ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Insetos legistas
Moscas e formigas ajudam a polícia a solucionar crimes
Luiza Miguez | Edição 76, Janeiro 2013
O carro parou em frente a uma casa em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Janyra Oliveira-Costa atravessou o quintal e entrou pela porta dos fundos, que dava direto para a cozinha de azulejos brancos. Seu olhar foi imediatamente atraído para um canto do ambiente. Pendurado pelo pescoço numa viga do teto, um homem inerte a encarava. Tinha uns 30 anos, vestia calça jeans e regata branca bastante sujas.
Janyra aproximou-se do corpo para examinar os sinais de putrefação no enforcado. Sacou uma câmera, fotografou o rosto já mole e deformado e coletou vestígios, interessada nas larvas e pupas que jaziam no chão. Estava ansiosa para voltar ao laboratório, onde submeteria aqueles rastros à análise para tentar reconstituir a morte.
A perita havia sido chamada para solucionar uma divergência entre o laudo do legista e o testemunho dos vizinhos. O policial estimou que o homem havia morrido no máximo uma semana antes, enquanto as testemunhas falavam que ele estava sumido pelo menos há quinze dias. “Deu para entender a confusão do legista”, contou Janyra. “Em duas semanas o corpo já deveria estar com os ossos expostos, mas aquele lá não tinha nada disso.”
Janyra é uma bióloga carioca de 48 anos especializada no estudo de insetos, a entomologia. É funcionária da Polícia Civil há 26 anos. Coordena um laboratório de perícia entomológica no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, no Centro do Rio. Numa manhã recente, vestia um tubinho de algodão laranja sob o jaleco, equilibrada sem esforço sobre tamancos com quase 7 centímetros de salto.
Moscas, borboletas, besouros e baratas de borracha enfeitam a porta da geladeira de seu laboratório. A equipe de sete pessoas que trabalha ali estuda insetos encontrados em cenas de homicídio, no cativeiro de sequestros e em asilos com suspeita de maus-tratos a idosos. Os bichos recolhidos ajudam a esclarecer vários detalhes sobre o crime e, em alguns casos, permitem até apontar o culpado.
A equipe é responsável também por investigar denúncias da ocorrência de insetos em produtos estocados e emitir laudos que depois podem ser incorporados a processos judiciais. O caso de uma lasanha congelada infestada de baratas é um dos que marcou o grupo. “Tinha muita barata, era um absurdo”, disse um perito, animado para mostrar fotos à repórter.
“Está achando o cheiro muito ruim?”, perguntou Carlos Augusto Chamoun do Carmo, referindo-se ao odor de carne em decomposição que empesteava o laboratório. “Querida, você não conhece o cheiro de gente morta”, disse, sugerindo que aquilo não era nada. Enérgico, o biólogo capixaba fala e gesticula com rapidez quando o assunto é a mosca, seu inseto favorito e objeto de pesquisa no laboratório.
Chamoun comemorou ao ver que seu criadouro amanhecera com mais de cinquenta pares de asinhas agitadas. Para o experimento do dia, colocou com cuidado um preparado de carne moída e sêmen humano em caixas plásticas abertas, e depositou no fundo do cercado em que viviam suas moscas.
“Elas botam ovos onde tem muito alimento. As larvas que nascerem vão comer a carne e também o sêmen, que fica armazenado em seu aparelho digestivo”, explicou. Chamoun consegue recuperar o DNA dos espermatozoides no trato gastrointestinal das larvas e pupas, estágio secundário no ciclo de vida do inseto, e determinar a identidade do dono. “Às vezes o corpo de uma vítima de estupro é encontrado em decomposição avançada e sem fluido nenhum”, disse o biólogo. “As moscas são as primeiras a chegar ao cadáver. Pousam logo depois da morte e colocam seus ovos nos orifícios. As larvas vão comer o sêmen e segurar o material genético do assassino.”
Em 2012, Chamoun conseguiu recuperar amostras de DNA dentro de uma larva catorze dias após a morte da vítima. O cadáver não era de uma mulher. Tratava-se de uma porquinha da espécie Sus scrofa, usada em experimentos por sua semelhança genética com os humanos. Ainda não existe licença para que pesquisas como essa sejam feitas em casos reais de estupro.
No criadouro das formigas, o biólogo Thiago Blanc Celino observou algumas que haviam se afogado desde a véspera. “Boto água para ficarem ilhadas, mas às vezes elas caem ali e morrem mesmo”, lamentou. Ele cria formigas Solenopsis para estudar as alterações que provocam em cadáveres e na cena de crimes. “Elas podem causar lesões semelhantes a agressões físicas”, explicou. “O legista às vezes confunde um estrangulamento com o machucado provocado pelo ácido fórmico secretado por essas formigas”, disse o pesquisador.
No centro de entomologia forense, as moscas começam o dia com uma borrifada refrescante de água e são postas junto à janela, onde vão tomar banho de sol. Elas exercitam as asas e as patinhas e zunem entretidas enquanto um dos biólogos limpa sua gaiola. É preciso retirar do fundo os corpos das que morreram durante a noite e renovar água e comida. As Chrysomya albiceps, as populares varejeiras, preferem água com mel e carne moída. Na geladeira do laboratório, as refeições dos bichinhos dividem espaço com as da equipe. Os insetos recebem tratamento VIP dos pesquisadores. “Eles são babás de moscas e formigas”, riu Janyra.
No caso do crime de Caxias, a perita analisou as larvas coletadas sob o cadáver e calculou seu tempo de vida. O resultado permitiu desfazer a controvérsia e determinar há quanto tempo o homem estava morto: quinze dias, conforme sugeriram os vizinhos. “Quando o cadáver é pendurado, a decomposição é mais lenta, porque a gravidade não deixa os insetos se segurarem para comer a pele”, explicou Janyra. “O legista foi induzido ao erro.”
A bióloga guarda com nitidez a imagem das larvas observadas no microscópio, mas não se lembra da fisionomia do cadáver. Interessada pelo estudo entomológico, ela não acompanhou o desfecho do caso. “Nem sei o que se deu depois”, admitiu. “O cadáver para mim é só uma ferramenta de trabalho.”