. não deixo não. você confunde intimidade com grosseria. agora é que você não vem mesmo aqui. não vou mesmo nem pagando. você me paga se eu for? pago. quanto? sei lá. se pagar bem o que eu mereço vou e vou rodando bolsinha. 100. 100 o quê? dólares? dólares! você vale quanto pesa. quanto você pesa? 52, 53. então o valor é esse cafetão? faço um abatimento arredondando para menos. 52. fecho em 50. você sabe por falar nisso que um amigo meu mais velho que eu me disse que agora é moda as meninas darem para sujeitos mais velhos? ele fica até cabreiro de perguntar a idade então pergunta o peso. se tiver 50 come. então é um pedaço de carne não é? você tem cada amigo que eu vou te contar. machismo em alto grau. aliás você também é um pouco assim talvez muito mas disfarça. todos têm essa mania de futebol puta sambão. por que ele fica cabreiro? tem medo de broxar? tem medo da polícia dos pais. todos desse tipo inclusive você têm medo de broxar. quem não tem? além do mais é chato à beça. mas isso é coisa nossa da nossa classe social. gente pobre não broxa nem pensa nisso. tá fazendo pouco? não pelo contrário. ainda bem. jacaré é ótimo sacou? […] falamos tanto em comer vem jantar comigo vem. tem risoto. de frango? tem algum que não seja? não como mais carne. mas que bobagem. isso é superstição bobagem. aprendeu com quem? com a minha geração. mas você não é muito da sua geração. sou sim. o que escreve não é. você é que não vê. fica com ciúme inveja. inveja ou ciúme? os dois. posso ter ciúme de você mesmo assim part time como o comunismo devia ser como você disse. inveja não tenho não. tenho raiva. de mim?! não quero não preciso. tenho raiva de todo mundo. já tive muita raiva de você. por quê? você nunca me falou. nem vou falar agora só se você vier aqui agora eu falo. cara a cara. essas coisas tem que ser assim ao vivo e não no telefone. isso é sacanagem sua. assim não vou. vem se é homem. não. não sou para isso não sou. está com medo? estou porque vou saber o motivo por que você ficou com raiva. estou sozinho. já está ficando escuro. o silêncio da urca é um túnel aberto de noite. um teto altíssimo um piso profundo. céu e mar. escreve isso agora. agora não dá mais porque falei. daqui a anos talvez. não vem com essas besteiras de literatura. não é literatura. não posso falar que azeda. sou assim. é literatura da pior sim. eu escrevo em qualquer lugar. de qualquer maneira. com lápis caneta até com dedo. com sangue. isso sim é literatura. não seu burro o dedo é força de expressão tipo há uma gota de sangue em cada poema. mais literatura não pode ser tem até assinatura. então é literatura sua… sua o quê? nada. pode falar não choro mais. comigo não tem esse negócio para escrever. mesa cadeira cantinho. nisso eu sou assim também. vem pra cá e me ensina a escrever de qualquer maneira. isso não se ensina. é estilo. jeito de ser. gostaria de ser assim. não fui sempre assim. fui sendo. fui caminhando para a mixórdia. vou escrevendo sem plano risco arrisco o acaso que tem que entrar não sabe não? o meu acaso entra mas é meio premeditado o seu parece mais com a acepção do acaso. sua poesia é um verbete do acaso. o meu subjetivo tem que ser objetivado até onde for possível mas aí acho que o acaso morre um pouco se perde a não ser que se saiba parar a tempo. acho que o leitor merece alguma gentileza. escreve isso já já. vem pra cá que eu escrevo na sua mão com pilot roxo. mas o leitor não merece consideração não é? não quero roxo. só tem roxo? deixa eu ver. só. então não vou. e se eu encontrar? vou. e se eu mentir? vou e volto. vou mandar esquentar o risoto. você tá com empregada em casa? tô. mas o que ela vai pensar de mim? ora não vai pensar nada. não acredito que você só falou agora que não tá sozinho. mas eu estou sozinho. a empregada não é ninguém? não pensa em nada? deixa disso isso é desculpa sua. uma hora caneta outra empregada…empregada e caneta duas coisas iguais. que chatice. chatice nada mostra muito como você pensa. isso é feminismo barato. você ficou comunista part time. como é o nome dela? clotilde. como ela é? mulata clara alta. gorda? não é gorda. seu amigo machão perguntaria o peso dela? perguntaria. quantos anos tem? uns 20 e poucos. não gosta que eu chame ela tocando a campainha. campainha? campainha de mesa nunca viu? não acredito. qual a diferença? a campainha da porta pode a da mesa não por quê? porque não! agora eu não vou aí mesmo nessa senzala. senzala é o cacete! é o emprego dela. ela ganha um ordenado. vou começar a assinar carteira e tudo. e ela fica aí no sábado? ficou hoje descansando eu acho. você acha? e como você vai pedir pra ela o risoto? o risoto tá pronto é só botar no forno. por que você não põe? não sei acender o forno. tem uma coisa de acender um jornal. fico com medo de explodir na minha cara. quem fez o risoto? a cozinheira de mamãe. veio aqui trazer é amiga dela. foi ela que trouxe a outra pra aqui pra fazer uma experiência. qual o nome? clotilde. não a da sua mãe? áurea. empregada antiga dela por que você quer saber o nome de todo mundo? lei áurea vem bem a propósito. você vive como um velho. eu sou um velho. agá diz que você é velho desde que nasceu. ela é mais amável comigo do que você. pode ser mas eu sou mais verdadeira. não ponho panos quentes. você é muito mimado. por ela? nunca fui. escuto poucas e boas. mas a mim você responde xinga. porque com ela tem uma espécie de solidariedade de geração. ela é minha irmãe. com você tenho que xingar reagir. ridículo isso tudo. literatura da pior tipo o vento levou. afinal você quer me matar simbolicamente. psicanálise de quinta hein? chega de lero-lero. o risoto chegou. vou comer com você no telefone. você vem de sobremesa ou para a sobremesa? […] vou falar de boca cheia. essa áurea cozinha bem? muito. está lá em casa há uns vinte anos. ela é preta? é. você não tem vergonha de falar lá em casa? sua casa é aí não é lá. que chatice é essa? estou achando bom você não vir nem eu ir. não ia acontecer nada. confessa o que queria que acontecesse […] você fala como se tivesse alguém ouvindo aí tomando conta de você. tem certas coisas que não se fala no telefone. ah! que bandeira. no telefone é que se fala tudo na cara porque a gente não vê a cara do cara ou da cara-metade. o cara não pode ser cara-metade também? difícil. que parti pris idiota. burra idiota que mais? você finge a sensibilidade que não está ativa a sensibilidade que você não tem. não tenho? quem disse? você é fingidona. melhor que ser miss frigidaire. […] bem… que jantar pesado mal mastigado. você quer que eu vá aí? eu estou quase indo. de boca cheia? de boca limpa. dentes escovados. você não escova os dentes bem como todos os católicos. que é isso?! só os protestantes escovam bem? somos mais disciplinados. acho que é isso. e os macumbeiros? não escovam porque são pobres. as mulheres escovam dentes e tomam banho melhor do que os homens. têm uma necessidade maior de limpeza. mas quanto à alma não sei não. minha alma é limpa loura linda. seria foda se fôssemos assim mas a alma é um mata-borrão mora? escreve isso já e desenvolve. você minha professora manda sempre eu escrever e depois o literato sou eu. por isso mesmo é que eu mando. nas aulas do souza leão você manda assim? mando e dou zero. tirar zero é mais difícil que tirar dez. pudim de leite doce demais. você quer? não como isso como fruta. eu também. mamão banana. você sabe que minha mãe dizia que eu não podia nem ver banana na fruteira quando bebê que eu tinha ânsia de vômito? por isso que você é assim. assim como? fiteiro. blue boy. blue boy daquele quadro de… esse mesmo. mas esse é bicha se bem me lembro. e o que que tem? sou bicha viada bruxa o que for nem ligo. mas eu ligo sou macho. tanto assim? olha que não é, hein? […] prazer passivo não é igual ao prazer ativo? depende com quem. não importa quem. importa o prazer a entrega e ponto final. […] tradutora do relatório hite só fica encucando isso. ah! essa não! mais valia você ler lolita em inglês e ver que maravilha que é o prazer dos inocentes não tão inocentes. […] conversa assim desliga não liga. você é completamente pirada. a conversa vai indo vai indo depois de um certo número de frases você pira fica puta. não estou puta tô cansada pra caralho para entrar no seu clima. viu só? tá puta. nunca vi caralho tão falso na boca de quem não fala palavrão. falo pouco de palavrinha a palavrão. gosto mais de escutar. você anda falando pouco e baixo. sempre falei baixo tenho um sopro no coração. e o que que tem isso com falar baixo? você faz ginástica não sei quantas vezes por semana anda de bicicleta e aí o sopro do coração não sopra? pinta mais quando eu falo com você irritante. vou ter que ir ao banheiro. você vem comigo. vou. […] pronto que liberdade há algo melhor do que o intestino funcionar bem? acabou? não. estou obrando ainda. e o livro? está andando. boto um tiro outro. você nunca diz poema. não acredito em literatura. embora você não tenha perguntado o meu está pronto. você nem dá tempo. vai mesmo pela nova fronteira? sim. meus poemas vão sair por lá. você não pergunta porque não gosta do livro e tem inveja da minha editora ser maior que a sua. não gosto daquele poema da negra e de um ou dois mais. o resto vá lá. pois é vá lá. vou falar então. o seu então é todo vá lá. você escreve com medo de ficar muito diferente do que se escreve agora. da sua turma que não é sua turma. quem é minha turma? você? nunca. não quero ser da sua turma tão diferente de você em tudo. na maneira de escrever de ser de continuar. de continuar…? continuar escrevendo. seu livro seria melhor se você raspasse o jargão da geração. baby pra cá e neon e outros bichos pra lá. com a mania de ser engraçadinho epigramático à força. isso só vale quando ocorre e não quando se busca. você compreende? você não tem nada a ver com essa poesia polaroide de revelação instantânea oswaldiana piadista tipo jingle & comercial sei lá. fica mais a performance do que o poema. vai ficando datado. nem sai do poema como quem sai do poema lavando as mãos como diz o caga-regras genial nem dá de ombros. aliás você está pra sua geração como joão cabral está pra geração de 45. parece na aparência mas na essência não. você altera a dicção da sua geração injetando literatura disfarçada ou contrabandeada nela. só se vê depois. antes fica esquisito. por isso é que vive fingindo que detesta literatura. nem falo que é melhor ser assim ou assado. falo que é preciso assumir sua identidade e pronto. é o seu jeito hermético que é difícil. como poeta e como pessoa. seu estilo possível à clef. sai toda recortada o que sai é todo recortado ou coisa que o valha mas vale a pena nesse momento ser assim não oferecida compreende? ser assim fechada à chave que foi engolida ainda por cima. tem mais. mas nem se você fizesse isso ou aquilo queria me enturmar com você com sua poesia. poesia sim. não adianta não dizer que é. compreende? isso de não dizer é típico desse pessoal de sandálias bolsas a tiracolo e tênis obrigatórios. […] e o seu rabo de cavalo não conta como marca como adesão? não combina com você inclusive. deixa meu rabo pra lá. não deixo não. […] não quero me dar com a poeta essencialmente. prefiro me dar com a pessoa. dá pra separar? […] vamos parar por aí. paro se quiser porra. se não quiser desliga agora na minha cara. não adianta ficar assim porque eu não gosto de três ou quatro poemas seus. poemas viu? falei. falou porque está se referindo a mim. ainda digo mais. não é só da minha editora que você fica invejando. é do prefácio do zé guilherme. você admira ele e ficou com cara de tacho quando leu. eu vi bem. nunca pensou que ele escrevesse sobre mim e aí disse não sei pra quem que esse negócio de prefácio é careta etc. e tal. se lembra que foi você que me avisou que ele tinha me citado na entrevista da veja? e eu nem tinha visto. isso prova… prova o quê? o valor que você dá à legitimação literária feita pela crítica. e depois o careta sou eu. está enrodilhada porque tem veneno. você quer brigar mesmo. me prende no telefone para brigar dizer desaforo. tá bem desculpe. sabe por que briga tanto? porque tem mania de casar toda hora. o que que tem o cu com as calças? você não aguenta ficar sozinho e aí inventa que ama… não invento que amo. até nem sei se alguma vez disse que tinha amor por alguém. disse que tinha tesão isso sim. amor só papai e mamãe né? é crítica de quê? da posição? da posição do missionário? e daí? é posição básica confortável para os dois. é ou não é? não precisa gaguejar. esse tempo todo você só gaguejou uma vez. e você fica contando o meu… defeito? para! então tá. livro ruim. prefácio careta. não fode direito. não disse isso. mas disse quase. quase eu concordo. pois é. por causa dessa crítica feroz de voz calma que você é assim. assim como? feroz? ah não diz isso é injusto. logo você vai me dizer isso que eu sou feroz? o.k. feroz não. ferina. você está sempre ao desabrigo abandonada por causa disso. já acabou aí no banheiro? desde que entrou aí endoidou. já. um instantinho só. o bidê é solitário. que barulhada! você toma um banho? um meio banho digamos. banho de assento. o fio do telefone estava todo enrodilhado como você. agora está esticado retíssimo como eu. começamos bem perto. agora estamos longíssimos. ele está esticado como você ficou. puxa! que jantar. vou acabar tendo um troço aqui e você nem está aqui pra me socorrer. não vai ter nada deixa disso. tem usado o tênis? só quando saio com você. remoça né? você fica bem de azul. papagaio! a gente se telefona e acaba saindo no pau. você que telefonou. que coisa horrível. não exagera… é só poesia. não vem com essa. não é só poesia. é alguma coisa que nos joga um contra o outro. não psicanalisa vai. eu não fico assim com seus desaforos. sei que são da boca pra fora. mas tem algo interno de raiva verdadeira. de raiva mútua. afinal gosto tanto de você. gosto das suas três ou quatro pestanas albinas que você não gosta e vive e dorme de óculos escuros por causa disso? não enche. já vi uma raposa que tinha. por que razão você fica assim? tão avara. por que eu fico assim à flor da pele? suando. olha só. tá frio pra cachorro e estou todo suado. toma um banho que eu espero. depois do jantar? não faz mal nenhum. eu sempre tomo. mas eu nunca tomei e não vai ser agora sozinho. sozinho não. com a empregada. casa grande & senzala. esse negócio de empregada de campainha mexeu com você. me deu tesão isso sim. então por que não vem pra cá? você é que devia vir aqui e traz a empregada. como é o nome dela mesmo? não enche. é gostosa? quer ser chacrete ou trabalhar no flávio cavalcanti. jura? preciso jurar? quer falar com ela? clôoooô. cadê a campainha? clô? já tem nome de chacrete. cadê ela? já está dormindo. pra ela já é domingo. deve ter escutado tudo. esse despautério. vai lá na porta dela e fala des-pau-té-rio assim mesmo. ela vai dar pra você na certa. por quê? segunda sílaba. vai pensar que tem a ver com pau. depois sou eu que sou casa grande & senzala. os três patéticos de são paulo que você gosta apesar de não ter nada a ver com eles nem sua geração muito menos… mas eles têm valor, ora!… é que iam gostar de que mesmo? de nada. eles só gostam deles mesmos. ah é tipo família mafiosa. melhorou o suor? melhorei. mas estou com azia. se ainda tivesse takazima. takazima? quem é? não é ninguém! é um remédio do tempo do onça. amanhã vamos nos encontrar no parque lage? quer dizer que você não vem aqui mesmo. não. estou cansada. enrodilhada? não. estatelada. eu bem que podia ir aí. poder você pode. mas você não vem para ganhar o jogo. assim não vale a pena. esse telefone é a bola. fale por você. se é assim por que não veio antes? porque queria que você viesse. nós dois ficamos esperando godot. na peça ele vem? não lembro. ele não vem claro. senão não fazia sentido a falta de sentido. aquela peça é uma masturbação. e esse telefonema também é. pode ser ou vir a ser. sei lá. mas eu gostaria de falar ainda um pouco do seu livro sem a raiva de antes. seria uma correção da falta de educação. deixa de ser bobo e fala logo. quero saber burrinho. começo pelo meio. o poema da visita ao ginecologista… está no meio mesmo… está explícito demais. você não é explícita é implícita. você começou pelo meio mesmo. […] mas quanto aos outros eu acho tudo direito. você é uma excelente equilibrista. manteve todos na mesma linha de produção. produção? esquisito isso. troca a palavra então. na mesma linha do coração sei lá. você entendeu o que eu disse ou não? mais em miúdos não dá. puxa! que mal-humorado que você é. mas eu gosto muito quando você fala de poesia em geral. ah é?! que novidade não sabia. ironia entre nós não vale o.k.? ironia e cinismo não valem nada você sabe. sei. mas não sei se concordo. num dos seus discursos sobre ética e moral você vivia batendo nessa tecla que a ironia é a arma dos fracos. que deixava você no portal da vida e outras belas frases ribombavam. onde você está agora? está falando à brinca ou a sério? a sério juro. por que não vem pra cá de avião? agora quem está enrodilhado sou eu. enredado. acabei nem tomando banho hoje. toma banho aqui dorme aqui apesar de não gostar de tomar banho com sabão dos outros nem de dormir fora de sua caminha. trepar pode dormir não. no fundo é por isso que não vem pra cá agora. não gosto de tomar banho com sabão dos outros quando são muitos outros. com o seu sabão não. não? não tenho grilo nenhum claro. por falar nisso eu gosto de usar tênis e tal mas o pé sua de um suor diferente. suor diferente? suor disfarçado mas que é suor. no pé finge que não é suor mas o que fica no tênis é um super suor ardido e fica para sempre suando ou suado. nunca vi um blue boy igual. eu às vezes fico dois três dias sem tomar banho e daí? em dias tristes ou em dias alegres? sei lá! sabe sim. dias tristes alegres tá bom assim? tá. mas então quem vai quem fica? reparou que às vezes nem sei direito quem fala o quê? estamos falando igual como se um fosse o espelho do outro. daqui a pouco fico gaga. por falar nisso gravei um poema de drummond no café com letra. qual? canto esponjoso, manja? manjo. gosta? gosto. só gosto? não estou lembrando muito bem. então não manja nem gosta né? é aquele que ele fala vontade de cantar mas tão absoluta que me calo repleto. que retórica. retórica linda que você não vai esquecer nunca. poema bom é aquele que a gente guarda um verso dois e de repente o verso vem faz parte da gente dá voz a nossa sensação. depois esse poema é o único poema alegre completamente alegre que ele fez. mas justamente nesse verso ele não dá vazão à alegria. mas a alegria mesmo interna está lá. o êxtase está lá maior que a alegria até. eu gravei na terça. e então? ficou uma bosta. bosta nada eu ouvi. ouviu onde? na casa de agá. ela não me disse nada. nem você me disse. tinha que dizer? não. mas seria mais normal dizer do que não dizer. e ainda cantei paralelas do belchior. gosta daquilo? gosto. em copacabana esta semana o mar sou eu… você tem ciúme meu com ela. e você tem meu com ela. você não vê que ela adora ser pivô? pode ser mas nesse caso não me importo muito. você e ela são as mesmas. uma só para mim dependendo da inclinação do dia e da intenção. intenção?! […] e eu não tenho identidade? na frente dela você diminui. é natural. ela é mais velha. aquela coisa professora, mãe, amante tudo misturado. você não devia ser analista. por quê? porque fica perigoso ficar falando assim ninguém gosta. depois ficam falando mal de você com razão. quem fica? ela e eu por exemplo. vocês falam mal de mim? às vezes sim. que traidoras falam o quê? ah sei lá. que você fica espionando tudo. que gagueja para fazer charme coisas assim. coisas de mulher. por falar nisso gostei do que você falou sobre poesia de mulher. que não acreditava nisso mas depois ficou pensando e tinha que pensar mais se existia ou não. claro que existe mas não sei como. cecília meireles? ela é mulher? pode ser pensando bem ou pensando mau com u. não tem maldade aqui não. é um conceito. agora digo eu escreva um artigo. melhor um ensaio sobre isso. cabe melhor num ensaio tipo montaigne. já leu montaigne? li não belisquei. acho chato e de repente fascinante. talvez mais velho eu compreenderei melhor saberei fazer a transposição através do tempo para encaixar ele no nosso tempo assim como fiz com machado capítulo por capítulo. mais velho você já é. velho não velhusco me dê uma chance mademoiselle madame bovary. prefiro bertha young. young combina com a sua idade. prefiro ser ela por isso então. ainda não li esse conto. vou ler um dia para você em inglês. prefiro ler antes e depois você me lê não o que senti mas o que devo sentir senão não vou compreender direito. não faz mal o que você perder. o conto é sobre isso. sobre a perda. tanta coisa para ler. tanta coisa para deixar de ler. tanta coisa para você que não lê à toa. só lê o que vai servir como… incremento. todo mundo que escreve é assim. você já reparou que nesse telefonema comprido como esse fio não concordamos em nada? se tivesse alguém gravando ficaria horrorizado com esse desentendimento. com esse fla x flu né? que que você quer comigo? a primeira coisa que fui na vida foi fluminense. escreve isso aí. escreve sobre isso no sentido amplo fora do campo do jogo. depois só eu falo. você fala pouco. sempre fui assim. sou mais de escutar você sabe. para depois colar não é? faz uma faculdade de psicologia se forma em primeiro lugar põe um espelho na frente e se autoanalisa. quanta bobagem. de tanto falar não estou com a garganta seca. estou com ouvido quente. se lembra do poema-orelha? calha bem aqui com a orelha quente. eu gosto de sua orelha com defeito de nascença. é mais bonita do que a outra. escuta. tudo vivido? nada… nada vivido tudo. sabe de cor? quem não sabe de cor uma coisa dessa? você implica com drummond mesmo. prefiro bandeira lido pela cê. drummond não dá espaço. escreve tudo. escreve sobre tudo. não dá vontade de escrever nada mais. não tem mais nada para escrever. bandeira tem umas brechas. a gente entra por elas. concordo mas não aceito. não aceito essa… resignação diante de drummond. não adianta eu sou resignada por natureza. não só com ele. então essa resignação devia começar muito antes. dante. goethe. shakespeare. outra língua de outros países muito mais cultivados que o nosso. interessa aqui dentro viu? o nosso ovídio é ele o farmacêutico mineiro. como é que pode? a profissão de ovídio qual foi? sei lá. acho que começamos bem com um farmacêutico. lida com formulações e coisa e tal. poeta é isso. coisa e tal. eu não sou poeta. sou linda gostosa. não há dúvida. mas de que estávamos falando mesmo? disso. disso o quê? parece um interrogatório. você é explicadinho. […] sou filho único. gago. não sei nadar nem dirigir. sabe trepar? sei. de vez em quando. bom pelo menos isso. vem pra cá. não. depois disso não. por quê? evidente demais. previsível demais. estou quase indo pra aí. estou aqui enrodilhada. tá muito tarde. viu só? tanta energia. tanto fla x flu. e agora é que não vai ter táxi mesmo. o fio do telefone preto é que está todo enrodilhado de novo. parece um pentelhão crespo. na sua casa os telefones são pretos. chic. mas a geladeira não é branca brancona. que cor? gelo. que cor? gelo gelo. aqui o telefone é cinza. é feio banal. comprado nas lojas americanas. e o seu foi comprado onde? é antigo. a telefônica é que instalava. tem esse preto de mesa e um de parede na copa parece uma máscara negra. tem uma televisão que se chama máscara negra. é mesmo? vou comprar pra combinar. chama assim porque a tela é negra. televisão escurona? deve ser uma merda. merda nada é a última moda. última moda viu? ah ah caiu como um patinho nem é tão nova assim. nós estamos há tanto tempo aqui estou com a bunda assada. é de ficar enrodilhada muda. muda não. você me fez falar cada coisa. nós nos falamos. pelo menos isso. o que fazer depois disso? a gente tá longe mas não largou um do outro. pelo menos não nos perdemos. mas fazer o que depois disso? bater bronha? não precisa ser depois e dormir ora. vai dar angústia. não está com sono? nunca tenho sono. toma remédio eu tomo. qual? dalmadorm. eu tomo valium valei-me. valium não é barbitúrico pesadão. não dá ressaca. dá sim. tudo dá ressaca. minha vida é uma ressaca. daqui de casa se ouve o apito dos navios entrando na barra. é mesmo? se você me tivesse dito antes teria ido aí. a urca é longe desolada deve ser triste de noite foi bom não ir. foi por isso que você não veio dormir aqui então. foi bom não ouvir mas poderia ter ficado cativada na ponta mais extrema e dolorida do cais. no paredão com as pedras em baixo em baixo. não mela a literatura. se eu soubesse. mas você só se interessou mesmo quando eu falei das empregadas e campainha na mesa. claro. campainha na mesa. pagava pra ver. é só vir aqui na hora do almoço ou do jantar. eu vou. amanhã. amanhã não sei. por quê? transação? não. tá bem não precisa responder. não começa. se lembra como a gente se conheceu? não. eu telefonei estou sempre telefonando pra você. homem é pra isso. eu telefonei e você atendeu sisuda enrugada. claro nem te conhecia. você disse não a um convite para participar dessas mesas mas marcou um encontro na puc perto dos pilotis. me lembro do encontro. pois é você chegou toda colorida ali no pátio e eu na ponte parecia que todo mundo estava em preto e branco. se você dissesse isso no começo eu já estava aí e aí a gente brincava de casinha. depois eu ia andar na praia de vestido. em copacabana. de jantar no bella blu com um pé tocando o pé do outro debaixo da mesa olhos nos olhos como num samba-canção. uma cena de cinema. é de cinema mesmo parece… não parece com nenhum filme não. não estraga o gozo o prazer do devaneio que vem vindo devagar […].
O TELEFONEMA DE MENOS DE UM MINUTO
sábado de praia meio-dia e meia, 29 de outubro de 1983
Ele: Como estamos? Tudo bem? Dormiu bem?
Ela: Tudo péssimo. Noite péssima, de lagarto.
Ele: Tenha calma, você está melhorando.
Ela: Você vem aqui?
Ele: Não posso. Estou resfriadíssimo, com febre de 38 e meio. Não quero passar gripe para você.
Ela: Passar gripe…
Ele: Olhe só. Fiquei dois anos trancado em casa: de 1963 a 1965…
Ela: Já sei disso…
Ele: Quando, a poder de remédios, fui saindo; sabe o que comprei sem pensar no valor simbólico da coisa? Um par de sapatos novos na sapataria a um passo de casa.
Ela: Não tenho esse tempo todo.
Ele: Mas estou em casa o dia inteiro, claro. Ligue quando quiser, precisando ou não, ouviu? Ligue. Ouviu?
Ela: Keep in touch.
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