ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Irmandade do lobby
Uma família de pastores num dia terrivelmente evangélico em Brasília
Luigi Mazza | Edição 184, Janeiro 2022
No dia 1º de dezembro, a Câmara dos Deputados se encheu de Câmaras. Passava pouco das oito da manhã quando o primogênito da família, o pastor Samuel Câmara, chegou ao Plenário 2 da Casa, onde acontecem audiências públicas e reuniões de comissão. Acomodou-se numa cadeira próxima à de seu irmão caçula, o pastor e deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), que estava acompanhado da sua mulher, a ex-deputada federal Antônia Lúcia Câmara. Enfileirados, os três acompanharam, orgulhosos, quando o irmão do meio, o pastor Jonatas Câmara, subiu à tribuna da sala com a esposa, a também pastora Ana Lúcia Câmara.
O casal logo pegou dois microfones e se postou ao lado do tecladista, à direita do púlpito. Assim que os primeiros acordes soaram no piano digital, marido e mulher começaram a interpretar a música Cicatrizes, do cantor gospel Jorge Araújo. Fechando eu os olhos meus,/eu posso ver Jesus na cruz, dizem os primeiros versos. Afinados – Jonatas Câmara cantando com voz grave, repleta de vibratos, enquanto Ana Lúcia Câmara fazia o contraponto num timbre agudo –, os dois arrancaram aplausos dos familiares e da tropa de pastores e deputados presentes no Congresso naquela manhã.
Dali a uma hora teria início no Senado a sabatina de André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). Ex-ministro da Justiça, ex-advogado-geral da União e pastor presbiteriano, Mendonça foi apadrinhado pela bancada evangélica do Congresso, que operou um lobby sem precedentes para garantir seu ingresso na mais alta Corte do país.
Como a sabatina caiu numa quarta-feira, dia em que é realizado o culto semanal da Frente Parlamentar Evangélica, os pastores fizeram da solenidade uma demonstração de força. Até uma estrela da música gospel, Aline Barros, foi convocada. Ela apresentou no Plenário 2 um pot-pourri de seus maiores hits, como Sonda-me, Usa-me, Bem-aventurado e Ressuscita-me.
“Estamos vivendo um tempo diferente nesta nação. Um tempo novo”, discursou Samuel Câmara, o primogênito, assumindo o microfone após o show da cantora. “Hoje será um dia de oração e trabalho. Esperamos que, à noite, a gente possa sentir que um grãozinho nosso chegou ao Supremo.”
Os irmãos Câmara são homens altos e discretos. Filhos do pastor Severo Câmara (falecido em 2017), nasceram no Acre, mas fizeram suas carreiras no Amazonas, onde, seguindo a vocação paterna, viraram pregadores da Palavra. Com o passar dos anos, ascenderam na hierarquia da Assembleia de Deus e transformaram a família num clã político do Norte do país.
Silas Câmara, de 59 anos, é deputado há seis mandatos. Jonatas Câmara, de 60 anos, é a maior liderança da Assembleia de Deus no Amazonas. Samuel Câmara, de 64 anos, preside a Assembleia de Deus em Belém, no Pará, considerada a igreja-mãe de todas as Assembleias, por ser a mais antiga, fundada em 1911. Além disso, é dono da rede Boas Novas, emissora que transmite programas bíblicos na tevê aberta para quase todo o país. André Câmara, de 37 anos, filho de Samuel, é a principal ramificação no Sudeste: ele é pastor da Assembleia de Deus em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Seu irmão mais velho, Philipe Câmara, de 39 anos, é pastor na mesma igreja que o pai, em Belém. Tanto André quanto Philipe são casados com pastoras da Assembleia de Deus.
Toda essa engrenagem familiar se moveu a favor de André Mendonça. Quando a sabatina finalmente foi agendada, após quatro meses na geladeira do Senado, Samuel convocou pastores do país inteiro para ir a Brasília. A comitiva de assembleianos fez um périplo pelo Congresso, batendo de porta em porta nos gabinetes dos senadores. Os discursos de convencimento sofriam adaptações segundo o interlocutor, mas o principal argumento era de que, sendo os evangélicos mais de 30% da população brasileira, havia chegado a hora de terem um representante no Supremo.
A família Câmara garantiu que houvesse ao menos um representante da igreja por estado. O lobby, então, foi dividido por critério geográfico: um pastor do Tocantins pressionava senadores do Tocantins, e assim por diante. No dia da sabatina, cerca de cinquenta pastores circulavam pelo Senado. “Nas eleições os políticos sempre pedem voto para nós. Agora isso se inverteu: é nossa vez de pedir voto”, explicou André Câmara, sorrindo.
Na noite anterior, junto com os tios, André Câmara esteve no Palácio da Alvorada, numa confraternização feita por Bolsonaro para prestigiar Mendonça, com a presença de uma centena de líderes religiosos, além de parlamentares e ministros do governo. Ao deparar com o piano de cauda que fica na Sala de Música do palácio, Ana Lúcia Câmara – a mulher de Jonatas – não resistiu ao ímpeto. Tocou alguns acordes, e logo um coro de pastores e deputados se formou ao redor dela, cantando louvores. Foi um dos pontos altos da festa.
Quando o culto na Câmara dos Deputados se encerrou na manhã de 1º de dezembro, o deputado Silas Câmara caminhou até uma das portas do salão e pediu que todos os pastores se reunissem à sua frente. Como um guia turístico, o parlamentar explicou qual seria o roteiro dali em diante: todos iriam para o gabinete da liderança do PSD no Senado, onde assistiriam à sabatina pela tevê. Silas foi à frente, acompanhado pelo séquito de pastores.
Para não chamar atenção, o grupo saiu pelo Anexo IV da Câmara, onde funciona uma das portarias da Casa. Em questão de minutos, uma van branca estacionou em frente e cerca de vinte pastores se acomodaram no veículo que os levaria até o Senado.
Silas Câmara despachou o grupo e, caminhando, atravessou o Congresso por dentro. Ao chegar ao Senado, o deputado desceu uma escada que leva a uma portaria pouco movimentada para receber os pastores embarcados na van. Juntos novamente, todos andaram até o amplo gabinete do PSD, que tem várias salas. Os pastores foram acomodados em uma delas, onde havia dois sofás e uma televisão. Ali permaneceram até o fim do dia, apreensivos. Assessores da bancada evangélica iam e vinham, levando pizzas e refrigerantes para alimentar a turma.
Àquela altura, todos já sabiam que Mendonça seria aprovado na sabatina da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Mas ainda havia um grau de incerteza quanto à votação no plenário. Às sete da noite, quando o resultado foi anunciado – 47 votos a favor, 32 contra, selando a aprovação mais apertada de um ministro do STF nas últimas décadas –, uma explosão de alegria irrompeu entre os pastores.
Enquanto uma multidão se aglomerava em torno do Salão Azul, onde a votação acabara de acontecer, os irmãos Câmara, suas mulheres e assessores se encontraram na Praça das Abelhas – como é chamada a área interna reservada à imprensa –, que naquele momento estava vazia. Empolgados, todos se abraçaram, trocando tapinhas nas costas uns dos outros.
Figura geralmente contida, Samuel Câmara deixou extravasar o entusiasmo, ao cumprimentar um assessor: “Temos um ministro do Supremo!”, exclamou, várias vezes. Em seguida, recuperou a serenidade e se pôs a fazer cálculos. “Com a benção de Deus, daqui a alguns anos esse jovem será presidente do STF. Será o quinto homem na linha de sucessão presidencial”, disse, balançando a cabeça e com os olhos cerrados. “Que momento extraordinário!”
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